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Da expropriação por dívidas não pagas, à dívida hipotecária e estudantil: a dívida privada na era capitalista
O endividamento das classes populares e a repressão do não pagamento das dívidas como fonte de acumulação primitiva do capitalismo
Na Europa, do século XVI ao XVIII, o endividamento privado das classes populares e a repressão do não pagamento de dívidas contribuíram para constituir uma massa de proletários: a prisão, a mutilação e a criação de cárceres contribuíram para forçar as populações empobrecidas a aceitar o trabalho nas fábricas. Tudo isso faz parte integrante do processo de acumulação primitiva que permitiu ao capitalismo impor-se como modo de produção dominante, primeiro na Europa, depois no resto do mundo (ver quadro «A acumulação primitiva por expropriação»). Grande parte da massa de proletários que afluíram às cidades, onde as fábricas começavam a se desenvolver, era constituída por populações rurais sobreendividadas que tinham sido expropriadas das suas terras pelos credores.
O não pagamento das dívidas foi violentamente reprimido até meados do século XIX nos países que estiveram no centro do desenvolvimento do sistema capitalista industrial: a Europa Ocidental e a América do Norte.
Havia pesadas penas de prisão para castigar os pobres que não tinham pago as suas dívidas. A pena capital era frequentemente aplicada em Inglaterra até ao século XVIII. Nos EUA, no estado da Pensilvânia, em finais do século XVIII, os maus pagadores podiam ser condenados ao chicote, ser pregados ao pelourinho por uma orelha, antes de lha cortarem. Arriscavam-se também a ser marcados a ferro em brasa. Em França aplicava-se sistematicamente penas de prisão; além, claro está, da expulsão do alojamento e da apreensão de todos os bens.
A acumulação primitiva por expropriaçãoKarl Marx destaca como fontes, por vezes violentas, da acumulação primitiva que permitiram ao capitalismo tornar-se preponderante sobre outros modos de produção: a separação radical entre o produtor e os meios de produção, a supressão dos bens comunais, o levantamento de muros nos terrenos agrícolas, a expropriação dos instrumentos de trabalho dos artesãos, a repressão sanguinária contra os expropriados (que tudo tinham perdido por causa de dívidas que não conseguiam reembolsar), a conquista colonial e a retalhação dos continentes conquistados pelas potências europeias, o comércio de escravos, o sistema da dívida pública1. Silvia Federici acrescenta a caça às bruxas, esse vasto movimento de repressão sangrenta das mulheres que vai de finais do século XV a meados do século XVII. Ernest Mandel resume a posição de Marx e sublinha que «Se pode mesmo afirmar que Marx subestimou a importância da pilhagem do Terceiro Mundo na acumulação do capital industrial na Europa Ocidental»2. Rosa Luxemburgo, em 1913, em A Acumulação do Capital, analisa também o processo de acumulação original e o seu prolongamento na era imperialista de finais do século XIX.3 |
Alguns exemplos de expropriação e de resistência, do século XVIII ao XIX
Nos EUA, pouco depois da independência, nasceram vários movimentos de protesto dos camponeses cujas terras e bens tinham sido confiscados por não pagamento de impostos e taxas. Estes pagamentos eram cobrados em numerário, mas muitos camponeses não tinham dinheiro, ou tinham muito pouco, pois vivam de trocas e pagamentos em espécie. Muitos agricultores tinham servido nos exércitos revolucionários sem nunca terem recebido o soldo por inteiro. No Massachusetts, em 1782 em Groton e em 1873 em Uxbridge, os cidadãos organizaram-se e atacaram as autoridades, exigindo a devolução dos bens confiscados. No início da Rebelião de Shays, em 1786, as multidões impediram os tribunais de se estabelecerem em Northampton e em Worcester, depois de o governador Bowdoin ter metido processos judiciais destinados a cobrar dívidas e de a legislatura ter imposto uma taxa suplementar destinada a financiar o pagamento da parte que cabia ao Massachusetts na dívida externa dos EUA. Daniel Shays, que deu nome ao movimento, era um antigo combatente que não foi pago. Teve de comparecer em tribunal por faltar ao pagamento dos impostos.
A partir de 1798 organizou-se um movimento de autodefesa dos endividados que exigia a aprovação de uma legislação que os protegesse do arbítrio dos credores e da justiça. Foi aprovada uma lei federal em 1800, mas esta lei limitava-se a proteger os banqueiros e os comerciantes que falhassem o pagamento. Entretanto os outros estados continuaram a recorrer às suas próprias leis, que na maior parte dos casos favoreciam os credores.
Scott Standage4 cita um livro de 1828, The Patriot; or, People’s Companion, que advogava a abolição do encarceramento dos devedores, opinando que a dívida constituía uma forma de «escravatura civil» equivalente à escravatura dos Negros – os devedores, tal como os escravos, não beneficiavam de nenhuma protecção na Constituição.
A tentativa de escapar aos credores era uma das causas da corrente migratória do Leste dos EUA para o Oeste, o Far West. Grande parte dos europeus que participaram na colonização do Novo Mundo nos séculos XVII e XVIII tinha-se endividado para pagar a viagem e encontrava-se numa situação de servidão em relação aos seus credores. Durante muitos anos viam-se obrigados a reembolsar a dívida inicial e estavam sob a ameaça de prisão ou mutilação em caso de incumprimento. Calcula-se que entre metade e dois terços dos europeus que se instalaram nas 13 colónias britânicas da América do Norte entre 1630 e 1776 estavam em situação de servidão por causa de dívidas.5 Este tipo de servidão por dívida só em 1917 foi abolido nos EUA.
O mesmo tipo de contrato de endividamento para financiar a colonização foi aplicado no conjunto do Império Britânico. Milhões de pobres abandonaram a Índia nessas condições, para se instalarem nas Caraíbas britânicas, na ilha Maurícia, na África do Sul e noutras parte do Império. Só na ilha Maurícia, entre 1834 e 1917, perto de um milhão e meio de indianos instalou-se aí, mas viu-se obrigado pela miséria a aceitar contratos de servidão por dívida6.
Em 1875, na Índia, numa vasta região chamada Decão [en: Deccan], estalaram revoltas nas quais os camponeses endividados se levantaram para destruir sistematicamente os livros de contas dos usurários e assim repudiarem as dívidas7. A revolta durou dois meses e envolveu uma trintena de aldeias, num raio de 6500 km2. Foi criada em Londres uma comissão de inquérito parlamentar e em 1879 foi aprovada uma lei intitulada «Dekkhan Agriculturists’ Relief Act»8 que oferecia alguma protecção aos camponeses endividados.
Em 1880 os pequenos e médios agricultores dos EUA foram atingidos por uma crise da dívida. O mesmo voltou a acontecer em escala massiva na década de 1930, como descreve John Steinbeck no seu célebre romance As Vinhas da Ira, publicado em 1939. Estas crises sucessivas provocaram a expropriação de milhões de agricultores americanos endividados, em benefício das grandes empresas privadas do agronegócio.
Do truck system do século XIX ao crédito ao consumo do século XX
No século XIX, com a generalização da revolução industrial e a expansão do capitalismo, os patrões puseram em prática o truck system, que endividava permanentemente os assalariados: os trabalhadores, enquanto aguardavam o pagamento do salário, tinham de comprar na loja do patrão todos os bens essenciais de que necessitavam para sobreviverem – alimentos, meios de aquecimento, de iluminação, vestuário, etc. Eram-lhes cobrados preços exorbitantes e no momento de receberem, depois de descontadas as compras que tinham feito, era frequente terem de reconhecer uma dívida, pois as despesas excediam o salário. Para resolverem esta situação, os trabalhadores tiveram de travar duras lutas. É também uma das razões que levaram os operários a criarem cooperativas para produzir alimentos (padarias, etc.) ou para vender a preços suportáveis os produtos de primeira necessidade.* Por fim, o truck system foi proibido.
Depois da Segunda Guerra Mundial, as décadas de 1950-60 foram marcadas, nos países mais industrializados (o mesmo se diga de vários países do Sul, como a Argentina, por exemplo), por um período de forte crescimento económico (os «trinta gloriosos») que permitiu aos trabalhadores obter, através das suas lutas, grandes avanços sociais: nítido aumento do poder de compra, consolidação do sistema de segurança social, melhoria dos serviços públicos, em particular na saúde e no ensino … Além disso o Estado efectuou um considerável número de nacionalizações, ganhando assim poder de intervenção económica. As populações tiraram proveito da riqueza criada à escala nacional; a parte dos salários na repartição do rendimento nacional aumentou.
A partir da ofensiva neoliberal iniciada no Chile em 1973 com a ditadura de Pinochet e na Argentina em 1976 com a ditadura de Videla (ditaduras que beneficiaram do apoio activo de Washington) e depois desenvolvida por Thatcher e Reagan durante os anos 1980, os salários reais encolheram. Nos países mais industrializados, o consumo de massa foi aumentando à custa do crescente endividamento da população9. Os governantes, os bancos e as grandes empresas privadas de indústria e comércio favoreceram o recurso cada vez mais massivo ao endividamento das famílias.
A prisão por dívidas relativas a multas não pagas ao Estado não desapareceu em toda a partePor estranho que possa parecer, o não pagamento de dívidas privadas, incluindo as quantias devidas ao Estado, ainda hoje é passível de prisão em vários países europeus, apesar de estar proibida em várias convenções internacionais10. Em França, a prisão por dívida foi abolida por dois breves períodos, em 1793 e em 1848. Foi definitivamente suprimida em matéria civil e comercial pela lei de 22 de julho de 1867. O Código de Processo Penal suprimiu-a em 1958 nos processos penais no que diz respeito às indemnizações concedidas à parte civil. Actualmente, a prisão por dívidas só se aplica a multas, custas judiciais e pagamentos ao Tesouro e, mesmo assim, apenas se a infracção for de direito comum e não implicar uma pena de prisão perpétua. Portanto em França a restrição judicial consiste em encarcerar ou deter uma pessoa solvente por falta de pagamento de determinadas multas impostas pelo Tesouro ou pelas autoridades aduaneiras11. Na Bélgica, a prisão (chamada prisão subsidiária) por não pagamento das multas continua a ser possível, apesar de há vinte anos sucessivos ministros da Justiça recomendarem a sua não aplicação. A resposta do ministro da Justiça belga à pergunta colocada por um deputado de extrema-direita (Vlaams Belang), numa época em que esse partido obteve mais de 20 % dos votos, foi a seguinte: «Se a coima não for paga no prazo de dois meses a contar da data da sentença ou acórdão condenatório, ou da sua notificação, se for proferida à revelia, pode ser substituída por pena de prisão por tempo determinado na sentença ou acórdão condenatório, que não pode exceder seis meses para os condenados por crime doloso, três meses para os condenados por contraordenação e três dias para os condenados por crime leve». «Se apenas tiver sido aplicada uma multa, a pena de prisão em caso de não pagamento é equiparada a uma pena de prisão correccional ou policial, consoante a natureza da condenação». O artigo 41 estipula: «Em todos os casos, o condenado pode livrar-se desta prisão mediante o pagamento da coima; não pode evitar a apreensão dos seus bens oferecendo-se para ser preso»12. Na prática, um juiz belga pode emitir uma sentença que preveja a prisão subsidiária (o que só acontece em processos penais). Nesse caso, o juiz prevê uma multa e indica que se a pessoa assim desejar, ou não tiver meios para tanto, poderá cumprir tempo de prisão. Evidentemente, o rico preferirá pagar a multa e evitar a prisão, ao passo que uma pessoa de baixos rendimentos e reduzido ou nulo património terá de ir para a prisão. Isto mostra que a justiça, na prática, é uma justiça de classe. O ministro especificou ainda: «Em 2000, das 22.632 condenações a uma multa em processos penais, o Ministério Público abriu 3745 processos relativos à execução de penas de prisão subsidiárias. Em 2001, das 21.375 condenações a uma multa, apenas 1745 processos relativos à execução de penas de prisão subsidiária foram abertos pelo Ministério Público». Ainda que, na prática, as penas de prisão nunca sejam aplicadas ou só raramente, o facto de certos países manterem essa possibilidade é inquietante. De facto, caso a extrema-direita consiga aceder ao governo e os métodos repressivos sejam reforçados de forma permanente, é possível virmos a assistir ao pronunciamento de penas de prisão por dívida, que obviamente recairão sobre as classes populares. Não faltam magistrados reaccionários no aparelho judicial, dispostos a tomarem iniciativas que reforçarão o carácter de classe na aplicação da lei. De forma genérica, Jami Hubbard Solli demonstrou que em mais de 20 países a lei autoriza os credores a pedirem a prisão dos devedores em caso de incumprimento dos pagamentos13. Por exemplo, no Quénia e no Uganda, esta legislação é aplicada a torto e a direito. De facto, várias centenas de pessoas incapazes de reembolsar as suas dívidas encontram-se encarceradas. [N. do T.: No Brasil, a Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente a prisão civil por dívida, com excepção da dívida de pensão alimentícia. O que pode acontecer em caso de não pagamento de outras dívidas é a inclusão do nome do devedor em cadastros de inadimplentes, como o Serasa e o SPC. Essa medida pode gerar restrições de crédito e dificuldades financeiras, mas não é motivo para prisão (ver https://mvmadvogados.com.br/posso-ser-preso-por-uma-divida-entenda-a-lei/). Em Portugal as várias formas de prisão como meio de coacção posto à disposição do credor (Ordenações Filipinas, livro IV, título 76) foram revogadas pela Lei de 20 de Junho de 1774. As motivações desta lei, dirigida apenas aos «devedores de boa fé», segundo um tribunal da época visavam «desterrar de todos os Juízos e Auditórios a barbaridade, com que trataram aos devedores as primeiras Leis Romanas, de que ainda são relíquias as prisões contra os devedores de boa fé, era violentíssimo este procedimento; pois não havendo Lei alguma Civil, ou Criminal, que o decrete sem culpa, nenhuma há nos devedores pobres, que se impossibilitaram para pagar, pelos adversos casos da fortuna: servindo nestes termos as prisões de cevarem o ódio e a vingança dos credores, e de oprimirem, contra todas as razões da humanidade, os miseráveis devedores, até darem a vida nos horrorosos cárceres, em que os têm detidos; (…) postos em liberdade os devedores, adquiririam meios, com que satisfizessem as suas dívidas, e até a República se serviria deles, empregando-os nos seus respectivos ministérios» (consultar Acórdão do Tribunal Constitucional, https://www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_busca_palavras.php?buscajur=calv%E3o&ficha=45&pagina=1&exacta=&nid=4179). No caso de dívidas ao Estado, pode ser aberto um processo de execução fiscal, do qual resultará a penhora dos bens do devedor, excepto quando este declare insolvência. Há no entanto bens impenhoráveis (os imprescindíveis à sobrevivência doméstica e ao exercício da profissão) e desde 2016 a morada de família do devedor não pode ser penhorada (ver https://www.advogadosinsolvencia.pt/mapa/dividas-as-financas).] |
Dívidas hipotecárias ilegítimas e despejos
Quando a bolha imobiliária estalou no Japão (anos 1990), nos EUA (2006-2007), na Irlanda e na Islândia (2008), em Espanha (2009), dezenas de milhões de famílias das classes populares viram-se na impossibilidade de continuarem a pagar e foram vítimas de despejos em massa14. Num contexto de diminuição do salário real, desemprego massivo e condições de empréstimo abusivas, os efeitos dessas dívidas são catastróficos para uma parte crescente dos sectores populares. Nos EUA, desde 2006, 14 milhões de famílias foram expropriadas dos seus alojamentos pelos bancos15. No caso da Espanha são mais de 300.000 famílias. Somos confrontados mais uma vez, na história dos países do Norte, com um fenómeno massivo de expropriações brutais. Nos EUA a justiça contabilizou para cima de 500.000 casos de contratos imobiliários abusivos e fraudulentos. Na Espanha, a legislação usada pelos banqueiros para expulsar as famílias dos seus alojamentos data da época do ditador Franco. Na Grécia, no âmbito do terceiro memorando, aceite pelo governo de Tsipras em 2015, os bancos passaram a ter a liberdade de despejar as famílias incapazes de pagar as suas dívidas hipotecárias16. Nos EUA, em Espanha, na Irlanda, na Islândia, na Grécia, etc., nasceu um novo tipo de movimento e de mobilizações, para resistir a esta política de expropriações/despejos.
Dívidas estudantis ilegítimas
Nos países anglo-saxões mais industrializados e no Japão a aplicação das políticas neoliberais no sistema de educação aumentaram dramaticamente o custo de frequência do ensino superior e restringiram consideravelmente o acesso a bolsas de estudo. O mesmo fenómeno afecta outros países, à escala mundial.
Isto obrigou dezenas de milhões de jovens das classes populares a endividarem-se em proporções dramáticas, a fim de frequentarem o ensino superior. Nos EUA a dívida estudantil ultrapassa os 1,7 biliões [pt-br: trilhões] de dólares, ou seja, o dobro da dívida pública total do conjunto dos países do continente africano, que tem mais de 1000 milhões de habitantes17 – um limiar simbólico, que exprime a gravidade da situação. Dois estudantes em cada três estão endividados e devem em média 37.667 dólares. Em 2008, 80 % dos estudantes que terminaram o doutoramento em direito tinham acumulado uma dívida de 77.000 dólares caso tivessem frequentado uma universidade privada, ou 50.000 numa escola pública. O endividamento médio dos estudantes que concluíram um ano de especialização em Medicina ascendia aos 140.000 dólares. Palavras de uma estudante que concluiu o doutoramento em direito, a um jornal italiano: «Acho que nunca vou conseguir reembolsar as dívidas que contraí para pagar os meus estudos; há dias em que penso que quando morrer, ainda hei-de ter mensalidades da dívida por pagar. Actualmente tenho um plano de reembolso escalonado em 27 anos e meio, mas é demasiado ambicioso, porque a taxa é variável e tenho grande dificuldade em pagar (…). O que me preocupa mais é que sou incapaz de poupar, e a minha dívida continua a assombrar-me»18.
Ao sofrerem importantes discriminações no acesso ao emprego, na distribuição dos salários e na repartição do trabalho doméstico não remunerado (no caso das mulheres), as mulheres e as pessoas racializadas são as principais afectadas por um sistema universitário baseado no endividamento19. Elas endividam-se pesadamente e levam muito mais tempo a reembolsar os empréstimos. Em 2019, 20 anos depois de terem iniciado os seus estudos, as pessoas negras endividadas ainda deviam 95 % da sua dívida estudantil. Os brancos na mesma situação já tinham reembolsado 94 % desse empréstimo20.
No Japão, um/uma estudante em cada dois está endividado. O endividamento médio dos estudantes equivale a 30.000 dólares. No Canadá a tendência é semelhante21. Ir para a universidade custa cada vez mais caro, enquanto no mercado de trabalho, desregulado e saturado, é cada vez mais difícil encontrar um emprego bem pago. Concluídos os seus estudos, os jovens endividados e respectivas famílias passam por dificuldades cada vez maiores para reembolsar as dívidas. Para as reembolsarem, são muitas vezes levados a aceitar empregos muito precários e condições de trabalho degradantes. Entretanto, os bancos fazem gordos lucros graças às dívidas estudantis. Tal como no caso das dívidas hipotecárias ilegítimas, estão a nascer novas formas de luta para combater as dívidas estudantis ilegítimas. Tal é o caso dos EUA, onde encontramos o movimento Strike Debt! Assistimos a tentativas de federar as diversas resistências contra a dívida: dívidas estudantis, dívidas hipotecárias, dívidas de consumo, dívidas ligadas aos impostos, não esquecendo a dívida pública22.
O sobreendividamento afecta e degrada as condições de vida de uma parte cada vez maior das camadas populares em todos os países mais industrializados. Na Bélgica, o número de pessoas em processos de regularização colectiva de dívidas mais do que duplicou entre 2007 e 2017.
As mulheres chefes de família monoparental são por toda a parte duramente afectadas pelo endividamento. Os sofrimentos resultantes das humilhações a que estão sujeitas as pessoas sobreendividadas não param de aumentar. As intrusões praticadas pelas autoridades na vida privada e domiciliar dos/das sobreendividados multiplicam-se e agravam-se. Dada a precarização do trabalho e os salários miseráveis pagos em empregos a tempo parcial ou completo, cada vez mais assalariados e assalariadas são vítimas do sistema da dívida.
A fábrica de endividados
Nas últimas décadas, a política de destruição das conquistas sociais levada a cabo por sucessivos governos e pela classe capitalista tem atacado a estabilidade dos contratos de trabalho, sejam eles individuais ou colectivos. Os direitos elementares dos/das trabalhadores e dos beneficiários da segurança social são apresentados como privilégios e obstáculos à competitividade e à flexibilidade. É levada a cabo uma campanha sistemática a favor do autoemprego, fazendo crer numa perspectiva de libertação. Cada vez mais pessoas são levadas a endividar-se para se autoempregarem, para criarem a sua microempresa, para se tornarem elas próprias numa empresa, para explorarem elas próprias o seu «capital humano». Como diz Maurizio Lazzaretto no seu livro La Fabrique de l’homme endetté [A Fábrica de Endividados], «Na economia da dívida, tornar-se capital humano ou ser empreendedor de si mesmo significa assumir os custos e os riscos de uma empresa flexível e financiarizada, custos e riscos esses que não são apenas, longe disso, os da inovação, mas também e sobretudo os da precariedade, da pobreza, do desemprego, dos serviços de saúde deficientes, da penúria de habitações, etc.»23. Aumenta o número de pessoas que, tendo tentado o autoemprego, caíram no sobreendividamento e perderam o pouco que possuíam. Mais adiante, escreve Lazzarato: «O processo estratégico do programa neoliberal, no que diz respeito ao estado-providência, consiste numa progressiva transformação dos “direitos sociais” em “dívidas sociais” que as políticas neoliberais tendem a transformar em dívidas privadas, paralelamente à transformação dos que “têm direitos” em “devedores” aos fundos de desemprego (no caso dos desempregados) e ao Estado (no caso dos beneficiários dos subsídios de mínimos sociais)»24. Enquanto as políticas dos governos neoliberais levam ao empobrecimento dos assalariados (congelamento ou redução dos salários, precarização, etc.) e de outros detentores de direitos sociais (congelamento ou redução das reformas, redução ou supressão das ajudas sociais, degradação ou extinção de certos serviços públicos, diminuição ou supressão do subsídio de desemprego, redução ou supressão das bolsas para estudantes, etc.), «a finança faz de conta que os enriquece através do crédito e da venda de acções. Nada de aumentar o salário directo ou indirecto (pensões de reforma), mas crédito ao consumo e incitamento à renda bolsista (fundos de pensão, seguros privados); nada de direito à habitação, mas crédito imobiliário; nada de direito à escolarização, mas empréstimos para pagar os estudos; nada de mutualização contra riscos (desemprego, saúde, reforma, etc.), mas investimento nos seguros pessoais»25.
Entre os/as refugiados que chegam à Europa depois de ultrapassarem os piores obstáculos, muitos são os que se endividaram para poderem lançar-se na grande viagem para uma terra de asilo. São levados a aceitar as piores condições de trabalho, a fim de reembolsarem as suas dívidas, sabendo que uma parte da sua família, que ficou no país de origem, está sujeita à pressão dos credores. Das mulheres imigradas que são empurradas para a prostituição, muitas fazem-no para reembolsarem uma dívida ilegítima.
Desde que estalou a crise nos países mais industrializados, em 2007, assistimos a um novo endurecimento do «sistema da dívida», na sua faceta da dívida privada: dívidas hipotecárias abusivas, dívidas estudantis ilegítimas, dívidas de consumo alienantes e empobrecedoras. Tudo isto a par da acção dos governos que recorrem ao aumento da dívida pública, que alimentam para reforçar a ofensiva contra as conquistas sociais do século XX.
É preciso apoiar as iniciativas que abraçam a luta contra as dívidas privadas ilegítimas
Como é que se pode esperar que pessoas humilhadas por estarem sobreendividadas, abusadas pelos bancos, expulsas das suas casas e que, apesar disso, ainda devem uma parte da dívida, se mobilizem em conjunto para deixar de pagar a dívida pública do Estado ou para uma acção colectiva sobre os direitos dos trabalhadores? Se foram derrotados na sua luta pessoal por não haver um movimento de resistência suficientemente forte para impedir os despejos, para sair de outras formas de sobreendividamento, podem não encontrar forças para continuar a lutar, podem considerar que a questão da dívida pública ilegítima não lhes diz respeito, e o mesmo se aplica às lutas colectivas pelos direitos sociais. É preciso apoiar as iniciativas que abraçam a luta contra as dívidas privadas ilegítimas.
Notas
[1] Ver o Volume 1 de O Capital, Parte VIII: «A Chamada Acumulação Original» (transcrição de ed. Centelha, Coimbra, 1974, com tradução de J. Teixeira Martins e Vital Moreira).
[2] «Accumulation primitive et industrialisation du tiers-monde», in Victor Fay (ed.) partindo de O Capital, Paris: Anthropos, pp. 143–168.
[3] Rosa Luxemburgo, A Acumulação do Capital, disponível em formato pdf em https://www.trama.ufscar.br/wp-content/uploads/2013/10/A-Acumula%C3%A7%C3%A3o-do-Capital.pdf. Ver também David Harvey (2010), Le Nouvel impérialisme, Paris, Les Prairies ordinaires; bem como Jean Batou, Accumulation par dépossession et luttes anticapitalistes: une perspective historique longue – CONTRETEMPS, https://www.contretemps.eu/accumulation-par-depossession-et-luttes-anticapitalistes-une-perspective-historique-longue/
[4] Standage, Scott, Born Losers: A History of Failure in America, Harvard University Press, 2005.
[5] Galenson, David (March 1984). «The Rise and Fall of Indentured Servitude in the Americas: An Economic Analysis». The Journal of Economic History. 44 (1): 1–26.
[6] https://www.sscnet.ucla.edu/southasia/Diaspora/freed.html
[7] Ver David Graeber. Ver também Peasant movements and tribal uprisings in the 18th and 19th centuries: Deccan Uprising (1875) – HISTORY AND GENERAL STUDIES.
[8] Ver o texto da lei Dekkhan Agriculturists’ Relief Act, 1879, https://indiankanoon.org/doc/1545750/.
[* O mesmo sistema era praticado pelos latifundiários portugueses nalgumas regiões, ainda no século XX. Todos os dias os trabalhadores abichavam à porta do latifundiário, para serem escolhidos (ou não) nesse dia, mas antes de irem trabalhar para os campos, forneciam-se na loja do patrão. Era frequente chegarem ao fim da jorna com saldo negativo. [N. do T.]
[9] Ver Éric Toussaint, «A Grande Transformação, dos Anos Oitenta Até a Crise Atual», 8/09/2009.
[10] De resto a prisão por dívidas é proibida no artigo 1.º do protocolo nº 4 da Convenção de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, onde se reconhece que certos direitos e liberdades, além dos que já figuram na Convenção e no primeiro protocolo adicional à Convenção, emendado pelo protocolo nº 11. Cf.: http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_FRA.pdf
[11] Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/Contrainte_judiciaire e http://www.farapej.fr/Documents/Fiches/04.pdf
[12] Bulletin n° : B123 - Question et réponse écrite n° : 0599 - Législature : 50, Date de publication: 04/06/2002. https://www.lachambre.be/kvvcr/showpage.cfm?section=qrva&language=fr&cfm=qrvaXml.cfm?legislat=50&dossierID=50-b160-17-0599-2001200201008.xml
[13] Jami Hubbard Solli, «Heavily indepted Humans Deserve Debt Relief (Just as Nations do)», CADTM, 04/10/2022, https://www.cadtm.org/Heavily-indebted-Humans-Deserve-Debt-Relief-Just-as-Nations-Do
[14] Éric Toussaint, «2007-2017: Les causes d’une crise financière qui a déjà 10 ans», http://www.cadtm.org/2007-2017-Les-causes-d-une-crise
[15] Éric Toussaint, «Estados Unidos: Os Abusos dos Bancos no Setor Imobiliário e as Ações de Despejo Ilegais», 4/04/2009. ver ainda Éric Toussaint, «Os Bancos e a Nova Doutrina “Too Big to Jail”».
[16] Ver Eva Betavatzi & Filippos Filippides, «“The Greek government and banks try to take away our homes every Wednesday at civil tribunals”», 15/12/2017.
[17] Consultar o site do Banco Mundial, http://datatopics.worldbank.org/debt/ids/region/SSA.
[18] La Repubblica, 4/08/2008, citado por Maurizio Lazzarato, La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, Éd. Amsterdam, 2011, p. 28.
[19] Ver Maxime Perriot, «L’annulation de la dette étudiante par Joe Biden, un pansement nécessaire mais largement insuffisant», CADTM, 12/10/2022, https://www.cadtm.org/L-annulation-d-une-partie-de-la-dette-etudiante-par-Joe-Biden-un-pansement.
[20] Taylor Nicole Rogers, Gary Silverman, «Race and Finance: The Student Loan Trap», Financial Times, 21/12/2021, https://www.ft.com/content/51ece9ca-750b-49ef-aacb-834b8e691eea. Estudo sobre os empréstimos a 25 anos feito pelo Federal Reserve Bank of St Louis, publicado em 2017.
[21] Lutas & dívidas estudantis no Quebec: «Tant qu’on n’aura pas renversé le capitalisme, on ne pourra pas sauver l’éducation» (entrevista com Éric Martin, realizada por Maud Bailly).
Ver também Isabelle Ducas, «L’endettement étudiant, un lourd fardeau».
Ver o sítio oficial do Governo canadiano: «Rembourser votre dette d’étudiant».
[22] Ver Strike Debt!, The Debt Resisters’ Operations Manual e em particular o que diz respeito às dívidas estudantis, http://strikedebt.org/drom/chapter-four/.
[23] Maurizio Lazzarato, La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, ed. Amsterdam, 2011, p. 42.
[24] Maurizio Lazzarato, ibid., p. 81.
[25] Maurizio Lazzarato, ibid., p. 85.
De Babilónia aos conquistadores das Américas: a tradição de anulação das dívidas privadas ilegítimas
As dívidas privadas ao longo dos tempos
Há 5000 anos que as dívidas privadas desempenham um papel central nas relações sociais. A luta entre ricos e pobres, entre exploradores e explorado/as, tomou bastas vezes a forma de conflito entre credores e devedores. Com regularidade notável, as insurreições populares começaram muitas vezes da mesma maneira: com a destruição ritual de documentos relativos à dívida (tábuas, papiros, pergaminhos, livros de contas, registos de impostos, etc.). Estes acontecimentos são descritos nomeadamente por David Graeber no seu livro Dívida: os Primeiros 5000 Anos*, mas não é o único a fazê-lo.
Os efeitos da pandemia de covid-19 e as respostas impostas pelos governos aumentaram consideravelmente as dívidas das classes populares, nomeadamente no sector mais oprimido, o dos pobres. Antes disso, a crise internacional precedente, que começou em 2007, já tinha posto a nu o comportamento fraudulento dos bancos, designadamente em matéria de empréstimos imobiliários em diversas partes do mundo, em especial no Norte. Na sequência dos despejos massivos que tiveram lugar nos EUA, em Espanha e noutros países, cada vez mais pessoas puseram em causa as dívidas, mesmo em países onde a obrigação de reembolsar uma dívida era incontestável. Dos quatro cantos da Terra surgiram movimentos sociais que punham em causa o pagamento de dívidas privadas ilegítimas, quer se tratasse de dívidas hipotecárias ou estudantis, quer fossem reclamadas por grandes bancos ou por agências de microcrédito que concedem empréstimos com condições abusivas.
A seguir expomos, em traços largos, algumas das etapas históricas do «sistema da dívida privada» no Próximo Oriente, na Europa e nos quatro cantos do mundo conquistado pelos europeus. Seria preciso acrescentar o que se passou na Ásia, em África e nas Américas pré-coloniais, mas o quadro aqui esboçado é por si só já é bastante eloquente.
Hamurabi, rei da Babilónia, e as anulações da dívida2
O Código de Hamurabi encontra-se no Museu do Louvre, em Paris. De facto, o termo «código» não é apropriado, pois o que Hamurabi nos legou foi um conjunto de regras e de julgamentos respeitantes às relações entre os poderes públicos e os cidadãos. O reinado de Hamurabi, «rei» da Babilónia (situada no actual Iraque), teve início em 1792 a. C. e durou 42 anos. O que a maior parte dos manuais de História não revelam é que Hamurabi, tal como outros governantes das cidades-estado da Mesopotâmia, proclamou por diversas vezes a anulação geral das dívidas dos cidadãos aos poderes públicos, aos seus funcionários e dignitários. O chamado Código de Hamurabi foi provavelmente escrito em 1762 a. C. O seu epílogo proclamava que «o poderoso não pode oprimir o fraco, a justiça deve proteger a viúva e o órfão (…) a fim de prestar justiça aos oprimidos». Graças à decifração de numerosos documentos escritos em caracteres cuneiformes, os historiadore/as descobriram indícios incontestáveis de quatro anulações gerais da dívida durante o reinado de Hamurabi – em 1792, 1780, 1771 e 1762 a. C.
Na época de Hamurabi, a vida social, económica e política era organizada em torno do templo e do palácio. Estas duas instituições, muito imbricadas, constituíam o aparelho de estado, o equivalente aos actuais poderes públicos; aí trabalhavam numerosos artesãos e operários, além dos escribas. Todos eram abrigados e alimentados pelo templo e pelo palácio; recebiam rações alimentares que lhes garantiam duas refeições por dia. Os trabalhadore/as e dignitários do palácio eram alimentados graças à actividade de camponeses a quem os poderes públicos forneciam (alugavam) terras, instrumentos de trabalho, animais de tiro, gado, água para irrigação. As famílias lavradoras produziam, entre outros produtos, cevada (o cereal de base), azeite, frutos e legumes. Após as colheitas, as famílias camponesas deviam entregar uma parte ao estado, para pagarem o aluguer. Em caso de más colheitas, acumulavam dívidas. Além de trabalharem nas terras do templo ou do palácio, as famílias camponesas eram proprietárias das suas terras, das suas habitações, do seu gado e dos instrumentos de trabalho. Outra fonte das dívidas das famílias camponesas eram os empréstimos concedidos a título privado por altos funcionários e dignitários, a fim de enriquecerem e de se apropriarem dos bens das famílias camponesas, em caso de não reembolso das dívidas.
Quando as colheitas eram fracas, as famílias camponesas viam-se impossibilitadas de reembolsarem as dívidas contraídas em relação ao Estado (imposto em espécie não pagos) ou em relação aos altos funcionários e dignitários do regime, acabando por serem desapossados das suas terras e escravizados. Os membros da sua família eram igualmente reduzidos à escravidão por dívida. A fim de dar resposta ao descontentamento popular, o poder instituído anulava periodicamente as dívidas privadas3 e restaurava os direitos dos camponeses. As anulações eram celebradas com grandes festividades, durante as quais eram destruídas as tábuas de argila onde as dívidas4 estavam inscritas.
As anulações gerais da dívida estendem-se ao longo de 1000 anos na Mesopotâmia, entre 2400 e 1400 antes de Cristo
As proclamações de anulação geral das dívidas não se restringem ao reinado de Hamurabi; começaram antes dele e prolongaram-se depois5. Temos provas das anulações de dívida que remontam a 2400 a. C., ou seja seis séculos antes do reinado de Hamurabi, na cidade de Lagash (Sumer); as mais recentes datam de 1400 a. C., em Nuzi. Ao todo, os historiadore/as identificaram com exactidão cerca de 30 anulações gerais da dívida na Mesopotâmia entre 2400 e 1400 a. C. Concordamos com Michael Hudson6 quando ele afirma que as anulações gerais da dívida constituíam uma das principais características das sociedades da Idade do Bronze na Mesopotâmia. Aliás, encontramos nas diversas línguas mesopotâmicas expressões que designam essas anulações que rasuram as contas e põem os contadores a zero: amargi em Lagash (Sumer), nig-sisa em Ur, andurarum em Ashur, misharum em Babilónia, shudutu em Nuzi.
Estas proclamações de anulação da dívida davam azo a grandes festividades, geralmente durante a festa anual da primavera. Durante a dinastia da família de Hamurabi instaurou-se a tradição de destruir as estelas onde estavam inscritas as dívidas. De facto, os poderes públicos mantinham uma contabilidade rigorosa, escrita em tábuas que eram conservadas no templo. Hamurabi morreu em 1749 a. C., após 42 anos de reinado. O seu sucessor, Samsuiluna, anula todas as dívidas devidas ao Estado e decreta a destruição de todas as tábuas das dívidas, salvo as que diziam respeito a dívidas comerciais.
Quando Ammisaduqa, último governante da dinastia Hamurabi, subiu ao trono em 1646 a. C., a anulação geral das dívidas que ele proclama é muito detalhada. Tratava-se manifestamente de evitar que certos credores tirassem partido de certas falhas. O decreto de anulação precisa que os credores oficiais e os colectores de taxas que tinham expulsado famílias camponesas tinham de indemnizá-las e restituir os seus bens, sob pena de serem executados. Se um credor tivesse açambarcado um bem exercendo pressão, tinha de restituir ou reembolsar por inteiro, se não queria sofrer a pena de morte.
No seguimento deste decreto, foram criadas comissões para rever todos os contratos imobiliários e eliminar os que estivessem sob a alçada da proclamação de anulação da dívida e restauraão da situação anterior, o statu quo ante. A aplicação deste decreto foi facilitada pelo facto de em geral os camponese/as espoliados pelos credores continuarem a trabalhar nas suas terras, embora estas tivessem passado para a posse do credor. Logo, ao anular os contratos e ao obrigar os credores a indemnizar as vítimas, os poderes públicos restauravam os direitos dos camponese/as. A situação degradou-se um pouco mais de dois séculos depois.
Sem querer embelezar a organização das sociedades de há 3000 a 4000 anos, é preciso sublinhar que os governantes procuravam manter a coesão social, evitando a formação de grandes propriedades privadas, aplicando medidas para que as famílias camponesas mantivessem o acesso directo à terra, limitando o crescimento das desigualdades, cuidando a manutenção e desenvolvimento dos sistemas de irrigação. Michael Hudson sublinha por outro lado que a decisão de declarar guerra pertencia à assembleia geral de cidadãos e que o «rei» não podia tomar sozinho essa decisão.
Parece que, na cosmovisão dos Mesopotâmios da Idade do Bronze, a criação original não tinha sido feita por um deus. O governo, confrontado com o caos, reorganizou o mundo para restabelecer a ordem normal e a justiça.
A partir de 1400 a. C., não se encontrou mais nenhum acto de anulação da dívida. As desigualdades aumentaram e desenvolveram-se. As terras foram açambarcadas por grandes proprietários privados, a escravatura por dívida enraizou-se. Grande parte da opulação emigrou para noroeste, em direcção a Canaã, com incursões pelo Egipto (das quais se queixaram os faraós).
No decurso dos séculos seguintes, considerados pelos historiadore/as da Mesopotâmia como tempos obscuros (Dark Ages) – por causa da redução de registos escritos –, temos contudo provas de lutas sociais violentas entre credores e devedores.
Egipto: a pedra de Roseta confirma a tradição das anulações da dívida
A pedra de Roseta, que foi subtraída por membros do exército napoleónico em 1799, durante a campanha do Egipto, foi decifrada em 1822 por Jean-François Champollion. Encontra-se actualmente no British Museum, em Londres. O trabalho de tradução foi facilitado pelo facto de a estela apresentar o mesmo texto em três línguas: egípcio antigo, egípcio popular e grego do tempo de Alexandre, o Grande.
O conteúdo da pedra de Roseta confirma a tradição de anulação das dívidas, que foi instaurada pelos faraós do Egipto a partir do século VIII antes de Cristo, ou seja, antes da conquista por Alexandre, o Grande, no século IV a. C. Aí podemos ler que o faraó Ptolemeu V, em 196 a. C., anulou as dívidas devidas ao trono pelo povo egípcio e não só.
Embora a sociedade egípcia do tempo dos faraós fosse muito diferente da sociedade mesopotâmica da Idade do Bronze, também aí encontramos indícios evidentes de uma tradição de proclamação de amnistia que precede as anulações gerais da dívida. Ramsés IV (1153-1146 a. C.) proclamou que quem tinha fugido podia regressar ao país. Quem estava na prisão foi libertado. O seu pai Ramsés III (1184-1153 a. C.) fez o mesmo. Note-se que no segundo milénio parece não haver pena de pprisão por dívida no Egipto. Os escrevos eram prisioneiros de guerra. As proclamações de Ramsés III e IV diziam respeito aos impostos devidos ao faraó, à libertação dos prisioneiros políticos, à possibilidade de regresso das pessoas condenadas ao exílio.
Só a partir do século VIII a. C. Encontramos no Egipto proclamações de anulação de dívidas e de libertação de pessoas escravizadas por não pagamento de dívidas. É o caso do reinado do faraó Bakenranef (717-711 a. C., cujo nome foi helenizado para Bocchoris).
Uma das motivações fundamentais para as anulações da dívida era que o faraó queria dispor de um campesinato capaz de produzir alimentos suficientes para as campanhas militares. Por essas duas razões, era preciso evitar que os camponese/as fossem expulsos das suas terras pela mão dos credores.
Em outra zona da região verificamos que os imperadores assírios do primeiro milénio antes de Cristo também adoptaram a tradição da anulação das dívidas. O mesmo acontecia em Jerusalém, no século V a. C. Assim fez Neemias em 432 a. C., certamente influenciado pela antiga tradição mesopotâmica, ao proclamar a anulação das dívidas dos judeus endividados aos seus compatriotas ricos. Por essa época foi concluída a redacção da Tora7. A tradição das anulações gerais da dívida faz parte da religião judaica e dos primeiros textos do cristianismo via Deuterónimo, que proclama a obrigação de anular as dívidas a cada sete anos, e Levítico, que a exige a cada jubileu, ou seja, de 50 em 50 anos8.
Durante séculos, muitos comentadores dos textos antigos, a começar pelas autoridades religiosas que se colocam do lado das classes dominantes, afirmaram que estas prescrições tinham apenas um valor moral ou constituíam votos pios. Ora as investigações históricas dos dois últimos séculos demonstram que essas prescrições correspondem a práticas confirmadas.
Quando as classes privilegiadas conseguiram impor definitivamente os seus interesses, as anulações deixaram de ter lugar, mas a tradição da anulação permaneceu inscrita nos textos fundadores do judaísmo e do cristianismo. As lutas pela anulação das dívidas privadas marcaram a história do Próximo Oriente e do Mediterrâneo até meados do primeiro milénio da era cristã.
No «Pai Nosso», a oração a Jesus mais comum, em vez do actual «perdoai-nos as nossas ofensas [pecados] assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido», o texto grego original de Mateus (6, versículo 12) diz: «Senhor, anulai as nossas dívidas, assim como nós anulamos as dívidas de quem nos deve». De resto, em alemão e em holandês a palavra «Schuld» exprime indiferentemente o pecado e a dívida. Aleluia, esse termo que é sinal de alegria e é utilizado nas religiões judaica e cristã, provém da língua falada em Babilónia no segundo milénio antes de Cristo e significava a libertação dos escravos por dívida9.
Grécia. Na grécia, a partir do século VI antes da era cristã, assistiu-se a grandes lutas contra a escravatura por dívida e pela anulação das dívidas privadas do povo. Aristóteles escreveu em A Constituição de Atenas: «Os homens pobres, com a sua mulher e filhos, tornaram-se escravos dos ricos». Desenvolveram-se lutas sociais e políticas que acabaram por levar a disposições legais que proibiam a escravatura por dívida; assim aconteceu nomeadamente com as reformas de Sólon, em Atenas. Em Mégara, cidade próxima de Atenas, uma facção radical que conseguiu aceder ao poder proibiu os empréstimos com juros, e fê-lo com efeitos retroactivos, obrigando os credores a restituir os juros já recebidos10.
Ao mesmo tempo, as cidades gregas lançaram-se numa política expansionista e fundaram colónias, da Crimeia a Marselha, nomeadamente com os filhos dos pobres endividados. A escravatura desenvolveu-se então de maneira mais intensa, brutal e opressiva do que nas sociedades do Crescente Fértil que precederam.
As lutas pela anulação das dívidas privadas marcaram a história do Próximo Oriente e do Mediterrâneo até meados do primeiro século da era cristã
Roma. Muitas lutas políticas e sociais violentas foram provocadas por crises da dívida privada. Segundo a lei romana primitiva, o credor podia executar os devedores insolventes. O final do século IV a. C. foi marcado por uma forte reacção social contra o endividamento. Embora a escravização em resultado das dívidas tenha sido abolida para os cidadãos romanos, a abolição do empréstimo com juros não teve muito tempo de aplicação. Sucederam-se fortes crises de endividamento privado nos séculos seguintes, tanto na península Itálica como no resto do Império Romano. O historiador Tácito escreveu a propósito de uma crise de endividamento que ocorreu em 33 depois de Cristo, durante o reinado de Tibério: «O empréstimo a juros era um mal inveterado dentro da cidade de Roma, e causa frequente de sedições e discórdia; por isso foi restringido, mesmo nos tempos antigos...»1.
Idade Média. No início da época feudal, grande parte dos produtores livres foi sujeita à servidão, pois as famílias camponesas carregadas de dívidas viam-se incapacitadas para as reembolsar. Assim sucedeu nomeadamente durante o reinado de Carlos Magno, em finais do século VII, e no início do século IX2.
As religiões judaica, muçulmana e cristã no que respeita a empréstimos a juros
Desde a sua origem que a religião muçulmana proíbe o empréstimo a juros. O judaísmo proíbe-o no seio da comunidade judaica, mas a partir do primeiro século da era cristã3, por pressão dos ricos, corrigiu essa posição e passou a autorizá-lo. A religião cristã proibiu-o até ao século XV, mas depois as autoridades protestantes e católicas acabaram por permiti-lo.
Na Europa, a problemática das dívidas privadas é retomada de forma exacerbada no final da Idade Média
A problemática das dívidas privadas é retomada de forma exacerbada a partir dos séculos XIII e XIV com a monetarização das relações. De facto, as corveias e os impostos pagos em espécie foram progressivamente substituídos por quantias em dinheiro. Consequentemente, os camponeses, os artesãos, etc., tiveram de se endividar para pagarem os impostos. Não conseguindo reembolsar, cada vez mais camponeses, artistas ou operários tornaram-se vítimas dos confiscos, foram espoliados ou encarcerados e frequentemente mutilados4.
Em 1339, em Siena (Itália), o governo local da cidade anuncia ao conselho que é preciso abolir a prisão por dívidas, caso contrário haveria que meter na prisão quase todos os habitantes, tal era o seu nível de endividamento. Dezasseis anos mais tarde, em 1355, a população revoltada de Siena pega fogo à sala do palácio municipal onde estavam guardados os livros de contas. Tratava-se de fazer desaparecer todos os vestígios de dívidas que, aos olhos da população, eram odiosas5.
Outro sinal da importância da rejeição da exploração pela dívida, no final do século XIV, quando as classes trabalhadoras tomaram momentaneamente o poder em Florença – conduzidos pelos Ciompi, os/as operários à jorna da indústria têxtil –, vemos entre as suas reivindicações: suprimir a amputação de uma mão em caso de não pagamento das dívidas e declarar uma moratória para as dívidas não pagas6; exigiam ainda um lugar na governação e que os ricos pagassem mais impostos. Acontecimentos semelhantes ocorreram pela mesma época na Flandres, Valónia, França, Inglaterra, etc.
A rejeição das dívidas no âmago das insurreições massivas das famílias camponesas do mundo germânico nos séculos XV e XVI
De 1470 a 1525, múltiplos levantamentos camponeses, da Alsácia à Áustria, passando pela maioria das regiões da Alemanha, Boémia, Eslovénia, Hungria e Croácia, estão ligados em grande parte à rejeição das dívidas imputadas às famílias camponesas e citadinas das classes dominadas. Centenas de famílias camponesas pegaram em armas, destruíram centenas de castelos, dezenas de mosteiros e conventos. A repressão fez mais de 100.000 mortos entre os/as camponeses7. Numa dessas rebeliões, em 1493, os/as camponeses sublevados exigiam, entre outras coisas, a adopção de um ano de jubileu, de modo que periodicamente todas as dívidas fossem anuladas8. Thomas Münzer, um dos líderes dos levantamentos camponeses, decapitado em 1525 quando tinha 25 anos, apelava à aplicação integral dos Evangelhos, nomeadamente no que dizia respeito à anulação das dívidas. Opunha-se a Martinho Lutero, que, depois de ter começado por denunciar em 1519-1520 a usura e a venda de indulgências pela Igreja Católica, acabou por defender a partir de 1524 os empréstimos a juros e a exigir que os/as camponeses e todos os/as devedores reembolsassem as suas dívidas. Lutero defendia, em oposição aos levantamentos camponeses, «um governo temporal severo e duro que obrigue os ímpios (…) a devolverem o que pediram emprestado … Ninguém deve imaginar que o mundo possa ser governado sem derramamento de sangue; a espada temporal só pode ser vermelha e sangrenta, porque o mundo quer e deve ser mau; e a espada é a vara de Deus e a sua vingança contra o mundo»9. No conflito que opunha os/as camponeses e outras camadas do povo (nomeadamente a plebe urbana, assim como os sectores mais empobrecidos, vagabundos, mendigos, etc.) às classes dominantes locais, Lutero escolheu um lado e proclamou que as leis do Antigo Testamento (como o ano jubilar) já não eram aplicáveis. Segundo Lutero, o Evangelho apenas descreve o comportamento ideal; na vida real, dizia ele, as dívidas deveriam ser sempre reembolsadas.
Num texto anónimo que circulou na Alemanha a partir de 1521 encontramos este diálogo entre um camponês e um nobre que descreve bem a utilização do endividamento para desapossar o/a trabalhador dos seus utensílios ou da sua terra:
Camponês: O que me traz aqui? Bem, eu gostaria de saber como é que passais vosso tempo.
Nobre: Como é que hei-de passar o meu tempo? Estou aqui sentado a contar o meu dinheiro, pois não vês?
Camponês: Dizei-me, senhor, quem vos deu todo esse dinheiro que passais o tempo a contar?
Nobre: Queres saber quem me deu este dinheiro? Eu digo-te. Um camponês vem bater-me à porta e pede-me que lhe empreste 10 ou 20 guldens. Pergunto-lhe se tem um bom terreno. Ele diz: «Sim, senhor, tenho um bom prado e um excelente campo, que juntos valem cem guldens». Respondo-lhe: «Perfeito! Penhora o teu prado e o teu campo e, se te comprometeres a pagar um gulden por ano de juros, podes obter o teu empréstimo de 20 guldens». Feliz com esta boa notícia, o agricultor responde: «Dou-te a minha palavra de boa vontade». «Mas devo avisar-te», acrescento, «que, se não honrares o pagamento a tempo, tomarei posse das tuas terras e torná-las-ei minha propriedade». E isso não preocupa o agricultor, que me promete o seu pasto e o seu campo. Eu empresto-lhe o dinheiro e ele paga os juros pontualmente durante um ano ou dois; depois vem uma má colheita e ele fica logo com os pagamentos em atraso. Confisco-lhe a terra, despejo-o e o seu campo e o seu prado são meus. E faço-o não só com os camponeses mas também com os artesãos.10
Eis aqui, resumido em palavras simples, o processo de expropriação ao qual tentaram opor-se os/as camponeses e artesãos da Alemanha e de outras partes.
A conquista das Américas e a imposição da servidão por dívida
Como comenta David Graeber, os conquistadores, entre os quais Hernán Cortés, tinham-se endividado até ao pescoço para financiar as suas operações … De modo que exploraram e espoliaram com grande brutalidade as populações conquistadas, a fim de reembolsarem as suas dívidas11. Na conquista das Américas, a imposição da dominação europeia foi a par com a servidão por dívida das populações nativas12. A forma utilizada: a peonaje. O dicionário Littré definia no século XIX a péonage da seguinte maneira: «Assim se designa, no México, uma espécie de escravatura imposta aos indígenas, e que resulta do que os proprietários conseguem reter e os obrigar a trabalhar gratuitamente para saldar dívidas que esses trabalhadores contraíram junto dos proprietários». A peonaje é o sistema pelo qual os peões são atrelados à propriedade fundiária por diversos meios, entre eles a dívida hereditária. A peonaje apenas viria a ser abolida no México na década de 1910, durante a recolução.
Os perdões de dívida no país de Canaã no primeiro milénio antes da nossa era
A justiça social implementada através da concessão de perdões de dívida, que relacionam pobres e ricos, é um tema recorrente no Antigo Israel1.
Todos os sete anos, segundo o Deuteronómio, os israelitas são obrigados a libertar os escravos hebreus, que lhes foram vendidos a troco de dívidas, e a oferecer-lhes produtos provenientes dos seus rebanhos, dos seus campos e dos seus barris, para que não regressem de mãos vazias a casa (cf. Dt. 15,14 e Ex. 21,2).
Como a lei é pouco cumprida, o Levítico2 reformula: «Todos os cinquenta anos, será instituído um ano santo e será proclamada a libertação de todos os habitantes da terra... cada um de vós terá de volta o seu património e cada um de vós regressará à sua família» (Lv 25,10). E para garantir que a lei será mesmo respeitada, os códigos estipulam em detalhe como se deve fazer a compra e venda de bens entre particulares, tendo em conta o número de anos que decorreram após o jubileu anterior (ou seja, tendo em conta o número de anos que restam antes de esses bens voltarem para o seu antigo proprietário).
Se juntarmos a essas passagens os inúmeros versículos que proíbem a concessão de empréstimos a juros e a penhora de bens, temos uma ideia do que os israelitas do país de Canaã fizeram para tentarem manter um certo equilíbrio social.
Desde o ano 2000, as pesquisas arqueológicas no Médio Oriente, a história dos escritos egípcios e assírio-babilónicos e a análise dos anacronismos do texto bíblico trouxeram muitas revelações que transformam substancialmente a imagem que temos acerca das origens do povo hebreu3.
Os múltiplos e detalhados arquivos dos impérios do Médio Oriente e os vestígios materiais não confirmam a instalação dos hebreus em terras egípcias nem a sua partida, no século XIII a. C. As narrativas que retratam essa odisseia foram escritas a pedido do rei Josias e no âmbito da grande reforma deuteronómica, que ele lançou no século VII a. C. Em 721 a. C., os príncipes e sacerdotes do reino de Israel, no norte, foram encaminhados para o exílio pelos invasores assírios. Josias, que governou o Reino do Sul, sonha unificar os dois territórios e as duas populações que têm uma religião similar. Para conseguir isso, faz com que os seus escribas redijam, inspirando-se em heróis conhecidos, a narrativa sobre os altos feitos de David e Salomão, que supostamente terão reinado, com grande pompa, num país unificado, honrando um deus único e um templo único. E adiciona à narrativa, em jeito de prelúdio, a história de Abraão, dos seus filhos e dos avatares do seu povo no Egipto.
Na realidade, nos arquivos egípcios, que relatam os incidentes de fronteira, não há registo da chegada e do êxodo massivo dos hebreus em meados ou finais do segundo milénio a. C. No entanto, a epopeia bíblica contou com a memória, que permaneceu viva em Canaã, da invasão do delta egípcio pelos hicsos e da sua brutal expulsão no segundo milénio. Acredita-se que a narrativa do êxodo reflete o relacionamento tumultuoso de Josias com o império egípcio no século VII a. C.
Quanto a Jerusalém, no tempo de David e Salomão, mil anos antes de Cristo, é uma pequena aldeia, sem desenvolvimento económico e intelectual, incapaz de se dotar de um exército, de construir um templo e de escrever textos religiosos. David e Salomão foram chefes de clãs montanheses. No entanto, por volta de 640, o reino de Judá e a sua capital conseguem finalmente desenvolver-se, aproveitando o declínio do Reino do Norte e o enfraquecimento dos assírios.
Os profetas, defensores de perdões de dívida
O jovem rei Josias decide engrandecer a alma do seu povo, criando narrativas que abrilhantam as suas origens e proporcionando ao povo uma estrutura moral e espiritual sólidas. Assim, os textos do Deuteronómio que ele organiza são do princípio ao fim marcados pelo espírito dos profetas que arriscaram as suas vidas a enfrentar os poderosos, exigindo a justiça social, o respeito pelos pobres e fracos, a recusa de empréstimos com juros e o perdão de dívidas que escravizaram grande parte do povo que foi espoliado das suas terras4. O desenvolvimento económico que conhecia, na altura, o Reino do Sul foi acompanhado por uma grande revolução social e por grande precariedade. São quebradas as relações entre os agricultores, as suas terras, os seus antigos clãs e os seus territórios. Em 740 a. C., o profeta Isaías vituperava: «Ai dos que juntem casa a casa, dos que acrescentem campo a campo até que não haja mais lugar, de modo a que habitem sós no meio da terra» (Is 5, 8). Deriva daí a exigência do Deuteronómio de libertar, com regularidade, os escravos hebreus, permitindo-lhes reaver os campos e o gado.
O sonho de Josias desfaz-se quando é assassinado pelos egípcios em 609. A situação social e política agrava-se durante os anos que se seguem, apesar da intervenção das novas gerações de profetas, incluindo Jeremias e Ezequiel: «Basta, príncipes de Israel. Parem com a violência e os saques, pratiquem o direito e a justiça, não oprimam o meu povo com mais abusos, disse o Senhor. Tenham apenas balanças justas, pesos justos e medidas justas» (Ez 45, 9-10).
A passagem de Jeremias ilumina de outra forma o alcance que tem a lei sobre os perdões de dívida. Perante o avanço dos exércitos inimigos sobre Jerusalém, em 587 a. C., Jeremias apoia, em nome de Deus, a decisão do rei Zedequias (soberano do reino de Judá), que exige aos poderosos do reino a libertação imediata de todos os que se tornaram escravos devido a dívidas (Jr. 34, 8-17). Jeremias lembra, com veemência, a antiga exigência de libertar escravos... de que o rei, de facto, se socorre para unir as classes sociais, de forma patriótica, antes das batalhas e para possuir tropas livres de obrigações servis! Este texto, redigido um século mais tarde, depois do exílio, traduz, no entanto, mais a influência crescente sobre a cultura judaica das tradições assírio-babilónicas de perdoar dívidas, praticadas pelo monarca, do que as posições proféticas. De facto, em 587, Nabucodonosor assumiu o reino de Judá e mandou a elite dirigente para a Babilónia. Ciro, em 538, autoriza-os a regressarem ao país. Em 445, um dos seus sucessores, Artaxerxes, mandata o seu criado Neemias para organizar a reconstrução do templo em Jerusalém. Neemias participa ativamente na renovação política e espiritual que se desenvolve na capital, retomando a linha implementada por Josias: compromisso com o templo, mas, ao mesmo tempo, exigência radical de justiça social.
Um acontecimento testemunha o conhecimento que Neemias possuía da antiga tradição de perdões de dívida praticada na Mesopotâmia entre 2500 e 1500 a. C.5 A situação social que ele descobre na Judeia é aterradora: «Eleva-se um grande clamor entre as pessoas do povo e entre as mulheres contra os seus irmãos judeus. Alguns diziam: “Nós devemos entregar os nossos filhos e as nossas filhas para recebermos trigo, comermos e vivermos”. Outros diziam: “Temos que entregar os nossos campos, as nossas vinhas e as nossas casas para recebermos trigo durante os períodos de fome”. Outros diziam ainda: “Para pagar os impostos do rei, devíamos pedir dinheiro emprestado em troca dos nossos campos e vinhas; e como somos feitos de carne e osso como os nossos irmãos, como os nossos filhos valem tanto como os deles, devemos entregar os nossos filhos e filhas para a escravatura; acontece o mesmo com as nossas filhas que são violentadas. Não podemos fazer nada, porque os nossos campos e as nossas vinhas já pertencem a outros”» (Ne. 5, 1-5).
Perante crises sociais tão graves, em que os grandes proprietários se apropriaram de tal modo das terras e da força de trabalho dos camponeses, que a estabilidade da ordem social foi posta em causa, os chefes de Estado da Mesopotâmia, na Idade do Bronze, instituíram, desde 2500 a. C., o perdão periódico de dívidas e a libertação de escravos por dívida. Essa tradição desapareceu da Mesopotâmia depois de 1500 a. C., mas os vestígios escritos são múltiplos na Babilónia, no século VI a. C., na época do cativeiro dos judeus na cidade6.
Neemias vai usar o mesmo método para dar coesão ao reino de Judá, mistura de notáveis vindos do exílio e de povo local. Convencido de que o país perderia militar, económica e espiritualmente, se os seus governantes não garantissem a justiça social, escreveu a lei de libertação de dívidas num contexto religioso, a Aliança com Javé. É, portanto, Deus que ordena os perdões de dívida e a libertação de escravos e de suas terras porque a terra pertence apenas a Deus. «Fiquei profundamente irritado quando ouvi as suas queixas (...), eu repreendi os grandes e os notáveis. (...) Restituam-lhes, de imediato, os seus campos, as suas vinhas, os seus olivais e as suas casas, e paguem-lhes a dívida equivalente ao dinheiro, trigo, vinho, azeite que lhes emprestaram. (...) Que Deus afaste, de sua casa e de seus bens, os homens que não cumpram esta palavra» (Ne. 5, 6-13).
Neemias opta, assim, resolutamente por apoiar os camponeses sem terra, enfrentando uma classe que se instalou no poder devido à sua capacidade financeira. No entanto, o interesse desta passagem é também o facto de ela traduzir, com intensidade, a revolta popular contra a violência arrogante dos ricos e a exigência dos camponeses no sentido de beneficiarem da antiga lei israelita de perdão de dívidas7.
Mas qual a origem dessa lei que estipula a libertação de escravos e o regresso às terras, clãs, casas e gado? Para responder a esta pergunta, devemos resolver primeiro outra.
De onde vêm os Israelitas?
Ao contrário do que se pensa, os israelitas não invadiram Canaã depois de passarem 40 anos no deserto do Sinai, onde não se encontra o mínimo vestígio dessa invasão. De acordo com o que se conhece hoje, os israelitas seriam beduínos, pastores nómadas cananeus, que tinham o costume de acompanhar os seus rebanhos em torno das grandes cidades-estado de Canaã. Negociavam com elas o seu gado em troca de cereais.
À medida que essas cidades se deslocalizam lentamente por diversas razões, durante os séculos XIII e XII a. C., esses pastores nómadas sedentarizam-se parcialmente, entre as terras altas da Samaria e Jerusalém, para poderem cultivar os alimentos indispensáveis à sua sobrevivência, porque já não os podem encontrar mais na cidade. As aldeias onde surgiram vestígios são descritas como acampamentos destinados à criação de animais de pequeno porte. Desenvolvem-se mais rapidamente a norte (reino de Israel), onde as plantações de vinha e de oliveira dão fruto com mais abundância, facilitando a inserção no comércio internacional. Judá, no sul, é mais árida e encontra-se afastada das principais vias de comunicação, tendo, por essa razão, estagnado durante muito tempo. No entanto, esses dois reinos parecem partilhar lendas e heróis comuns, uma língua e um alfabeto próximos e uma religião comum, sendo a característica material mais marcante a proibição de carne de porco. Não foram encontrados vestígios de consumo ou de criação de porco, ao contrário do que acontece com outras tribos cananeias. Não foram também encontrados vestígios de altares ou santuários.
Estas comunidades numerosas (até 250) vivem de forma muito simples. Não foram descobertos bens de luxo ou jóias em túmulos ou casas que têm todas, mais ou menos, a mesma dimensão, «prova de uma distribuição bastante equitativa de riqueza entre as famílias»8.
Desde o século XII, os israelitas das terras altas desenvolvem processos para impedirem que os primeiros excedentes fiquem na posse dos proprietários mais favorecidos em termos de distribuição de terras, de gado ou de mão-de-obra. Vão-se definindo, assim, a pouco e pouco, as regras que periodicamente «colocam a zero os contadores», com o objectivo de manter o equilíbrio das comunidades sem necessidade de dignitários e de evitar que se vendam uns aos outros por possuírem dívidas.
É na memória viva dessas primeiras comunidades aldeãs que os profetas, primeiro no Deuteronómio e depois no Levítico, se baseiam para exigirem a libertação periódica de escravos. Mas a situação alterou-se. No século VI a. C., os excedentes ficavam, já há muito tempo, na posse de príncipes e de notáveis. Portanto, com o passar do tempo, a lei regulará, cada vez mais, as relações interpessoais ou, pura e simplesmente, servirá os interesses dos governantes. Perdeu a capacidade de interpelação política. No final do primeiro milénio, terá apenas um significado espiritual: a remissão dos pecados.
O Levítico é, aliás, muito claro sobre essa matéria. A lei contempla apenas os escravos hebreus, que possuam a mesma religião que os seus proprietários. Estes não devem libertar os escravos adquiridos (através de conquistas) no exterior. Apenas os textos mais tardios do livro de Isaías abrirão perspectivas mais universais (Is 61, 1-2).
Em resumo, a lei sobre os perdões de dívida e sobre a libertação de escravos por dívida, entre os israelitas do país de Canaã, adquire tonalidades muito diferentes ao longo do tempo, principalmente devido à forma como é utilizada pelos governantes para gerirem a situação política ou devido à forma como é reivindicada pelos profetas e pelos povos oprimidos.
No entanto, no primeiro século da nossa era, os perdões de dívida e a libertação de escravos por dívida foram banidos de todas as culturas do Médio Oriente, incluindo da Judeia. A situação social deteriorou-se tanto que o rabino Hillel 9 emitiu um decreto no sentido de os devedores renunciarem ao direito de usufruírem de perdões de dívida 10.
Os perdões de dívida no Novo Testamento
O que acontece em termos de perdões de dívida, no Novo Testamento, entre os séculos I e III d. C.?
Os Atos dos Apóstolos relatam a forma de vida dos primeiros cristãos, dando uma imagem idílica: «Os fiés unidos punham tudo em comum, vendiam as propriedades e bens e dividiam o dinheiro entre todos de acordo com as necessidades de cada um» (Ac. 4, 32-34).
A segunda carta de Paulo aos Coríntios vai na mesma direção: «Não se trata de aliviar os outros fazendo-vos cair na penúria, mas que haja igualdade entre vós. Nas circunstâncias actuais, a vossa abundância suprirá a indigência deles, para que a abundância deles venha a suprir a vossa indigência» (II Co. 8, 13-14).
O comunitarismo não pretende mudar o sistema social, que constitui o Império Romano. Protege simplesmente a comunidade dos seus piores excessos. Prova disso é a posição de Paulo perante as autoridades e os senhores: «que cada um se submeta às autoridades vigentes. Porque não há autoridade que não venha de Deus... porque quem resiste à autoridade rebela-se contra a ordem estabelecida por Deus» (Epístola aos Romanos 13: 1-2). «Escravos, obedecei a vossos senhores aqui em baixo com temor e respeito, com coração sincero, como a Cristo» (Epístola aos Efésios 6:5).
Em paralelo, a posição de Jesus sobre os perdões de dívida, como é relatada em várias passagens e com mais fôlego no evangelho de Lucas, capítulo 4, parece inspirada por um sopro profético revolucionário. Lucas situa a passagem no início da vida pública de Jesus e faz dela a chave de leitura para tudo o que se segue. Jesus, disse Lucas, entra numa sinagoga num dia de Sabbath e decide ler a passagem de Isaías 61 mencionada acima. Ele não a cita, de forma literal, e insiste mais nos aspectos concretos, não espirituais, do trabalho de libertação que leva a cabo no momento. Como Isaías, dá-lhe um sentido mais universal. Lembra-nos que o ano da graça do Senhor (Ano do Jubileu), ao qual apela, exigia o repouso da terra, o perdão das dívidas e a libertação dos escravos. «Jesus veio a Nazaré, onde havia sido criado, e no dia de Sabbath entrou na sinagoga, como era seu costume. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías. Abriu-o e encontrou a passagem onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para pregar a boa nova aos pobres. Enviou-me para proclamar a libertação dos cativos, para recuperar a vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (...) Então, começou a dizer-lhes: “Hoje cumpriu-se a Escritura que acabaram de ouvir”.» (Lc 4, 16-21).
Em pleno Império Romano esclavagista, que recusa com firmeza o conceito de perdão de dívida, a declaração de Jesus apenas poderia ser entendida como uma declaração de guerra contra o sistema judaico-romano em vigor. Portanto, não é surpreendente que, alguns versículos mais à frente, Lucas aborde já a primeira tentativa de o condenar à morte. Antes de ser preso, Jesus terá ainda tempo para um gesto simbólico: derrubar com força as mesas dos cambistas que se encontravam no templo de Jerusalém. Nem os altos sacerdotes judeus, nem as autoridades romanas o apoiarão.
Impostos sobre os bancos na UE: excepcionais, temporários e muito aquém do resgate de 6 biliões de euros
50 anos após o golpe de estado de Pinochet – a descida ao inferno neoliberal
Completam-se este mês 50 anos desde o golpe militar liderado por Augusto Pinochet, que instaurou uma ditadura sangrenta, com dezenas de milhares de pessoas assassinadas, torturadas ou desaparecidas. A ditadura de Pinochet serviu de laboratório para as receitas neoliberais promovidas pela Escola de Chicago: a partir da experiência chilena, o projecto neoliberal iria espalhar-se por todo o Mundo, como um vírus. Foi o prenúncio da descida ao inferno ultraliberal em que vivemos hoje.
As políticas migratórias europeias e a sua relação com a dívida pública e privada
Introdução
O ano de 2023 volta a ter um balanço catastrófico em termos de vítimas das políticas migratórias europeias. Em 22 de junho de 2023, o naufrágio de um arrastão decrépito proveniente da Líbia, ao largo do Peloponeso, causou centenas de mortos. A 13 de julho de 2023, outra embarcação carregada de migrantes virou-se ao largo de Lampedusa, provocando a morte de cerca de quarenta pessoas. Passados poucos dias, uma mãe e sua filha, que tentavam chegar à Tunísia, provenientes da Costa do Marfim, foram encontradas mortas no deserto. A nova rota adoptada pela maioria dos/das migrantes em busca de terras europeias passa actualmente pelo Mediterrâneo Central, ou seja, entre o Norte de África e a Itália. Esta rota é também a mais perigosa do mundo, com mais de 20.000 mortos desde 2014, segundo a Organização Internacional das Migrações (OIM) [1]. Estas mortes trágicas era previsíveis, infelizmente. Resultam das políticas de segurança da UE e seus estados-membros desde finais da década de 1990, que alimenta o «deixa morrer» por via da incapacidade de lidar com os fenómenos migratórios de forma estrutural e atenta ao acolhimento e inclusão dos exilados.
Quando abordamos a questão das migrações, é essencial desestigmatizar esse fenómeno inerente às sociedades humanas desde o início da sua existência, defendendo firmemente o direito de migrar. Por outro lado, é igualmente crucial compreender as relações económicas que embebem esse fenómeno. Embora a tónica seja posta, com frequência, na «imigração ilegal» ou «clandestina» massiva que chega ao território europeu, devemos ter presente que essa imigração apenas representa uma ínfima percentagem dos movimentos migratórios à escala mundial. De facto, embora o número total de migrantes internacionais tenha aumentado, passando de cerca de 150 milhões de pessoas em 2000, para 280,6 milhões em 2020, em termos relativos (percentagem) à população mundial ela permanece estável. Os/as migrantes internacionais representaram 3,6 % da população em 2020, e, em comparação, 2,8 % em 2000 e 2,3 % em 1970. Ou seja, 96,4 % da população mundial vive no seu país de origem [2]. Ao mesmo tempo que exageram o fenómeno migratório, a saturação mediática e política das imagens sugere uma invasão ou um conflito civilizacional que expressa toda uma mitologia das ideologias racistas e reaccionárias. Com efeito, a maioria das migrações não corre dos países do Sul para os países do Norte (entre os quais a Europa): uma grande parte dos fluxos ocorre entre países da mesma região. No entanto, é com base nessas ideias fantasiosas que se constrói a política migratória dos países ricos, em particular os da União Europeia. Essas políticas migratórias fazem parte de um sistema de relações económicas e políticas internacionais baseado na acumulação de riquezas nos países do Norte Global.
A dívida como mecanismo criador de desigualdades entre os países condena uma parte da população a migrar: O resultado das políticas de ajustamento estrutural nos últimos 40 anos
É importante começar por recordar os laços entre as políticas migratórias assassinas e o conjunto do sistema de relações económicas internacionais entre os países ricos (em particular os países europeus) e os países que os rodeiam. Sob o pretexto de quererem contribuir para o desenvolvimento das suas antigas colónias, os países ocidentais e as instituições financeiras internacionais estabeleceram, ao longo do século XX, um sistema de trocas económicas em que a dívida desempenha um papel de relevo. Esse sistema perpetua, para não dizer agrava, as desigualdades e a dependência em relação aos países ricos.
Ao tentar copiar para os países dependentes o modelo de desenvolvimento económico dos países desenvolvidos, a ideologia dessas instituições perpetua as condições de desigualdade dos desenvolvimentos; além disso, as desigualdades face ao mercado mundial de divisas subordinam as economias dependentes aos países desenvolvidos. Assim, a falta de capitais nacionais nos países dependentes levou-os a aceitar empréstimos massivos provenientes do Norte Global [3]. Além disso, os empréstimos são geralmente estabelecidos em dólares, o que faz com que o custo da dívida dependa das variações da política monetária norte-americana. Foi precisamente a subida das taxas de juro aquando da crise de 1970 que empolou a dívida dos países em desenvolvimento, obrigando-os a aceitar programas de ajustamento estrutural que acabaram por reforçar a sua dependência em relação aos países desenvolvidos. Esta situação voltou a repetir-se em 2022, no seguimento de políticas monetárias que visavam contrariar a inflação, de modo que o garrote da dívida voltou a apertar-se sobre grande número de países. Em suma, os países do Sul estão a enriquecer as economias dos países do Norte, por via dos mecanismos da dívida.
Impacto das políticas de ajustamento estrutural sobre alguns dos países donde partem fluxos migratórios para a Europa
Paquistão. O Paquistão encontra-se desde 2022 num estado de asfixia financeira. O país deve 45 mil milhões de dólares a instituições multilaterais (ou seja, o equivalente a 14 % do seu PIB), deve 27 mil milhões à China e 8,5 mil milhões aos países membros do Clube de Paris, nomeadamente à Alemanha e à França [4] [5]. O serviço da dívida está a mergulhar o país numa crise profunda. A subida das taxas de juro, no seguimento das políticas monetárias restritivas da FED (Federal Reserve, EUA) levaram a que o custo do reembolso da dívida se tenha multiplicado, passando a representar o grosso do orçamento de Estado paquistanês.
Sri Lanka. O Sri Lanka (ex-Ceilão) encontra-se mergulhado em crise económica há anos, agravada desde 2022 pela penúria de certos bens indispensáveis, entre eles o acesso à electricidade. Esta crise agravou-se com a derrocada do governo em 2022 [6]. Os problemas de solvabilidade do país levaram o novo governo a celebrar um novo acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), a fim de receber uma ajuda financeira de urgência que lhe permitisse sair de uma falência de 51 mil milhões de dólares [7] [8]. A China, por seu turno, aproveitou a independência do Sri Lanka para reforçar o seu domínio na zona, adquirindo infraestruturas chave, como o aeroporto e o porto de Colombo. Entretanto, o apoio do FMI, na ordem dos 3 mil milhões de dólares, permitiu fazer face aos reembolsos mais urgentes aos maiores credores.
Gana. Por seu lado, o Gana, um dos maiores produtores de ouro e cacau, encontra-se numa situação de crise sem precedentes, no seguimento dos choques resultantes da pandemia e da guerra na Ucrânia. O país vê-se a braços com uma reestruturação da dívida, via Clube de Paris, desde finais de 2022 [9] [10], cujos membros detinham 18 % da dívida total do país. Estas dívidas bilaterais são geralmente fornecidas ou garantidas por outros países. A situação de crise profunda do Gana levou o país a pedir um apoio suplementar ao FMI, permitindo-lhe o acesso a 3 mil milhões de dólares suplementares. Em troca, o Governo comprometeu-se a reduzir as despesas públicas, a fim de mais seguramente reembolsar as dívidas [11].
A reprodução das desigualdades Norte-Sul por via das políticas migratórias europeias
As profundas desigualdades entre países pobres e países ricos e as relações de dependência dos primeiros em relação aos segundos representam a continuação da dominação das antigas regiões colonizadas pelos antigos e novos imperialismos. A diferença entre as antigas e as novas relações de dominação consistem em que estas se estruturam em torno de uma aparente igualdade entre os países, nos mercados internacionais. Esta igualdade aparente no que diz respeito à circulação de capitais contrasta com a criminalização da mobilidade dos seres humanos.
Desde a instituição dos acordos de Schengen que acompanharam a constituição da União Europeia, a política de liberdade de circulação das pessoas dentro da UE foi acompanhada do aferrolhar das fronteiras externas. A migração extra-europeia tornou-se uma questão política de primeira ordem, subordinada à lógica de protecção da soberania territorial dos países membros. Temendo uma nova «crise migratória», no embalo da acumulação de crises (económica, geopolítica, ecológica, sanitária, etc.), Itália, Espanha, Malta, Chipre e Grécia (o grupo Med5) defenderam no início de 2022 a instituição de um «mecanismo adequado de repartição dos migrantes» entre os estados-membros [12]. Reconhecendo o fracasso dos mecanismos de pré-distribuição criados após a crise de acolhimento de 2015, a principal exigência do grupo Med5 era que a UE redistribuísse os exilados que chegam a estes países numa base obrigatória. Daí resultou a aprovação pela Comissão Europeia, em junho de 2022, de um mecanismo de solidariedade voluntária. Esse mecanismo pretendia reduzir a pressão nos países sobre os quais assenta (em consequência, nomeadamente, do sistema Dublin) a maior parte das responsabilidades de recepção e acolhimento das pessoas em busca de asilo na UE. No entanto, este mecanismo não funcionou e o objectivo de aumentar o número de transferências de pessoas em busca de asilo nos estados mais ao norte não foi cumprido. Segundo a Statewatch, apenas 207 foram transferidos para fora dos países membros que fazem parte da primeira linha de acolhimento, no início de 2023 [13].
Por outro lado, a aplicação deste mecanismo de repartição decorreu no contexto da negociação de um novo pacto sobre a migração, proposto pela Comissão Europeia. Tal pacto, discutido neste momento no Conselho da UE e no Parlamento Europeu, prevê uma resposta ao pedido de mais solidariedade entre os estados-membros, tornando-a «obrigatória» [14]. Em junho passado, o Conselho da UE propôs um acordo sobre os dois pilares essenciais da reforma de asilo e migração: o regulamento sobre a gestão do asilo e da migração (RGAM), que engloba nomeadamente as tarefas de solidariedade dos estados-membros em relação aos países de entrada e as regras ditas de Dublin, e o regulamento sobre os protocolos de asilo (RPA), que orienta a responsabilidade e a burocracia de asilo nas fronteiras [15]. Este mecanismo de solidariedade obrigatória será flexível nas suas diversas modalidades. Assim, os estados-membros deveriam escolher, em função de uma tabela de repartição predeterminada:
- Ou participar no esforço de relocalização das pessoas consideradas elegíveis para protecção internacional, ao chegarem às fronteiras externas, onde é examinado o seu pedido de asilo;
- Ou participar no novo conceito de «patrocínio do regresso», que permite aos Estados que não desejam acolher migrantes mostrar «solidariedade de uma forma diferente», envolvendo-se activamente na execução das expulsões daqueles que a UE e os seus estados-membros desejam expulsar, com a possibilidade de concentrarem os seus esforços nas nacionalidades para as quais as perspectivas de expulsão bem sucedida são mais elevadas;
- Ou contribuir materialmente, logisticamente, financeiramente ou politicamente para a dimensão externa da política europeia de migração (destacamento de pessoal, medidas para reforçar as capacidades de gestão das fronteiras, etc.). Segundo o Conselho, «os estados-membros devem ser livres de escolher o tipo de solidariedade para o qual desejam contribuir e nenhum estado-membro deve ser obrigado a efectuar relocalizações» [16]. É óbvio que este sistema de solidariedade obrigatória não responde às questões levantadas pelos Estados do Med5. Se o pacto for adoptado nestes termos, tratar-se-á de uma solidariedade cosmética; os estados poderão optar por substituir o acolhimento dos exilados no seu território pelo financiamento do regresso dos exilados ao seu país de origem ou pelo investimento na militarização das fronteiras.
Várias outras propostas deste pacto inquietam as ONG especializadas em questões migratórias. Na sua forma actual, o seu conteúdo ameaça reutilizar velhas receitas mortíferas, ineficazes e dispendiosas. Além disso, pode exacerbar as desigualdades entre os países da UE, em matéria de protecção dos/das refugiados, ao introduzir procedimentos obrigatórios nas fronteiras, ao reforçar a noção de «primeiros países de entrada» como critério de responsabilidade e ao introduzir procedimentos extremamente complexos. A generalização de «acordos à medida» com países terceiros, a fim de reter as pessoas migrantes longe das fronteiras Schengen ou multiplicar os sistemas de confinamento, de triagem e de retenção nas fronteiras Schengen e até mais além destas, poderá tornar-se norma.
O modelo de acolhimento «à la carte» para os estados-membros contrasta com o dogmatismo que caracterizou a aplicação das regras fiscais que fundaram o mercado único. As desigualdades no peso da gestão das políticas migratórias replicam as relações de desigualdade entre estados-membros, que se tornaram evidentes após a crise de 2008. Foi assim que países como a Grécia, a Itália e Espanha tiveram de sofrer as políticas de reajustamento impostas pela Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia). Ao mesmo tempo, esses países encontram-se na primeira linha de «defesa» da «fortaleza europeia». No caso da Grécia, o acesso aos investimentos por parte da UE ficou condicionado ao acolhimento de migrantes.
O exemplo da «parceria global» com a Tunísia
À margem das negociações do pacto, a Comissão Europeia também está em negociações com a Tunísia, para pôr em prática uma «parceria global» composta por cinco pilares, sendo um deles a migração e a mobilidade [17]. Segundo Giorgia Meloni, a primeira-ministra italiana, que acompanhou as negociações, a par nomeadamente da presidente da Comissão Europeia e de Mark Rutte (primeiro-ministro da Holanda), esta parceria entre a Tunísia e a UE «pode ser considerada um modelo para o estabelecimento de novas relações com o Norte de África». Trata-se de um acordo em moldes semelhantes aos do acordo UE-Turquia, assinado em 2016 [18]. A Tunísia, que substituiu a Líbia enquanto principal país de saída do continente africano, provoca grandes inquietações em Bruxelas e nos estados-membros, devido à sua proximidade à costa italiana. As entradas pela península de Itália estão a crescer fortemente (+ 158 %) desde o início de 2023, segundo a Frontex e a OIM [19]. Esta subida pode ser explicada, entre outras razões, pela degradação das condições de vida na Tunísia e na Líbia.
Os montantes prometidos à Tunísia pela UE em matéria de migração incluem um pacote de 105 milhões de euros para gestão da migração em 2023 [20]. Esta ajuda europeia está parcialmente ligada à concessão, ainda em curso de negociação, de um crédito do FMI no valor de 2 mil milhões de dólares (1,83 mil milhões de euros), sujeita a diversas condições [21]. A UE propõe-se entregar à Tunísia barcos, radares móveis, câmaras e veículos, para ajudar a reforçar o controlo das fronteiras marítimas e terrestres. A par de tudo isto, está previsto um reforço da cooperação policial e judiciária para dar caça às redes de passadores. As ajudas previstas incluem também importantes meios para recambiar tunisinos em situação irregular na UE. Por outro lado, a UE financia os retornos «voluntários» de migrantes da África Subsariana, da Tunísia para o país de origem: desde o início deste ano já foram financiados 407 retornos, segundo a Comissão [22]. Além disso, a Tunísia poderá ser considerada um país «seguro» para o reenvio dos exilados tunisinos que se encontram em situação ilegal em solo europeu. A crise socioeconómica sem precedentes, após a aplicação de sucessivos programas de ajustamento, a deriva autocrática, assim como a xenofobia de estado especificamente dirigida contra os exilados subsarianos, promovida pelo chefe de Estado tunisino, torna difícil entender em que bases a Comissão Europeia pretende identificar a Tunísia como «país seguro» [23]. São numerosos os casos de violência e atentado aos direitos humanos relatados nos últimos tempos pelas ONG [24].
Uma extensão dos acordos «feitos à medida» para externalizar as fronteiras
A Comissão Europeia pretende alargar esta lógica a outros países do Norte de África e está a propor novos planos de externalização das fronteiras. A externalização tornou-se corrente com a construção do espaço Schengen, onde a livre circulação tem como corolário o estrito controlo das fronteiras externas. Desde a década de 1990, esta política consistiu em transferir este controlo para os países vizinhos, em particular os do Magrebe e, mais recentemente, a Turquia. Em contrapartida, financia instalações de vigilância, centros de retenção e guarda costeira, trata dos vistos, estabelece acordos que obrigam esses países a readmitirem os «ilegais» e endurece a legislação sobre imigração. Em novembro de 2022, o Conselho adoptou um plano de acção da UE, para o Mediterrâneo Central [25], em que 13 das 20 medidas incidem sobre o reforço da cooperação com os países do Norte de África (em particular Líbia, Tunísia, Egipto e Níger) e o Bangladeche. Este plano inclui a formação e assistência dos guardas de fronteira nos países-alvo; a assinatura de acordos de readmissão para facilitar as expulsões para esses países; a implementação de operações de expulsão, com o apoio da Frontex; a cooperação nas áreas de salvamento e resgate e desembarque das pessoas socorridas no mar, nos portos dos países do Sul do Mediterrâneo; etc. Prevê-se a adopção de outros três planos de acção da UE, em 2023, para «a rota do Atlântico, do Mediterrâneo Oriental e do Mediterrâneo Ocidental» [26]. Os estados europeus condicionam progressivamente o financiamento ao desenvolvimento dos seus parceiros não europeus à «segurança» dos movimentos migratórios nesses países.
Por exemplo, a UE prometeu a Marrocos 152 mil milhões de euros para o controlo das migrações ou ajuda ao repatriamento [27]. Na Líbia, a UE e os seus estados-membros mantêm acordos no sentido de encorajar e manter os esforços desse país do Norte de África para interceptar os migrantes no mar e encaminhá-los para centros de detenção, apesar de os abusos contra migrantes nesse país serem conhecidos e documentados [28]. Dentro da UE, o esquema é semelhante: o inquérito da Apostolis Fotiadis, publicado em 15 de junho de 2023 pelo site Solomon, revela que a Comissão Europeia mais do que duplicou (em comparação com o período anterior) as verbas atribuídas à Grécia para o período 2021-2027 para reforço de equipamentos, sistemas de vigilância e recursos humanos destinados ao controlo de fronteiras. Assim, o orçamento para a vigilância das fronteiras eleva-se a 800 milhões de euros, enquanto apenas 600 milhões são destinados a operações de busca e salvamento [29].
Resumindo, a condicionalidade é cada vez mais usada nas relações Norte-Sul para gerir as migrações. Para limitar o número de entradas de exilados no espaço Schengen, a UE e os estados-membros estão a aplicar políticas de segurança e a criminalizar os fenómenos migratórios, que sempre existiram, e chuta a responsabilidade da recepção e acolhimento para fora das suas fronteiras. Assim, a condicionalidade é empregue de maneira mais ou menos subtil no âmbito da cooperação para o desenvolvimento, nos acordos comerciais e nos investimentos, nas políticas de readmissão e de vistos, ou nas parcerias e relações político-diplomáticas. Esta lógica já existia, nomeadamente no que diz respeito ao Fundo Fiduciário de Urgência para a África (FFUE), destinado ao controlo migratório, agora alargada e desenvolvida com novos mecanismos de financiamento, como sejam os fundos de vizinhança, de cooperação para o desenvolvimento e de cooperação internacional-europeia por esse mundo fora [30]. É inquietante constatar que os fundos de cooperação para o desenvolvimento se concentram actualmente no papel das fronteiras e da externalização, questões essas muito afastadas dos seus objectivos primários, que são a erradicação da pobreza e a melhoria das condições de vida das populações. Mais inquietante ainda: esta lógica está a alastrar e a transformar-se em modelo de referência para a gestão dos fluxos humanos em direcção à União Europeia.
Qual teia de aranha, as fronteiras da UE começam na Mauritânia, no Níger ou no Chade. Estendem-se à Turquia, Líbia, Marrocos. Vistos como espaços militarizados e carregados de segurança, separam espaços filtrados pela morte. Temos de nos interrogar: contra quem se batem os países da UE quando desembolsam milhões para instalar material de guerra às suas portas? Que guerra levam a cabo, e para se protegerem de quê? Ao apostar em políticas que criminalizam os exilados, em vez de lhes garantir vias seguras de passagem, a UE alimenta um discurso público e políticas cada vez mais extremas. A construção de muros nas fronteiras, os discursos anti-migrantes cada vez mais ostensivos, são consequência directa de uma abordagem oportunista e profundamente racista sobre os movimentos da população.
Na prática, e mesmo para além da UE, estas políticas mudam profundamente as paisagens socioeconómicas de regiões longínquas e moldam a geopolítica dos países de origem e de trânsito. Os efeitos colaterais desta política são evidentes em cada porto de escala: nas fronteiras externas da UE, mas também muito a montante, a presença de milhares de imigrantes sem documentos e de pessoas privadas dos seus direitos, lançadas numa espécie de vazio social, guetizadas e marginalizadas, caracterizam esta teia tecida a partir dos países do Norte pela psicose colectiva de um «afluxo maciço e incontrolável de migrantes». Ao mesmo tempo, esta teia de aranha é o produto das relações de dominação e de dependência financeira que os países europeus e as instituições financeiras internacionais estabelecem sobre os países terceiros (com a cumplicidade dos seus governos).
Graças ao afastamento progressivo das fronteiras do espaço Schengen, vários chefes de estado exercem um poder autocrático às portas da UE, servindo-se dessas políticas de «chantagem» ou de «condicionalidade». De facto, o papel de polícia que a UE e os seus estados-membros os exortam a assumir também dá a estes países uma vantagem nas negociações. Em 2020, o presidente turco manipulou os migrantes, fazendo-os crer que a fronteira da UE estava aberta, a fim de conseguir a renegociação do acordo de 2016, segundo o qual Ancara se comprometia a barrar a rota para a UE aos refugiados sírios; conseguiu assim sacar mais 6 mil milhões de euros [31]. Marrocos, ao abrir subitamente a sua fronteira com o enclave espanhol de Ceuta, em maio de 2023, deixando assim partir para a União Europeia cerca de 8000 migrantes, conseguiu pressionar Madrid sobre a questão do Sara Ocidental [32]. Em suma, a imigração é usada como arma de negociação por certos governos do Sul.
Finalmente, do ponto de vista dos países de origem e de trânsito, estas políticas estão a perturbar movimentos populacionais muito antigos que contribuíram para estabelecer relações económicas, sociais e geopolíticas entre países da mesma região. É o caso, a título de exemplo, do Níger e da Argélia, na região entre o Sael e o Sara. A visão eurocêntrica e a maneira de ver a mobilidade humana de certas pessoas como uma ameaça, como um perigo para as sociedades e para as culturas dos países, têm servido para justificar políticas cada vez mais restritivas na região. Já em 2014 a Argélia tinha assinado um acordo de repatriamento com o Níger que devia incidir apenas sobre as pessoas que se entregavam à mendicidade. No entanto, em 2016, este acordo era aplicado ao conjunto dos migrantes subsarianos presentes na Argélia, sem distinção de casos particulares, apesar de a Argélia já dispor de uma lei sobre estas questões [33]. Assim, estes exilados são à partida deportados para Tamanrasset, no sul da Argélia, e depois enviados para o primeiro posto fronteiriço do Níger, Assamaka, onde a OIM abriu um centro de trânsito cujas estruturas não permitem acolher dignamente as pessoas cujos pedidos de asilo foram negados.
Estas mudanças legislativas na Argélia e no Níger são fruto da cooperação com a UE. No Níger, foi aprovada em 2015 uma lei elaborada com a ajuda dos peritos europeus, para condenar quem ajudasse os migrantes no território [34]. Do ponto de vista europeu, os migrantes que atravessam o Sara dirigem-se forçosamente para a Europa. Na prática, não são tidas em conta as migrações intra-africanas, embora elas constituam a maioria dos movimentos migratórios do continente. De facto, esses migrantes vão permanecer no continente, para trabalharem na Argélia, na Tunísia ou em Marrocos, como é costume fazerem há décadas.
Segundo numerosos investigadores que trabalharam sobre o assunto, é difícil saber se aquelas leis repressivas levaram a uma diminuição das tentativas de passagem. Em contrapartida, é certo que esta abordagem de segurança, directamente aplicada aos países de origem e de trânsito, condena grande número de pessoas à clandestinidade. Enquanto antes da aplicação das políticas de externalização os fluxos se faziam de forma oficial, marcadas pelas taxas de passagem (sendo portanto possível calcular o número de passagens), o mesmo percurso é hoje muito mais complicado, dado que os exilados passam agora por rotas diferentes: mais longas, mais arriscadas, mais onerosas. Assim, as consequências para o tecido social e económico local da passagem à clandestinidade dessas caravanas de migrantes são avultadas. Na região de Agadez, no Níger, existe uma economia estabelecida em torno do trânsito migratório desde a década de 1960, assente nomeadamente nas migrações para trabalho sazonal, que deu origem a actividades de alojamento, transporte, restauração, telefonia móvel, transferências de dinheiro – todas elas condenadas a desaparecerem.
Esta contradição entre a retórica centrada na excepcionalidade perturbadora e as estruturas económicas e políticas expressa-se também na figura dos passadores. O discurso público de numerosos governos parece querer impor a ideia de que a luta contra a imigração clandestina implica o combate contra os passadores. Aí são colocadas as responsabilidades e culpas de todos os exílios. Ora, é preciso ter claro que a clandestinidade é um conceito flutuante em política, já que o migrante clandestino de hoje talvez não o fosse no passado e talvez não venha a sê-lo no futuro. Da mesma forma, a figura do passador, apresentada hoje pela UE e pela comunicação social como um traficante de seres humanos ou um explorador, era anteriormente um comerciante que fazia naturalmente parte do tecido socioeconómico de uma época passada [35].
A externalização das fronteiras e o endividamento privado
Finalmente, o percurso migratório é também indissociável do endividamento das pessoas que pretendem alcançar o solo da UE. Assim, a criminalização da imigração torna a viagem não só perigosa, mas também extremamente cara. Em 2015, calcula-se que um lugar num barco que zarpa das costas turcas para a Grécia custava 1000 dólares, em contraste com os 20 dólares que custava o bilhete do ferry que fazia o mesmo trajecto [36]. O custo do trajecto desde a Nigéria até à Europa, passando pela Líbia, era estimado em 2017 em média entre 4000 e 6000 dólares [37]. Por fim, o custo de atravessar a Mancha a partir de Calais, para chegar ao Reino Unido, foi estimado em 5000 dólares.
A fim de reunir estes montantes colossais, as famílias e as comunidades vêem-se obrigadas não só a fazer grandes sacrifícios, mas também a endividar-se, na esperança de que as pessoas migradas consigam chegar a terras europeias e trabalhar para as sustentar. Entregues a um destino arbitrário e na total ausência de direitos, as pessoas migrantes podem também ter de se endividar durante a viagem, ficando assim encurraladas no país de trânsito, quando não sujeitas à escravidão, como foi relatado no caso da Líbia. Nesse sentido, as políticas migratórias aplicadas pelos países ocidentais, em particular pela União Europeia, favorecem uma economia da migração muito lucrativa e da qual resulta o endividamento e a miséria não só das pessoas migrantes, mas também das pessoas que lhes são próximas no país de origem.
Conclusão
Embora certos governos, como o executivo de Pedro Sánchez em Espanha, se gabem da diminuição de chegadas ilegais de migrantes ao país, o verdadeiro balanço das políticas europeias mede-se actualmente pela quantidade de mortes e de sofrimento que provocam. Neste artigo quisemos chamar a atenção para a economia política que subjaz às políticas migratórias assassinas e a sua relação com a engrenagem da dívida.
As políticas de migração sublinham geralmente o carácter perturbador da migração para as fronteiras e a ordem social da Europa. Grande parte da classe política usa-as como justificação para impor medidas e políticas excepcionais e de emergência. Esta aparente urgência e excepcionalidade adquire no entanto um carácter sistémico, distanciando os exilados e transferindo para países terceiros mais pobres a responsabilidade de os receber, acolher ou reenviar. Além disso, os quadros de cooperação informal através dos quais a UE e os seus estados-membros organizam este distanciamento das pessoas consideradas indesejáveis, bem como os procedimentos de expulsão dos que chegaram à Europa, escapam a qualquer controlo parlamentar, democrático ou judicial. O acesso restrito à informação e a falta de controlo democrático que os caracteriza levantam a questão da responsabilidade pelas violações de direitos perpetradas fora das fronteiras da UE, no território dos países «cooperantes», na Líbia, na Turquia, no Níger e na Albânia.
Num sistema capitalista em crise, estas políticas tornaram-se um dos mecanismos através dos quais os Estados, e neste caso a UE, procuram desviar a atenção das grandes contradições que estas economias enfrentam. Vimos neste artigo como as políticas migratórias e as várias formas de endividamento andam geralmente de mãos dadas. O regime de excepção aplicado para «gerir os migrantes» contrasta com o sistema de exploração e extracção de riquezas, acrescido de dívidas.
Ao substituir as relações coloniais, todas as relações entre países do Norte e do Sul passam a reger-se pelos mecanismos das políticas da dívida e das migrações. Neste sentido, condicionar a concessão de fundos a países terceiros a compromissos em matéria de gestão das migrações é a expressão mais concreta desta política de externalização das fronteiras e de manutenção da dependência dos países do Sul em relação aos países do Norte. Assim, se os naufrágios no Mediterrâneo e as políticas migratórias da UE e dos seus estados-membros são muitas vezes apresentados na imprensa como independentes, na realidade são a outra face da mesma moeda. Estão também inseridos num conjunto de relações económicas baseadas na dívida. O aspecto sistémico desta relação corresponde também a uma economia política das políticas de migração que responde ao intuito de manter relações de dependência através da dívida, ao mesmo tempo que abre novas áreas de enriquecimento e acumulação.
A polarização política e social em torno da questão da migração é o produto a negação da partilha de valores nas sociedades europeias. Num sistema económico em crise, o foco na migração funciona como uma válvula de segurança e um bode expiatório. Para romper com esta polarização, é preciso recordar a transferência líquida de riqueza dos países do Sul para os países ricos. É igualmente necessário recordar que a lógica do ajustamento estrutural exprime um certo tipo de relações entre o Norte e o Sul. É preciso repensar tudo nos países da UE para que possamos finalmente pôr em prática políticas dignas e proporcionais à importância das migrações para as nossas sociedades. É preciso desintoxicar o discurso público que infunde uma falsa visão das pessoas no exílio. Apresentadas por vezes como ameaças à civilização ocidental, por vezes como vítimas de tráficos de todo o género, nenhuma destas duas visões nos permitirá pensar a migração como aquilo que ela é: um movimento de pessoas que vem de longa data e que deve ser antecipado e apoiado.
As dinâmicas de ajustamento estrutural e de austeridade tanto mergulham os países dependentes na miséria como motivam situações de criminalidade e a partilha desigual da hospitalidade no seio da UE. Não só devem ser criadas rotas seguras para que as pessoas possam viajar sem temer pelas suas vidas, como também devemos garantir que os recursos da ajuda pública ao desenvolvimento cumprem determinados critérios para «promover eficazmente o desenvolvimento económico e melhorar o nível de vida nos países em desenvolvimento» [38]. A UE desvirtua o objectivo da ajuda pública ao desenvolvimento em benefício da cooperação externa em matéria de controlo das migrações, nomeadamente ao condicionar esta ajuda à colaboração do país terceiro na expulsão dos imigrantes clandestinos; mas a cooperação internacional nunca deveria ser condicionada à participação numa política de externalização das fronteiras. Por último, é essencial quebrar os mecanismos económicos que estão na base de toda a abordagem racista das migrações. É necessário iniciar um processo de anulação das dívidas ilegítimas dos países dependentes, para que os povos possam escapar à lógica perversa do ajustamento estrutural.
Na sequência do golpe militar de 26 de julho no Níger e do receio de uma deterioração da situação na região, nomeadamente entre a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e os países já governados por militares, o fenómeno migratório que descrevemos entre o Níger e a Argélia poderá aumentar, conduzindo a uma crise humanitária sem precedentes, se estas políticas de distanciamento dos exilados se mantiverem como estão.
Notas
[1] Deadliest Quarter for Migrants in the Central Mediterranean Since 2017, https://www.iom.int/news/deadliest-quarter-migrants-central-mediterranean-2017.
[2] «Les migrations internationales: faits et chiffres», La Cimade.
[3] Para mais informações, aconselhamos a leitura do livro História Crítica do Banco Mundial, de Éric Toussaint (2021, Editora Movimento).
[4] «Pakistan: Pakistan’s interest expenses shoot up significantly» (indiatimes.com).
[5] https://www.usip.org/publications/2023/04/pakistans-existential-economic-crisis.
[6] The aftermath of Sri Lanka’s economic crash.
[7] https://www.reuters.com/world/asia-pacific/sri-lanka-holds-debt-restructuring-talks-with-bilateral-creditors-2022-11-03/. https://www.voanews.com/a/india-facilitates-imf-bailout-for-crisis-stricken-sri-lanka/6926790.html.
[8] https://www.reuters.com/world/india/india-says-it-is-committed-boosting-investment-crisis-hit-sri-lanka-2023-01-20/.
[9] https://www.bbc.com/news/world-africa-65622715.https://www.reuters.com/world/afric...
[10] https://www.reuters.com/world/africa/ghana-expects-reach-agreement-with-bilateral-creditors-coming-weeks-2023-06-18/.
[11] https://www.reuters.com/world/africa/imf-ghana-intends-agree-debt-rework-mou-with-official-creditors-before-november-2023-05-18/.
[12] «Le Conseil de l’UE adopte un nouveau mécanisme de relocalisation des demandeurs d’asile».
[13] Ver Statewatch.
[14] Dentro da direcção política da Comissão, o dossier é gerido por Margaritis Schinas (vice-presidente e comissária encarregada da «promoção do nosso modo de vida europeu») e Ylva Johansson (comissária europeia para os negócios estrangeiros).
[15] Decryptage-du-pacte-UE-migration-et-asile-Juin-2023.pdf (lacimade.org).
[16] Decryptage-du-pacte-UE-migration-et-asile-Juin-2023.pdf (lacimade.org).
[17] Mémorandum d’entente UE-Tunisie (europa.eu).
[18] «Accord» UE-Turquie: le troc indigne.
[19] Central Mediterranean top migratory route into the EU in first half of 2023 (europa.eu), Immigration: derrière les 100 000 arrivées dans l’UE de Frontex, une réalité plus nuancée – InfoMigrants.
[20] L’UE et la Tunisie signent un accord pour un «partenariat stratégique complet» (lemonde.fr).
[21] Immigration: l’UE et la Tunisie trouvent un accord à 105 millions d’euros – Jeune Afrique.
[22] Migration: les Européens en quête d’un accord avec la Tunisie – EURACTIV.fr.
[23] Environ 900 corps de migrants ont été retrouvés en Tunisie depuis le début de l’année – InfoMigrants.
[24] En Tunisie, «le discours de Kaïs Saïed a donné carte blanche à la violence contre les migrants» (lemonde.fr).
[25] EU action plan for the Central Mediterranean (europa.eu).
[26] Conclusions du Conseil européen, 9 février 2023 - Consilium (europa.eu).
[27] Migrations : l’Union européenne veut multiplier les accords de coopération donnant-donnant (lemonde.fr).
[28] Torture de migrants en Libye : le rôle honteux de l’Europe - Amnesty International Belgique.
[29] EUR 800 million in Greece for border management. Just 600 mm for search and rescue. - Solomon (wearesolomon.com)
[30] IVCDCI, ou NDICI-Global Europe em inglês.
[31] En ouvrant sa frontière, la Turquie place les Européens devant leurs responsabilités (lemonde.fr).
[32] L’Espagne et le Maroc vont rouvrir les postes-frontières à Ceuta et Melilla (lemonde.fr)
[33] Algérie – Niger: migration, expulsions et collaboration – Jeune Afrique.
[34] La loi contre le trafic illicite de migrant·es au Niger. État des lieux d’un assemblage judiciaire et sécuritaire à l’épreuve de la mobilité transnationale (openedition.org)
[35] Des passeurs bien commodes.
[36] https://www.voanews.com/a/syria-europe-refugees-cost-price/3072200.html.
[37] https://www.themigrantproject.org/nigeria/irregular-migration-to-europe/
Economistas de todo o mundo aconselham: deixem o parque Yasuní em paz!
Novos OGM: a Comissão Europeia pretende generalizar a biopirataria
No passado dia 5 de julho, a Comissão Europeia apresentou uma proposta de alteração do regulamento relativa a um novo âmbito regulamentar para certos OGM [1]. Esta proposta visa generalizar a biopirataria e a privatização de todas as sementes pelas empresas detentoras de patentes, em prejuízo dos direitos dos/as agricultoras. A Coordenação Europeia Vía Campesina (ECVC), que representa os/as agricultoras europeias, apela ao Parlamento e ao Conselho europeus para que rejeitem esta proposta inaceitável. Passamos a transcrever a análise da ECVC.