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Em que se distinguiria uma candidatura de esquerda radical à Presidência?

Rui Viana Pereira, 12/01/2021

Quais são os sinais distintivos que permitiriam identificar uma candidatura de esquerda radical à Presidência da República? (partindo do princípio que faria sentido apresentá-la …). Entre outros sinais, destaca-se a tomada de posição contra os aspectos ilegítimos da dívida pública. Nenhum candidato seguiu esse caminho, mas isso não impede que seja útil sabermos como deveria essa posição ser desenvolvida em termos práticos.
(Artigo de opinião que apenas responsabiliza o autor)

Para evitar mal-entendidos, comecemos por reconhecer o seguinte: a Constituição portuguesa, escaldada por quase meio século de ditadura, é bastante cautelosa nos poderes atribuídos ao presidente. O cerne das funções presidenciais está sucintamente expresso no juramento que a Constituição da República Portuguesa lhe impõe na tomada de posse: «Juro por minha honra (…) defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa» (art.º 127.º da CRP).

Assim, poder-se-ia pensar que não tem cabimento debater nas eleições presidenciais as grandes linhas de acção executiva e legislativa, de cuja definição o Presidente está arredado. Remetido para um papel em parte honorífico, compete-lhe, por exemplo, representar o país nas relações internacionais, embora pouco ou nada risque na orientação dessas relações.

No entanto, a Constituição não o impede de tomar iniciativas de carácter cívico – ser presidente não significa morrer para a vida política interventiva. O presidente é livre de exercer influência sobre as pessoas e as instituições, servindo-se para isso dos meios de comunicação, das verbas e dos aparelhos de Estado postos ao seu dispor. De resto, isso mesmo aconteceu ao longo de vários mandatos: de maneira geral os presidentes influíram na vida política e institucional, tendo sempre na manga a capacidadede provocar crises políticas e convocar eleições legislativas antecipadas (a chamada «bomba atómica presidencial»).

É neste terreno do exercício de influências que uma candidatura de esquerda radical – se ela tivesse existido – se distinguiria das demais: o/a candidato/a em causa deveria comprometer-se solenemente a usar a sua influência e os seus recursos materiais para patrocinar a formação de uma comissão independente de auditoria à dívida pública, com o objectivo de identificar as parcelas ilegítimas, ilegais ou odiosas.

Não bastaria, contudo, patrocinar uma tal comissão. Neste campo, a experiência portuguesa desde 2011 mostra quão fácil é um agrupamento de pessoas auto-intitular-se disposto a estudar a dívida pública e, a final, verificar-se que apenas pretendia ocupar esse terreno político e ajudar a consolidar ideia da «necessidade» de pagar a dívida, ainda que aconselhando uma eventual reestruturação – ou seja, defender uma «gestão optimizada» da dívida, sem jamais pôr em causa a sua legitimidade.

Por conseguinte não bastaria o/a candidato radical a presidente lançar uma comissão de auditoria independente. Teria de deixar muito claro que se tratava de patrocinar uma investigação visando expor os aspectos ilegítimos da dívida.

Além de ser independente – ou precisamente para melhor garantir a sua independência –, essa comissão deveria também integrar membros da comunidade internacional com experiência e provas dadas nesse campo; e membros da sociedade civil nacional (pessoas e associações) das mais diversas áreas, a fim de impedir que a comissão se transformasse num congresso de economistas de renome, acantonados numa torre de marfim onde todos dão palmadinhas nas costas uns dos outros e tiram partido pessoal da exposição mediática que o patrocínio presidencial lhes forneceria.

Como se distingue um discurso populista de direita das propostas radicais de esquerda, quando se fala de dívida?

É fácil. O discurso populista de direita pode ser exuberante da boca para fora, mas vem acompanhado de acções que agravam o problema da dívida: benefícios e isenções fiscais aos grandes grupos económicos, participação em gabinetes que promovem a fraude fiscal e a fuga de capitais, protecção legal e fiscal dos grandes vigaristas económicos; recusa na prática quaisquer propostas que visem desmontar a armadilha do endividamento. Além disso, todas as propostas concretas do populismo de direita agravam e incentivam os factores de desigualdade e discriminação.

As propostas radicais de esquerda, se existirem, vêm pelo contrário acompanhadas de propostas concretas que não constituem meros remendos da situação: implicam uma mudança profunda da sociedade no sentido de eliminar factores que provocam a desigualdade e a discriminação.

Seria necessário um batalhão de técnicos especializados para expor o carácter ilegítimo da dívida pública?

Sim, no que diz respeito a alguns aspectos muito específicos – por exemplo, sem a ajuda de especialistas certas manigâncias financeiras são muito difíceis de descortinar por parte do cidadão comum. Mas de maneira geral basta saber ler para expor o carácter ilegítimo das dívidas públicas (quer se trate da dívida contraída junto da Troika, quer se trate de dívidas autárquicas).

Tal é o caso, por exemplo, da secção do contrato de endividamento celebrado com o FMI que estipula que o empréstimo serve obrigatória e exclusivamente para salvar os bancos privados e os grandes accionistas, incorrendo o Governo português em pesadas sanções se o utilizar para qualquer outro efeito – por exemplo, para satisfazer as necessidades da esmagadora maioria da população. Esse parágrafo do contrato encaixa perfeitamente na definição de dívida ilegítima (benefício de uma minoria privilegiada, às custas da maioria da população), é inteligível para qualquer pessoa e suficiente para declarar unilateralmente a anulação do contrato e da dívida, à luz da jurisprudência internacional.

A oportunidade de avançar propostas de combate contra as dívidas ilegítimas

Teria sido a campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 2021 o momento e o lugar oportunos para lançar uma forte campanha contra a dívida ilegítima? Sim, sem dúvida.

Primeiro, porque a dívida pública portuguesa cresceu de forma alarmante no último ano.

Depois, porque a famosa «bazuca» que aí vem – os fundos da UE destinados a fazer face à crise económica iniciada em 2019 e agravada pelas circunstâncias epidemiológicas – abre mais uma fonte de endividamento, não havendo qualquer garantia de que desta vez os fundos sejam integralmente postos ao serviço da maioria da população – por exemplo, para reforçar o apetrechamento do SNS e contratar mais profissionais da saúde a título duradouro; ou para resolver com urgência os gravíssimos problemas de habitação que assolam milhares de famílias e as impedem de ter um abrigo decente em plena epidemia.

A oportunidade de lançar uma iniciativa de auditoria e repúdio da dívida através da actual campanha eleitoral devia ser evidente, mas foi desperdiçada. Na sua ausência, resta a esperança de que uma iniciativa cívica tome em mãos o problema e desperte consciências.


 (este artigo sofreu correcções de pormenor em 5-05-2021)

 

Fontes e referências

Sobre o aumento da dívida pública em 2020: Vítor Lima, «O ‘Mercado’, o PIB e a Vida», 2/01/2021.

Constituição da República Portuguesa, VII revisão constitucional, 2005.

Sobre os actuais candidatos, apoios partidários, mapas de campanha, sondagens e resultados eleitorais: Wikipedia, «Eleições Presidenciais Portuguesas de 2021».

Rui Viana Pereira, «Aspectos ilegítimos do Acordo FEEF/Portugal», 5/08/2016.

Rui Viana Pereira, «O Que É Uma Dívida Ilegítima?», 4/08/2016.

 

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