Verdades e mentiras da segurança social e sua relação com a dívida pública
Este texto faz parte da preparação do atelier de âmbito internacional, realizado no decurso da Universidade de Verão do CADTM, 12/09/2015. Foi organizado por Bruno Colet e Eric Nemes, ambos da ATTAC-Liège (Bélgica), e por Rui Viana Pereira, do CADPP (Portugal).
O presente documento procura congregar de forma resumida o guião, a transcrição da exposição e os instrumentos de debate apresentados por Rui Viana Pereira. A intenção destes instrumentos é simplesmente apoiar o debate sobre a segurança social, a dívida pública e as relações entre ambas.
A segurança social será sustentável?
Que relação existe entre a segurança social e a dívida pública?
Recapitulemos alguns argumentos neoliberais e austeritários:
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O mito da insuficiência de recursos colectivos para manter a segurança social tal como a conhecemos. Em suma, o défice da segurança social.
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O mito das consequências do envelhecimento da população para a sustentabilidade da segurança social, em especial das pensões.
Face a este mito, temos antes de mais de perguntar:
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Será verdade que as funções sociais do Estado consomem mais recursos do que os recursos colectivos disponíveis?
A desmontagem destes mitos revela a sua ligação directa com a dívida pública.
Mas antes de nos metermos ao caminho, é preciso fazer alguns exercícios de aquecimento, para não corrermos o risco de lesar um tendão e cair no lamaçal retórico dos especuladores financeiros.
Alguns métodos de trabalho
Temos de estabelecer critérios que nos garantam: 1) o rigor científico dos nossos cálculos; 2) uma abordagem dos dados adequada aos interesses dos trabalhadores; 3) uma simplificação das complicações apresentadas pela propaganda dominante, que nos impedem de discutir estes problemas com o cidadão comum.
Método 1:
Aceitemos a sobreposição/promiscuidade entre o Estado e a Segurança Social. Ainda que muitos de nós sintam repugnância por este método e considerem que a Segurança Social deveria voltar a ser autónoma (como era à nascença – ver anexo histórico), nesta circunstância é mais prático basear os nossos cálculos nos dados objectivos disponíveis.
Método 2:
Aceitemos a norma contabilística oficial, que separa as contas de Estado nas suas 4 funções:
Funções soberanas (parlamento, ministérios, diplomacia, forças militares e policiais, etc.)
Funções sociais (saúde, educação, assistência social, habitação, cultura e outros serviços colectivos)
Funções económicas (apoio às actividades económicas, às empresas, etc.)
Funções financeiras e outras (nomeadamente o serviço da dívida pública)
Às 3 primeiras chamarei «funções primárias do Estado».
Método 3:
Por regra fala-se do orçamento do Estado na sua totalidade, misturando toda as operações financeiras (entre as quais o serviço da dívida) com outras rubricas do orçamento. É mau caminho, porque nos impede de isolar o problema dos custos da segurança social para os contribuintes e escapar às armadilhas do sistema de endividamento financeiro. Por conseguinte, ignoremos por agora as funções financeiras e respectivas contas, e concentremo-nos nas funções primárias do Estado.
Método 4:
Por regra utiliza-se o PIB como referência universal. Este método é útil mas no presente caso coloca-nos algumas limitações – que me interessa saber qual a percentagem do custo das funções sociais em relação ao PIB, se isso não me ajudar a conhecer a sua origem, a sua utilização e a repartição dos recursos colectivos?
Criemos uma nova referência: o cálculo dos rendimentos do Estado baseado nos impostos directos e indirectos que incidem sobre o rendimento do trabalho, mais as quotizações sociais, e chamemos-lhe «colecta combinada»:
Qual a vantagem deste método? Ele assegura-nos que estaremos sempre a falar de recursos reais do Estado; estes recursos provêm da única fonte de criação de riqueza (o trabalho) e não de montantes fictícios ou de manigâncias financeiras.
[ Nota: a «colecta combinada» é consideravelmente inferior às receitas totais do Estado, pois não inclui vários impostos e taxas, nem os negócios financeiros e imobiliários do Estado, nem os proveitos (ou perdas) das empresas públicas, etc. ]
O mito do défice da Segurança Social
Vejamos o caso de Portugal – um país sujeito a medidas de austeridade draconianas, justificadas pela famosa frase: «gastámos acima das nossas possibilidades».
As despesas das funções primárias do Estado são inferiores à colecta combinada. Antes de 2009, consumiam entre 63 e 74 % da colecta combinada.
O conjunto das funções sociais nunca ultrapassou os 60 % da colecta combinada. É verdade que mesmo antes de 2009 as funções sociais consumiam cerca de metade da colecta combinada. Mas não é isso, e até mais, que se espera de um Estado social? – ou seja, de um Estado que dá prioridade às suas funções sociais e aos direitos humanos?
[ Nota: A evolução das despesas das 3 funções primárias do Estado após 2008 suscita questões de enorme importância social e orçamental, mas não há tempo neste atelier para as examinar. Digamos em suma que, quando começamos a escavar esse terreno, encontramos uma mina de mecanismos de renda e transferência de recursos colectivos para as empresas privadas, sobretudo as grandes empresas e multinacionais, de tal forma que a um aumento da despesa no orçamento das funções sociais do Estado corresponde efectivamente uma diminuição do salário social (aquilo que recebemos do Estado em troca das quotizações e impostos). ]
[ Nota: Para a análise dos outros países, ver por exemplo Anwar Shaik, «Who Pays for the “Welfare” in the Welfare State? A Multicountry Study», Social Research, Vol. 70, No. 2 (Summer 2003), p. 531-550. Anwar Shaik segue um método diferente do que utilizamos aqui, mas as conclusões são idênticas: a segurança social não é deficitária nos países da OCDE. ]
O mito da pirâmide etária
É um facto que as populações dos países mais desenvolvidos (aceitemos provisoriamente esta terminologia) «envelheceram». O que é isso de uma população envelhecer? Significa que a percentagem de população muito jovem diminuiu no total da população. Vejamos o exemplo concreto de Portugal em 1971 :
Vemos aqui uma pirâmide de idades semelhante à dos países subdesenvolvidos: uma grossa percentagem da infância e uma esperança de vida bastante reduzida após os 65 anos de idade. Note-se que 62 % da população estava em idade activa, isto é, entre os 15 e os 64 anos. Vejamos agora o que se passa em 2014 :
A percentagem de pessoas em idade activa, nos nossos dias, não é inferior à de meio século antes; pelo contrário, a população com idades entre 15 e 64 anos aumentou! – eram 62 % em 1971, são 65 % em 2014.
Há mais pessoas em condições de trabalhar actualmente; a percentagem de pessoas supostamente dependentes dos restantes membros da sociedade diminuiu.
É um erro querer ver na pirâmide etária um factor determinante da sustentabilidade da segurança social; mas quem quiser teimar no erro terá de concluir que a situação actual é melhor que a anterior: não precisamos de condenar as nossas crianças e adolescentes ao trabalho assalariado ou escravo para que toda a sociedade sobreviva, porque existe uma enorme quantidade de adultos em condições de trabalhar; por outro lado, a esperança de vida nunca foi tão longe. O que a pirâmide das idades nos mostra nada tem a ver com a sustentabilidade das pensões, mas antes com um formidável salto civilizacional nos últimos 100 anos – graças, precisamente, à invenção da segurança social.
Como interpretar a espantosa transformação da pirâmide etária em Portugal no curto espaço de 40 anos? É neste período que são instalados os serviços sociais de acesso universal à saúde, educação, assistência aos membros mais frágeis da sociedade, etc.
Vejamos agora o que se passou em 8 países europeus bastante diferentes entre si:
4 dos 8 países mostram um acréscimo da população em idade activa, com um máximo em Portugal; 3 países sofrem uma ligeira diminuição; a diferença média entre 2014 e 1960, considerando o conjunto destes 8 países com livre circulação de trabalhadores entre si, é de + 0,4 % – praticamente nula mas ainda assim positiva.
As normas estatísticas nem sempre são coerentes com a realidade social
A norma estatística de «idade activa» (dos 15 aos 64 anos), que nos diz quantas pessoas estão potencialmente em idade de trabalhar, foi estabelecida (por boas razões) numa época passada; mas temos de perguntar até que ponto continua a corresponder à actual situação social e económica:
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muitos países europeus obrigam os jovens a 12 anos de escolaridade – o que torna residual o número de pessoas que começam a trabalhar antes dos 18 anos de idade;
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uma parte importante da produção europeia incorpora um alto nível de tecnologia e por isso exige mais tempo de formação, o que na prática empurra o início da idade activa para os 20-21 ou mesmo 24-25 anos;
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esta realidade é reconhecida pela legislação que, ao longo das últimas décadas, tem vindo a situar o limite inferior de entrada no mercado de trabalho em idades cada vez mais avançadas.
Por conseguinte temos de adoptar um novo método: quando se compara a pirâmide etária de diferentes épocas, deve-se comparar, por exemplo, o escalão dos 15 aos 64 anos em 1960, com o escalão dos 20 aos 64 anos em 2014. Se compararmos escalões iguais, o resultado será matematicamente coerente, mas socialmente absurdo.
Vistas as coisas por este critério, torna-se clara a perda de 5 % da força de trabalho potencial – não por causa do envelhecimento da população, mas antes por causa das mudanças sociais e económicas verificadas. Por outro lado, sucede que o escalão de idades dos 65 aos 69 anos também contém exactamente 5 % da população – o que poderá talvez explicar a obsessão neoliberal de protelar a idade da reforma.
Na verdade, não precisamos para nada desses 5 %, porque a produtividade, entre 1970 e 2014, aumentou 2,4 vezes em Portugal (2,6 vezes na média dos países da OCDE), o que significa que cada trabalhador produz hoje cerca de duas vezes e meia mais riqueza do que a geração dos seus pais. Porém, do ponto de vista do capital, a recuperação desses 5 % de pessoas potencialmente activas ajuda a manter a pressão sobre a massa de trabalhadores e sobre os níveis salariais.
O que ameaça a sustentabilidade da segurança social não é o envelhecimento das populações, mas sim
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o desemprego, porque o volume total de quotizações e a colecta fiscal dependem do número de assalariados e da massa salarial total;
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o baixo nível dos salários, pelas mesmas razões;
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o sistema fiscal, sobretudo no que diz respeito à taxação do capital e do património.
Conclusões: os mitos da segurança social e a sua relação com o sistema da dívida
1. O mito do défice orçamental provocado pelas funções sociais
As funções sociais do Estado e a segurança social não são deficitárias. Existe um excedente da colecta combinada que é utilizado para pagar rendas permanentes aos especuladores financeiros e a outras formas de exploração rentista, nomeadamente as PPP (parcerias público-privadas) e os juros da dívida pública.
2. O absurdo argumento do lucro
O discurso neoliberal diz-nos que a gestão pública gera perdas (já vimos que é mentira), em vez de lucros. Isto é um absurdo, porque no domínio do orçamento de Estado não há lugar para falar de lucros, dividendos ou excedentes líquidos. Nenhum manual de contabilidade, nenhuma norma europeia da contabilidade do Estado contém a noção de lucro ou algo semelhante – o lucro é uma noção exclusiva da contabilidade das empresas privadas, ou seja, da exploração capitalista. Ao nível do orçamento de Estado e da segurança social apenas se pode falar de benefícios sociais.
Por mais absurdo que seja o referido argumento neoliberal, o facto é que ele semeia o pânico nas populações, a fim de convencê-las da «necessidade» de privatizar os serviços públicos. Mas quando a sua privatização ocorre, constata-se quase sempre que pouco depois é necessária uma intervenção do Estado (subsídios ao capital) para manter os serviços privatizados em funcionamento. Por outras palavras: a privatização dos serviços públicos contribui para o acréscimo das despesas públicas, gerando défices que, por sua vez, «justificam» mais endividamento público.
3. O mito da perda de sustentabilidade da segurança social em consequência do envelhecimento da população
Os argumentos neoliberais dizem-nos que o envelhecimento da população provoca um desequilíbrio entre os custos da fracção de população dependente (= muito jovens + muito idosos) e os recursos fornecidos pela população activa (impostos + quotizações).
Este argumento é falso, está mesmo em oposição à realidade: a percentagem da população potencialmente activa é maior do que nunca; e a produtividade actual cresceu de tal maneira que, ainda que fosse verdadeiro o argumento de acréscimo de dependentes, não haveria qualquer problema (na condição de serem feitos investimentos produtivos, claro está).
Além disso, dizer que há demasiados velhos é apelar a um recuo civilizacional.
4. A verdadeira fonte dos problemas orçamentais da segurança social está no desvio dos seus fundos para o sector privado, no desemprego, nos salários baixos e numa política fiscal regressiva e protectora do Capital
5. Todos os mitos e silogismos neoliberais contra a segurança social visam convencer a população da necessidade de pedir empréstimos, para cobrir os supostos défices públicos, garantindo assim uma renda permanente ao capital financeiro
Como vimos, as funções primárias do Estado não provocam défice. O défice dos orçamentos de Estado resulta exclusivamente do mecanismo da dívida e de outras formas de renda permanente para o sector privado; da privatização dos serviços públicos; da venda de imóveis públicos (quando os imóveis públicos são vendidos ao privado, geralmente os serviços que lá estavam instalados começam a pagar rendas milionárias a um proprietário); etc.
6. A ideia do desmantelamento da segurança social é um pouco ambígua
A segurança social e os fundos de pensão foram transformados em fontes de renda para o capital; os fundos de pensão são desbaratados em títulos da dívida pública (sobretudo quando as empresas financeiras já não os querem ou quando espreita o perigo de incumprimento dos pagamentos), acções de empresas, etc., em função de interesses privados. Por isso não é claro que as políticas neoliberais pretendam pura e simplesmente desmantelar totalmente a segurança social – isso seria algo semelhante a matar a galinha dos ovos de ouro.
Quando se fala de desmantelamento da segurança social, é preciso entendê-lo sobretudo como uma diminuição drástica do salário social, ou seja, como a diminuição da devolução à população da parte do salário que os trabalhadores depositaram nos cofres do Estado; e também como um mecanismo de crescente submissão ao sistema da dívida enquanto meio de dominação dos povos.
7. Temas a debater e desenvolver:
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Deve-se aceitar a integração da segurança social na gestão do Estado ou deveríamos lutar por recuperar a autonomia inicial da segurança social? [ Nota: em matéria de autonomia encontramos diferenças consideráveis entre os países da União Europeia. ] Existirá uma relação entre a autonomia da segurança social e a autonomia soberana dos povos, ou as duas coisas nada têm a ver uma com a outra? É possível defender a aplicação dos actuais princípios de universalidade e solidariedade da segurança social, se ela voltar a ser totalmente autónoma?
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Devemos aceitar o actual sistema de quotização ou há que rediscuti-lo? Quotizações calculadas apenas em percentagem do salário? Ou quotizações patronais calculadas sobre o valor acrescentado bruto/líquido? [ Nota: Existem diferenças consideráveis de país para país. Nalguns pratica-se uma taxa social única calculada sobre o salário (p. ex. Portugal), noutros a taxa de quotização é variável, de forma mais ou menos aleatória. ]
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É possível lutar apenas pela manutenção e bom funcionamento da segurança social? Ou essa luta defensiva está condenada ao fracasso se não atacarmos a questão do sistema da dívida? A resposta a esta questão é determinante na escolha das formas de reivindicação e luta pela defesa da segurança social e dos direitos humanos a ela associados.
8. É inútil falar da sustentabilidade da segurança social sem colocar em causa as políticas fiscais, sobretudo no que diz respeito à taxação do grande capital e das operações financeiras
La Marlagne, Namur, Bélgica,
12/09/2015
Rui Viana Pereira
Consultar outros dados relevantes em anexo., nomeadamente um apontamento sobre a génese histórica dos diversos tipos de organizações de solidariedade e ajuda mútua, hoje confundidas na designação genérica de segurança social e caixas de pensões.
Fontes e referências
Versão pdf: Verdades e Mentiras da Segurança Social (292 KB, formato pdf) – esta versão pdf não contempla as emendas e melhoramentos entretanto introduzidas no artigo.
Páginas descendentes
Índice deste caderno
Segurança socialvisitas (todas as línguas): 5.637