Os BRICS e o seu Novo Banco de Desenvolvimento fornecem alternativas ao Banco Mundial, ao FMI e às políticas promovidas pelas potências imperialistas tradicionais?
Nos últimos anos, a legítima rejeição das políticas promovidas pelas potências imperialistas tradicionais (EUA, Europa Ocidental e Japão), seguida de anúncios feitos pelos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), suscitaram muito interesse e a expectativa de grandes alterações, nomeadamente a criação de uma moeda comum que ponha em causa o dólar como moeda dominante. O que aconteceu realmente? Qual o balanço do Novo Banco de Desenvolvimento e do fundo monetário dos BRICS?
Feitas as contas, qual o peso dos BRICS?
Os cinco países membros fundadores dos BRICS1, criados em 2011, são o Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul. Representam 27 % do PIB mundial, 20 % das exportações mundiais, 20 % da produção mundial de petróleo, 41 % da população mundial. Acrescentemos que, aquando da cimeira de agosto de 2023, foi anunciado um alargamento dos BRICS, passando a ser a sigla desse conjunto BRICS+. Seis novos países deviam aderir: Egipto, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irão e Argentina. Finalmente, depois da eleição de Javier Milei em novembro de 2023, a Argentina retirou-se. Se acrescentarmos os cinco novos membros para calcular o peso dos BRICS+, a grande mudança em relação à situação anterior incide sobre a produção de petróleo: os BRICS+ representam agora 42 % da produção petrolífera mundial e 51% das emissões de gases com efeito de estufa. Alguns dados suplementares: os BRICS+ representam 29 % do PIB mundial, 25 % das exportações mundiais e 45 % da população mundial.
Há anos que se fala da possibilidade de lançar uma nova moeda dos BRICS. Como vão as coisas?
Embora haja quem espere ver o assunto tratado na próxima cimeira dos BRICS, que decorrerá em 2024 em Kazan (ou Cazã, a capital da República do Tartaristão, membro da Federação da Rússia), presidida pela Rússia de Vladimir Putin, a criação de uma moeda comum dos BRICS não foi mencionada na declaração final aprovada na cimeira dos BRICS em agosto de 2023 na África do Sul 2. É verdade que no seu discurso de encerramento o presidente brasileiro anunciou que os BRICS tinham:
«aprovado a criação de um grupo de trabalho para estudar a adoção de uma moeda de referência dos Brics. Isso aumentará nossas opções de pagamento e reduzirá nossas vulnerabilidades.» 3
O economista brasileiro Paulo Nogueira Batista, que entre 2007 e 2015 representou o Brasil no FMI sob a presidência de Lula, e que a seguir foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (criado pelos BRICS) de 2015 a 2017, pertence ao grupo de quantos esperam que a criação de uma moeda BRICS faça parte da ordem de trabalhos da XVI Cimeira dos BRICS. Numa comunicação datada de 2023, Paulo Nogueira Batista declarou:
«O próprio presidente Putine, assim como o presidente Lula, falaram muitas vezes da desdolarização e da eventual criação de uma moeda comum ou de referência para os BRICS. Desde 2022, pelo menos, que os peritos russos trabalham neste assunto. A razão pela qual a Rússia está na origem desta ideia é bastante clara.»
É evidente que Nogueira alude às sanções a que a Rússia está sujeita desde a anexação da Crimeia em 2014 e sobretudo depois da invasão da Ucrânia em 2022. Paulo Nogueira prossegue resumindo alguns dos progressos realizados e muitos dos obstáculos encontrados e conclui:
«Temos a sorte de a Rússia presidir aos BRICS em 2024 e o Brasil em 2025 – precisamente os dois países que parecem mais interessados na criação de uma moeda comum ou de referência. Se tudo correr bem, os BRICS poderão tomar uma decisão na cimeira na Rússia, no próximo ano. Daí até à cimeira no Brasil, em 2025, talvez os BRICS se encontrem em condições de anunciar as primeiras etapas da sua criação.» 4
Mas outros galos cantam. De facto, Lesetja Kganyago, economista neoliberal e Governador do Banco Central da África do Sul, está muito menos optimista que Paulo Nogueira. Eis o que William Gumede escreveu no jornal Businessday, a 21-08-2023, durante a cimeira dos BRICS:
«Lesetja Kganyago, alertou contra a utilidade de estabelecer uma moeda comum em um bloco comercial cujos membros se situam em lugares geográficos tão distintos. O sucesso do euro, a moeda comum da UE, assenta em parte na proximidade geográfica, na similitude das instituições económicas e políticas e no abandono pelas economias individuais das suas moedas nacionais.Uma moeda dos BRICS necessitará igualmente de um banco central dos BRICS, uma política monetária comum, um alinhamento das políticas fiscais e uma sinergia entre os regimes políticos no conjunto do bloco comercial. Ora, no estado actual das coisas, as moedas dos BRICS têm regimes de banco central mal adaptados e não são facilmente convertíveis, contrariamente à UE durante a criação do euro. Os bancos centrais da China e da Rússia são igualmente controlados pelo Estado, mas a África do Sul, Índia e Brasil têm bancos centrais independentes. A grande questão está em saber se a China ou a Rússia renunciariam à sua soberania sobre as moedas nacionais, o que é crucial para o sucesso de uma moeda comum.» 5
Acrescente-se a dificuldade em imaginar de a Índia de Narendra Modi, que vai provavelmente entrar em processo eleitoral em maio de 2024, entrar em conflito com os EUA, ao apoiar o lançamento de uma moeda comum, tanto mais que os confrontos económicos e militares sino-indianos continuam. Face à China, a Índia reforça as suas relações com Israel, com Washington, com a Austrália e com o Japão, ao mesmo tempo que ajuda a Rússia a escoar o seu petróleo e se mantém dentro dos BRICS. A Índia, como indica o governador do banco central sul-africano, faz questão em manter a soberania sobre a sua moeda. Tal como o Brasil, pois isso permite a ambos manter ou reforçar a sua influência na sua zona de influência económica. O Brasil em relação às economias suas vizinhas: Paraguai, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela; a Índia em relação ao Bangladeche, ao Nepal, ao Sri Lanka …
Julgo que é mais crucial avaliar o que existe actualmente, do que especular sobre a possibilidade de uma moeda comum aos BRICS se materializar um dia. O certo é que para além dos discursos dos representantes russos e brasileiros, na prática, a criação de uma moeda única não avançou até agora.
Em poucas palavras, o que é o Novo Banco de Desenvolvimento? Qual o papel de cada país dos BRICS no Novo Banco de Desenvolvimento e como funciona?
O NBD foi oficialmente criado a 14 de julho de 2014, por ocasião da XVI Cimeira dos BRICS realizada em Fortaleza, Brasil. O NBD concedeu os seus primeiros créditos a partir de 2016. Os cinco países fundadores têm cada um deles uma quota igual no capital do Banco e nenhum deles tem direito a veto. O NBD, além dos 5 países fundadores, conta como membros com o Bangladeche, os Emirados Árabes Unidos e o Egipto. 6 O Uruguai está em processo de adesão efectiva. O NBD tem um capital de 50 mil milhões de dólares, que deveria ser aumentado no futuro para 100 mil milhões de dólares. A presidência do NBD é rotativa. Cada país exerce a presidência durante um período de 5 anos. Dilma Rousseff, a presidente actual, é brasileira; o próximo ou próxima presidente será russo e será designado em 2025 pelo presidente russo Vladimir Putine, que acaba de ser reeleito na presidência da Federação Russa até 2030. O NBD anunciou que se concentra principalmente no financiamento de projectos de infraestruturas, incluindo sistemas de distribuição de água e sistema de produção de energias renováveis. Insiste no carácter «verde» dos projectos que financia, embora isso seja altamente discutível.
Que diz Paulo Nogueira a propósito do Novo Banco de Desenvolvimento?
Tendo em conta as responsabilidades que lhe incumbiram enquanto representante do Brasil no FMI e depois como vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB em inglês), é interessante publicar um largo excerto das declarações de Paulo Nogueira Batista a propósito do novo banco criado pelos BRICS:
«O Banco alcançou muita coisa, mas ainda não fez a diferença. Francamente, uma das razões reside no tipo de pessoas que enviámos para Shangai desde 2015 como presidentes e vice-presidentes da instituição. O Brasil, por exemplo, sob a administração de Bolsonaro, enviou uma pessoa fraca para ser presidente em meados dos anos 2020 e inícios de 2023 – tecnicamente fraca, orientada para o Ocidente, sem capacidade de liderança e sem a mínima ideia sobre como gerir uma iniciativa geopolítica. Infelizmente, a Rússia não é excepção à regra: o vice-presidente russo do NBD é assinalavelmente inapto para o cargo. A fraqueza da gestão conduziu frequentemente a um mau recrutamento dos quadros.Estes problemas internos do Banco foram agravados por obstáculos políticos mais gerais, nomeadamente as relações tensas entre a China e a Índia, as sanções impostas à Rússia desde 2014 e sobretudo, desde 2022, as crises políticas no Brasil e na África do Sul. Estes problemas macropolíticos no seio dos membros fundadores e entre eles também prejudicaram o NBD.O Brasil enviou Dilma Roussef, antiga presidente do Brasil, para a presidência da instituição. Mas ela tem menos de dois anos para reerguer o Banco. Não chega. De modo que o futuro do NBD depende em grande parte da Rússia. De facto, a Rússia terá a possibilidade de nomear um novo presidente por cinco anos, a partir de julho de 2025. Estou convencido que a Rússia estará à altura, desta vez, de enviar uma pessoa forte para esse posto, uma pessoa de alto nível político, tecnicamente sólida e com uma visão clara dos objectivos políticos que levaram os BRICS a criar o NBD.»
As esperanças de Paulo Nogueira de ver a Rússia dar mais força ao NBD a partir de 2025 têm de ser temperadas por dois factores principais. Por um lado, a evolução da guerra na Ucrânia e as sanções impostas a nível internacional pela América do Norte. Por outro lado, a decisão do NBD, de 4 de março de 2022, de não conceder mais créditos à Rússia. O NDB optou por respeitar as sanções impostas pelos parceiros de Washington e absteve-se de conceder novos empréstimos à Rússia, por receio de uma descida da sua notação de crédito, uma vez que quase 7 % dos compromissos do NDB são na Rússia (a descida da notação pelas agências de notação de Nova Iorque ocorreu efectivamente em meados de 2022). Isto pode ser confirmado no site do NBD, onde se constata que o último projecto russo apoiado financeiramente pelo NBD data de 2021.
Quais são os outros elementos de decepção expressos por Paulo Nogueira a propósito do Novo Banco de Desenvolvimento?
Voltemos à avaliação de Paulo Nogueira sobre as fraquezas do NBD:
«Porque dizemos que o NBD tem sido uma decepção, até hoje? Eis algumas das razões. Os desembolsos têm sido surpreendentemente lentos, com projectos aprovados mas não convertidos em contratos. Quando os contratos são assinados, a aplicação efectiva dos projectos é muito lenta. Os resultados práticos são magros. As operações – financiamentos e empréstimos – são realizadas principalmente em dólares americanos, moeda que também é usada na contabilidade do Banco.O Novo Banco de Desenvolvimento empresta sobretudo em dólaresComo podemos nós, enquanto BRICS, falar de forma credível de desdolarização, se a nossa principal iniciativa financeira responde maioritariamente em dólares?Não me digam que não é possível efectuar as operações em moeda nacional dos nossos países. O Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID, por exemplo, há vários anos que tem experiência em matéria de operações em moeda brasileira. Não compreendo por que razão o NBD não aproveitou esta experiência. Esperemos que Dilma Roussef comece a resolver estes problemas.Além disso o NBD está longe de ser o banco mundial que tínhamos previsto quando o criámos. Apenas três novos países se juntaram a ele em mais de oito anos de existência. Basta comparar com o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (AIIB) 7, dirigido pela China, criado mais ou menos ao mesmo tempo que o NBD, que tem mais de 100 países membros há algum tempo. Em comparação, o governo do NBD tem sido medíocre e as regras não são respeitadas pela direcção. O conselho de administração é ineficaz. A transparência não é respeitada. O Banco é opaco, poucas são as informações prestadas ao público sobre os empréstimos e os projectos. Os recursos humanos são fracos. Numerosos postos importantes no seio do Banco permanecem vagos e o desencorajamento dos empregados é omnipresente, o que leva muitos deles a partirem e, por conseguinte, a uma diminuição do total de empregados.»
Recordemos que esta constatação muito crítica não vem de um inimigo dos BRICS, é formulada por um partidário convicto da necessidade de dar mais força às iniciativas dos BRICS.
Sublinhemos que em abril de 2023 o mais recente empréstimo realizado nos mercados financeiros pelo NBD assumiu a forma de obrigações em dólares norte-americanos 8, em vez de ser feita em renminbi, como foi o caso no início das actividades do banco. É mais uma prova de que a prática do NBD e a estratégia dos BRICS não correspondem à vontade declarada de reduzir resolutamente o lugar do dólar nas trocas internacionais. No período de 2020-2021, 75 % dos empréstimos do NBD foram feitos em dólares americanos. A direção do NDB anunciou que irá reduzir os futuros empréstimos em dólares para 70 % dos activos e passivos até 2030 (um objetivo pouco ambicioso). Esperemos para ver.
Que conclusão devemos tirar do facto de o NBD angariar os empréstimos nos mercados financeiros e em dólares?
É uma boa pergunta. A primeira conclusão é que existe uma grande incoerência entre o facto de afirmar, como fazem os dirigentes dos BRICS, que se quer reduzir o predomínio do dólar e o facto de emprestar em dólares recolhidos nos mercados financeiros. Deviam, se fossem coerentes, desenvolver uma moeda comum ou fazer cada vez mais trocas usando um cabaz comum das suas moedas. E se fosse caso, mesmo assim, de utilizar os dólares americanos, para quê ir buscá-los aos mercados financeiros, quando a China dispõe de uma enorme quantidade de dólares nas suas reservas, mais de 3 biliões de dólares US (3.307.000.000.000 US$ em 31-12-2022, segundo o Banco Mundial). A Índia e o Brasil também dispõem de vultosas reservas em dólares. Segundo o Banco Mundial, as reservas cambiais do Brasil ascendiam em finais de 2022 a 325 mil milhões de dólares US, as da Índia a 563 mil milhões USD e as da Rússia a 582 mil milhões USD. É caso para perguntar porque é que a Rússia deixou na Europa ocidental, principalmente na Euroclear em Bruxelas, perto de 300 mil milhões de euros de reservas que acabaram por ser bloqueadas no âmbito das sanções que se seguiram à invasão da Ucrânia em 2022.
A conclusão que podemos tirar é que, longe de terem construído em conjunto poderosos instrumentos para financiar as trocas e investimentos, os BRICS permanecem presos a relações baseadas na supremacia do dólar e reproduzem o modelo de financiamento adoptado pelas grandes instituições financeiras internacionais como o FMI e o Banco Mundial. É certo que ainda assim existe uma diferença considerável: o NBD não condiciona os seus empréstimos à aplicação de políticas de ajustamento estrutural (embora o Banco Mundial também não o faça, uma vez que os empréstimos se baseiam principalmente em projectos e são microeconómicos, devendo, por conseguinte, ser justificados como financiáveis independentemente das políticas macroeconómicas de um país). Esta diferença, bastas vezes sublinhada por numerosos autores/as, é abordada na minha série de perguntas e respostas consagradas à China como potência credora.
Que tipos de projectos são financiados pelo Novo Banco de Desenvolvimento?
É importante debruçarmo-nos sobre os tipos de iniciativas financiadas pelo NBD. A análise rigorosa do economista sul-africano Patrick Bond dos projectos financiados pelo NBD na República da África do Sul mostra que esses projectos reforçam a extracção neocolonial de matérias-primas e a combustão de combustíveis fósseis, muitas vezes a favor de mutuários que são comprovadamente corruptos e opressivos (ver também «BRICS New Development Bank Corruption in South Africa», publicado a 5/09/2022).
Nesse artigo Patrick Bond conclui:
«O NBD não parece ser uma alternativa ao sistema de financiamento para o desenvolvimento centrado em Washington e está recheado de problemas. Pelo contrário, o caso sul-africano mostra que estão reunidos todos os ingredientes para que o NBD amplifique um desenvolvimento desigual, ao financiar certas instituições do país notoriamente corruptas, para realizar projectos que já de si são muito duvidosos.»
Num documento recentemente apresentado por Patrick Bond no Fórum Social Mundial no Nepal, em fevereiro de 2024, intitulado «The BRICS New Development Bank & Sub-Imperialism: Working within, not against, global financial power» 9, o autor mostra que as políticas dos BRICS, e em particular as do NBD, não constituem uma alternativa ao modelo imperialista dominado pelos EUA. Não rompem com a dominação do dólar e reproduzem o mesmo modelo de exportação extractivista.
Há boas razões para partilhar a opinião de Samir Amin, igualmente retomada por Patrick Bond, sobre os BRICS, cujas políticas não rompem no fundamental com a mundialização capitalista neoliberal. Samir Amin escreve:
«A ofensiva em curso do imperialismo colectivo EUA-Europa-Japão contra todos os povos do Sul assenta em dois pilares:
- o pilar económico – o neoliberalismo mundializado imposto como única política económica possível; e
- o pilar político – intervenções contínuas, incluindo guerras preventivas contra quem rejeita as intervenções imperialistas.
Onde pára o fundo monetário dos BRICS, conhecido pela sigla anglófona CRA?
Voltemos às opiniões expressas por Paulo Nogueira Batista a propósito dos BRICS e do seu fundo monetário comum:
«Os BRICS são sem dúvida uma força maior no mundo, desde que se formaram, em 2008. Podemos de facto ser um factor crucial na consolidação de um planeta pós-ocidental e multipolar. É isso que se espera dos nossos países. Contudo, podemos perguntar-nos se os BRICS deram resposta plena a essa expectativa. Qual o nosso balanço, desde que começámos a trabalhar juntos em 2008, por iniciativa da Rússia? Que conseguiremos nós alcançar no futuro? Para responder à primeira pergunta, vou ser franco e até por vezes um pouco duro. Não vejam nas minhas palavras arrogância ou pretensiosismo. Elas exprimem a opinião de um perito, com as fraquezas inerentes a qualquer opinião. Espero que as minhas observações não sejam completamente despropositadas. Não será verdade que a autocrítica, ainda que dolorosa, pode ser benéfica? Não vou falar como investigador universitário, mas sim como praticante que esteve envolvido no processo dos BRICS desde o seu início, em 2008, a partir de Washington D.C., e até 2017, quando deixei o lugar de vice-presidente do banco dos BRICS em Shangai. Para além dos discursos, das declarações e dos comunicados, realizámos até à data duas coisas práticas e potencialmente muito importantes: 1) um fundo monetário dos BRICS, chamado Contingent Reserve Arrangement (CRA em inglês – Acordo de Reserva Contingente, ARC); e, mais significativamente, 2) um banco multilateral de desenvolvimento (NDB em inglês) mais conhecido por “banco dos BRICS”, com sede em Shangai.Os dois mecanismos de financiamento existentes dos BRICS foram criados em meados de 2015, há mais de oito anos. Permitam-me assegurar-vos que quando lançámos o ARC e o NDB, havia em Washington, no FMI e no Banco Mundial uma considerável inquietação quanto ao que os BRICS iriam fazer nesse domínio. Posso testemunhá-lo, porque vivi aí nessa época, no cargo de administrador do Brasil e de outros países dentro do conselho de administração do FMI.Com o correr do tempo, porém, as pessoas em Washington relaxaram, talvez por sentirem que não íamos a lado algum com o ARC (= o fundo monetário comum dos BRICS) e o Novo Banco de Desenvolvimento.»
Em suma, Paulo Nogueira Batista afirma que em consequência da lentidão do desempenho do ARC e do NBD dos BRICS, os dirigentes do FMI e do BM, que começaram por se sentirem inquietos com a potencial concorrência, acabaram por ficar descansados.
Porque não avançou o projecto de fundo monetário comum?
Segundo Paulo Nogueira, que analisa a lentidão da criação do fundo monetário comum que deveria ser criado pelos BRICS com o nome de CRA:
«O Acordo de Reserva Contigente (ARC) dos BRICS foi congelado pelos nossos cinco bancos centrais. Permanece diminuto; conta apenas com cinco membros e o seu trabalho é entravado por numerosas restrições. A unidade de vigilância que tínhamos previsto não foi criada e não foi efectuada qualquer operação de apoio à balança de pagamentos, apenas foram feitos testes. Se os BRICS querem realmente oferecer uma alternativa ao FMI dominado pelo Ocidente, o ARC tem de ser alargado em termos de recursos, novos países devem ser autorizados a aderir, deve ser-lhe conferida maior flexibilidade, deve ser montada logo que possível uma unidade de vigilância sólida (semelhante à da iniciativa de Chiang Mai em Singapura), e a ligação ao FMI deve ser progressivamente aliviada.Tudo isto é mais fácil de dizer do que fazer. Tendo participado intensamente nos dois anos de negociações que levaram à criação do ARC, posso dizer-vos que a principal razão da falta de progressos é a resistência tenaz dos nossos bancos centrais, com excepção do banco central chinês. O banco central brasileiro é provavelmente o pior.O banco central sul-africano não esteve longe de tornar o ARC inflexível – o que é muito estranho, dado que a África do Sul é o único país dos BRICS que poderia necessitar de apoio à sua balança de pagamentos num futuro previsível.E quanto à Rússia? Será possível fazer o banco central russo compreender que o ARC é hoje em dia potencialmente mais importante do que quando o concebemos, tendo em conta a evolução do contexto geopolítico?De resto, não me venham dizer que o ARC sofre dos mesmos problemas que todos os outros fundos monetários criados em alternativa ou em complemento ao FMI. Por exemplo, o pequeno FLAR – Fundo de Reserva Latino-Americano 12 – e o Fundo Monetário Árabe 13 têm mais membros que o ARC e são instituições activas que lançaram numerosas operações de apoio à balança de pagamentos. Entretanto, o nosso ARC dormia.»
Salta à vista que enquanto a África do Sul, ainda há pouco tempo, precisava de crédito para equilibrar a balança de pagamentos, em vez de poder pedir um empréstimo ao ARC, teve de se endividar ao FMI. As inconsistências, reforçadas pelas contradições (nomeadamente entre a China e a Índia) dentro dos BRICS impediram até agora a criação de um fundo monetário comum que tinham prometido a si mesmos há 10 anos. Acresce um factor suplementar: à parte a África do Sul, os membros dos BRICS não têm falta de reservas cambiais. Dito isto, se eles quisessem realmente constituir um pólo de atracção importante, em relação a países mais fracos, teriam tudo a ganhar ao criarem esse fundo monetário.
Quais são os elementos da declaração final da cimeira dos BRICS de 2023 que demonstram que eles não representam uma alternativa ao modelo económico aplicado por Washington e seus aliados?
Eis alguns excertos da declaração final da Cimeira dos BRICS de agosto de 2023 que demonstram muito claramente que as políticas que aí foram preconizadas apontam no sentido da mundialização capitalista neoliberal promovida pelas potências imperialistas tradicionais e por instituições como o Banco Mundial, o FMI, a OMC, o G7, o G20 e as grandes empresas privadas. Os destaques a negrito são nossos:
«8. Reafirmamos o nosso apoio ao sistema comercial multilateral aberto, transparente, justo, previsível, inclusivo, equitativo, não discriminatório e alicerçado em regras, no âmago do qual encontramos a Organização Mundial do Comércio (OMC), (…)9. Sublinhamos a necessidade de progredir para a implementação de um sistema comercial agrícola equitativo e orientado para o mercado (…)10. Somos favoráveis a um dispositivo mundial de segurança financeira sólida, no centro do qual se encontra um Fundo Monetário Internacional (FMI) (…)29. Verificamos que os elevados níveis de dívida em certos países reduzem a margem de manobra orçamental necessária para fazer face aos desafios do desenvolvimento em curso, agravados pelos efeitos nocivos dos choques externos, em particular a retracção monetária brutal nas economias avançadas. A subida das taxas de juro e a retracção das condições de financiamento agravam a vulnerabilidade da dívida em numerosos países. (…) Um dos instrumentos, entre outros, para tratar colectivamente as vulnerabilidades da dívida é a implementação previsível, ordenada, oportuna e coordenada do quadro comum do G20 para tratamento da dívida (…)30. Reafirmamos que é importante que o G20 continue a desempenhar o papel de primeiro fórum multilateral no domínio da cooperação económica e financeira internacional, que engloba ao mesmo tempo os mercados desenvolvidos e emergentes e os países em desenvolvimento, onde as grandes economias procuram encontrar em conjunto soluções para os desafios mundiais. Congratulamo-nos com a ideia de acolher com sucesso a 18ª cimeira do G20 em Nova Deli [9-10/09/2023], sob a presidência indiana do G20.»[Extraído de: XV Cimeira dos BRICS, Declaração final de Joanesburgo, 23/08/2023.]
Como estes excertos indicam, os BRICS aceitam o quadro capitalista mundial estruturado em torno de uma série de pilares institucionais que eles próprios afirmam que devem continuar a desempenhar um papel central.
Não só não propõem um quadro institucional alternativo ao que foi estabelecido a seguir à II Guerra Mundial ou após a crise de 2008, quando o G20 foi activado, mas também eles próprios constroem o mesmo modelo de financiamento. Adoptam um modelo de desenvolvimento económico centrado na exploração dos recursos naturais dos países do Sul Global e da sua mão-de-obra muito competitiva [barata], a fim de trocar um máximo de produtos e serviços no mercado mundial, dominado por grandes potências económicas e militares. Em nenhum passo das declarações dos BRICS encontramos uma crítica ao sistema capitalista, ao seu modo de produção, às suas relações de propriedade, à exploração dos povos e da Natureza. A razão é simples: os BRICS são eles próprios países que adoptaram o sistema capitalista, com determinadas características específicas como é o caso da China, onde as empresas estatais e o Estado Central desempenham um papel chave.
Estamos muito longe da construção da nova arquitectura internacional de que os povos necessitam.
O autor agradece a Patrick Bond, cujos numerosos trabalhos sobre os BRICS foram úteis para a redacção deste artigo. Agradeço igualmente a Patrick Bond e a Maxime Perriot pela sua releitura e a Claude Quémar pela ajuda na busca documental.
Fontes e referências
Fonte: «Les BRICS et leur Nouvelle banque de développement offrent-ils des alternatives à la Banque mondiale, au FMI et aux politiques promues par les puissances impérialistes traditionnelles ?», 19/04/2024.
Tradução de Rui Viana Pereira.
Índice deste caderno
Imperialismo: análises e tesesvisitas (todas as línguas): 3