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Valor de uso e valor de troca

Rui Viana Pereira, 18/11/2011

Quando queremos avaliar um bem ou um serviço, temos de considerar dois tipos diferentes de valor: o valor de uso e o valor de troca.

  • O valor de uso obedece a critérios de avaliação puramente qualitativos. Isto significa que uma coisa que tem alto valor de uso para mim (por exemplo, o café), para ti pode ter um valor de uso nulo. Por outras palavras, o valor de uso não pode ser medido, apenas pode ser qualificado, apreciado ou estimado. O valor de uso é incomensurável.
  • O valor de troca obedece a critérios de avaliação puramente quantitativos. É mensurável e portanto pode ser avaliado em função de uma escala normalizada – por exemplo, podemos medir o valor de troca do café em euros.

Embora se trate de dois conceitos bastante simples e distintos, a sua apreensão pode tornar-se confusa por razões culturais. Para tornar as coisas claras e simples, vamos estudar o caso de um bem vital, que para todos tem exactamente o mesmo valor qualitativo.

O valor do ar que respiramos

O ar que respiramos é um bem vital – tê-lo ou não tê-lo à disposição faz a diferença entre vida e morte. Por conseguinte não resta grande margem para discussões: o valor de uso que cada um atribui ao ar é, na prática, o mesmo valor que atribui à vida. É um excelente exemplo não só de um valor de uso unânime (perdoem-me as pessoas com atracção pela morte este meu exagero), ao contrário do café.

A comparação entre a avaliação do ar respirável e a avaliação do café é útil, porque nos permite ver imediatamente que valor de uso e valor de troca podem ser divergentes. Por outras palavras, são dois critérios de valor distintos e com pouca ou nenhuma influência mútua, conforme os casos.

Regra geral toda a gente tem ar respirável à sua disposição, livremente, de modo que à primeira vista estamos perante um bem com valor de uso e sem valor de troca. Toda a gente o deseja, toda a gente o valoriza, podemos ouvir as pessoas inquirirem sobre as suas qualidades – é puro?, é fresco? é abafado? –, ninguém pergunta «quanto custa?» ou «quanto vale?». Embora a cultura dominante nos leve a confundir todos os tipos de avaliação com o valor de troca, parece evidente que o ar que respiramos (ainda) não constitui um valor de troca; aparentemente está ao alcance de toda a gente. Na realidade não é bem assim, como veremos adiante.

O facto de podermos dispor de todo o ar de que necessitamos para viver, sem para isso termos de nos dar a trabalhos, justifica o facto de aparentemente estarmos perante um bem com valor puramente de uso e sem valor de troca. Esta observação tem a ver com um aspecto essencial: quando falamos de valor de troca, isso supõe à partida que o bem em causa envolveu nalgum momento uma certa quantidade de trabalho (mais exactamente: uma certa quantidade de trabalho socialmente acumulada), A medição dessa quantidade de trabalho é decisiva na avaliação do seu valor de troca. Quando não existe trabalho alheio envolvido, ou trabalho pessoal transmissível (por exemplo, quando sorvemos o ar que nos rodeia), então é certo que não existirá valor de troca (a não ser que alguma especulação ideológica ou mercantilista tenha pervertido os critérios de avaliação).

Consideremos agora uma situação peculiar: estamos de férias, fomos visitar os Açores, e agora queremos ver o fundo dos mares e nadar com as baleias. Para isso temos de mergulhar, ou seja, vamos entrar num ambiente onde não existe ar respirável. A única forma de o fazermos consiste em recorrer a botijas de ar comprimido. E aí, de repente, percebemos que afinal o ar respirável também pode ter um valor de troca em determinadas circunstâncias. O seu valor de uso manteve-se inalterado, sem ele continuamos sujeitos à morte; o valor de troca é que mudou: passou de zero a X. Isto deve-se a um facto muito simples, como já vimos: para termos uma botija de ar foi necessário que alguém construisse uma botija, que outros isolassem o oxigénio, que outros o comprimissem para dentro da botija, que outros a levassem aos pontos de distribuição, etc. Aquela botija de oxigénio representa uma enorme quantidade de trabalho socialmente acumulado e por isso (numa sociedade mercantilizada, entenda-se) tem um valor de troca.

Esta última observação permite-nos compreender o seguinte: numa sociedade mercantilizada, o trabalho é a chave secreta que nos permite avaliar todos os bens e serviços, ou seja, calcular o seu valor de troca.

Serviços sociais e seu valor de uso e de troca

Uma vez adquirida a noção de valor de uso e valor de troca, torna-se mais fácil compreendermos o que está em causa nos serviços sociais. É evidente o valor de uso dos serviços de saúde, de educação, de cuidados familiares e domésticos, de habitação, de higiene pública, etc. Sem eles, seria difícil ou mesmo impossível sobreviver e portanto eles têm um valor de uso que devia ser tão estimado quanto o do oxigénio.

Todos esses serviços envolvem quantidades gigantescas de trabalho acumulado e portanto é de recear que o seu valor de troca seja muito elevado. Nalguns aspectos, porém, é difícil avaliá-lo, pois envolve processos circulares: para termos um bom médico, ele teve de ser formado em diversos estabelecimentos de ensino (onde trabalham pessoas que tiveram de passar por outros estabelecimentos de ensino para exercerem o seu magistério, e assim por diante), teve de ser criado por cuidadores (familiares, creches, outros médicos, etc.) e assim por diante. Neste tipo de casos circulares, alguns autores consideram impossível fazer a avaliação integral do valor de troca. Para todos os efeitos, o seu valor de uso deveria sobrepor-se, em todas as circunstâncias, ao seu valor de troca, porque trata-se de garantir a sobrevivência de toda a sociedade, isto é, o direito à vida.

Por outro lado, a circularidade da produção destes serviços significa que eles só podem alcançar a qualidade máxima quando forem geridos a nível social global, e não a nível individual ou privado. Um médico ou um professor jamais poderão alcançar a qualidade óptima quando a sua formação e a organização do seu labor dependam da iniciativa individual ou privada, pela simples razão de que, à partida, essa formação e essa gestão dependem de um processo social muitíssimo complexo, vasto e circular. Individualizar e privatizar totalmente o processo implicaria quebrar a sua circularidade; quebrar a sua circularidade acarreta a morte do serviço, por definição.

Postas as coisas nestes termos, uma sociedade que despreze a gestão social dos serviços essenciais à sobrevivência de todos, entregando-os exclusivamente às mãos da iniciativa capitalista privada, é uma sociedade virtualmente condenada à morte. Ainda queiramos admitir a existência de um sector privado, por exemplo de ensino ou de saúde, devia ser evidente que mesmo esse sector não conseguirá sobreviver se não existir um sector social mais forte que ele, capaz de produzir o conhecimento e a formação dos profissionais, capaz de organizar e controlar a globalidade dos serviços (públicos e privados) dentro de uma comunidade.

Em suma, ainda que possa existir valor de troca nos serviços sociais, esse valor é insignificante face à enorme importância do seu valor de uso e só pode ser calculado por meios artificiais. Como corolário deste princípio, temos que os serviços sociais essenciais à sobrevivência individual e colectiva não são sensíveis à noção de prejuízo e lucro mercantil; a única coisa que conta é a sua eficácia.

 

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