Anexo: Valor de uso e valor de troca
Quando queremos avaliar um bem ou um serviço, temos de considerar dois tipos diferentes de valor: o valor de uso e o valor de troca.
- O valor de uso obedece a critérios de avaliação puramente qualitativos. Isto significa que uma coisa que tem alto valor de uso para mim (por exemplo, o café), para ti pode ter um valor de uso nulo. Por outras palavras, o valor de uso não pode ser medido, apenas pode ser qualificado, apreciado ou estimado. Deste ponto de vista posso avaliar o café dizendo se me sabe bem/mal, se é ácido/denso/perfumado, que efeitos tem sobre a minha saúde e bem-estar, etc. – tudo aspectos qualitativos, incomensuráveis.
- O valor de troca obedece a critérios de avaliação puramente quantitativos. É mensurável e portanto pode ser avaliado em função de uma escala normalizada – por exemplo, podemos medir o valor de troca do café em euros. Deste ponto de vista posso avaliar o café perguntando se é caro/barato, quanto vale, etc.
Embora se trate de dois conceitos bastante simples e distintos, a sua apreensão pode ser difícil para algumas pessoas, por razões que resultam do tipo de cultura em que vivemos mergulhados há muitas gerações e que nos leva a reconduzir aos seus aspectos quantitativos todas as perguntas sobre o que nos rodeia. Para tornar as coisas claras e simples, vamos estudar o caso de um bem vital, bem conhecido de todos, que para todos tem exactamente o mesmo valor qualitativo.
O valor do ar que respiramos
O ar que respiramos é um bem vital – tê-lo ou não tê-lo à disposição faz a diferença entre vida e morte. Por conseguinte não resta grande margem para discussões: o valor de uso que cada um atribui ao ar é exactamente o mesmo valor que atribui à vida. É um excelente exemplo não só de um bem com o máximo valor de uso possível, mas também de um dos raros bens que são objecto de uma valorização qualitativa unânime (perdoem-me as pessoas com atracção pela morte este meu exagero), ao contrário do café.
A comparação entre a avaliação do ar respirável e a avaliação do café é útil, porque nos permite ver imediatamente que valor de uso e valor de troca tanto podem ir a par, como podem ser divergentes. Por outras palavras, são dois critérios de valor distintos e com pouca ou nenhuma influência mútua.
Regra geral toda a gente tem ar respirável à sua disposição, livremente, de modo que à primeira vista estamos perante um bem com valor puramente de uso e sem valor de troca. Toda a gente o deseja, toda a gente o valoriza, podemos ouvir as pessoas inquirirem sobre as suas qualidades – é puro?, é fresco? é abafado? –, ninguém pergunta «quanto custa?» ou «quanto vale?». Embora a cultura dominante nos leve a confundir todos os tipos de avaliação com o valor de troca, parece evidente que o ar que respiramos (ainda) não constitui um valor de troca; aparentemente está ao alcance de toda a gente. Na realidade não é bem assim, como veremos adiante.
O facto de podermos dispor de todo o ar de que necessitamos para viver, sem para isso termos de nos dar a trabalhos, justifica o facto de aparentemente estarmos perante um bem com valor puramente de uso e sem valor de troca. Esta observação tem a ver com um aspecto essencial: quando falamos de valor de troca, isso supõe à partida que o bem em causa envolveu nalgum momento uma certa quantidade de trabalho. A medição dessa quantidade de trabalho é decisiva na avaliação do seu valor de troca. Quando não existe trabalho alheio envolvido, ou trabalho pessoal transmissível (por exemplo, quando sorvemos o ar que nos rodeia), então é certo que não existirá valor de troca (a não ser que alguma especulação ideológica ou mercantilista tenha pervertido os critérios de avaliação).
Consideremos agora uma situação peculiar: estamos de férias, fomos visitar os Açores, e agora queremos ver o fundo dos mares e nadar com as baleias. Para isso temos de mergulhar, ou seja, vamos entrar num ambiente onde não existe nenhum ar respirável. A única forma de o fazermos consiste em recorrer a botijas de ar comprimido. E aí, de repente, percebemos que afinal o ar respirável também pode ter um valor de troca em determinadas circunstâncias. O seu valor de uso manteve-se inalterado, sem ele continuamos sujeitos à morte; o valor de troca é que mudou: passou de zero a X. Isto deve-se a um facto muito simples, como já vimos: para termos uma botija de ar foi necessário que alguém construisse uma botija, que outros isolassem o oxigénio, que outros o comprimissem para dentro da botija, que outros a levassem aos pontos de distribuição, etc. Aquela botija de oxigénio representa uma enorme quantidade de trabalho acumulado e por isso (numa sociedade mercantilista, entenda-se) tem um valor de troca.
Esta última observação é muito importante para compreendermos o seguinte: nas nossas sociedades, o trabalho é a chave secreta que nos permite avaliar todos os bens e serviços, ou seja, calcular o seu valor de troca.
Serviços sociais e seu valor de uso e de troca
Uma vez adquirida a noção de valor de uso e valor de troca, torna-se mais fácil compreendermos o que está em causa nos serviços sociais. Depois das explicações dadas acima, devia ser evidente a importância do valor qualitativo dos serviços de saúde, de educação, de cuidados familiares e domésticos, de habitação, de higiene pública, etc. Sem eles, pura e simplesmente não conseguiríamos sobreviver e portanto, tal como sucede com o ar, eles têm um valor de uso elevadíssimo; a sua avaliação, apesar de controversa nos tempos que vão correndo, deveria ser unânime e incontroversa, tal como sucede com a qualidade e disponibilidade do ar que respiramos.
Além disso, todos esses serviços envolvem quantidades gigantescas de trabalho acumulado e portanto é de recear que o seu valor de troca seja muito elevado. Nalguns aspectos, porém, é difícil avaliá-lo, pois envolve processos circulares: para termos um bom médico, ele teve de ser formado em diversos estabelecimentos de ensino (onde trabalham pessoas que tiveram de passar por outros estabelecimentos de ensino para exercerem o seu magistério, e assim por diante), teve de ser criado por cuidadores (familiares, creches, outros médicos, etc.) e assim por diante. Neste tipo de casos circulares, na minha opinião (e na de outros autores), é impossível fazer a avaliação integral do valor de troca; o seu valor de uso é muito mais importante e evidente do que o seu valor de troca.
Por outro lado, a circularidade da produção destes serviços significa que eles só podem alcançar a qualidade máxima quando forem geridos a nível social global, e não a nível individual ou privado. O fabrico de um prego pode alcançar a qualidade máxima mesmo que a sua produção dependa exclusivamente da iniciativa individual; um médico ou um professor, contudo, jamais poderão alcançar a qualidade máxima quando a sua formação e a organização do seu labor dependam da iniciativa individual ou privada, pela simples razão de que, à partida, essa formação e essa gestão dependem de um processo social muitíssimo complexo, vasto e circular. Individualizar e privatizar totalmente o processo implica quebrar a sua circularidade; quebrar a sua circularidade acarreta a morte do serviço, por definição.
Postas as coisas nestes termos, devia tornar-se claro que uma sociedade que despreze a gestão social dos serviços essenciais à sobrevivência de todos, entregando-os exclusivamente às mãos da iniciativa capitalista privada, é uma sociedade virtualmente condenada à morte. Ainda que admitamos a existência de um sector privado, por exemplo de ensino e de saúde, devia ser evidente que mesmo esse sector não conseguirá sobreviver se não existir um sector social mais forte que ele, capaz de produzir o conhecimento e a formação dos profissionais, capaz de organizar e controlar a globalidade dos serviços (públicos e privados) dentro de uma comunidade.
Em suma, ainda que possa existir valor de troca nos serviços sociais, este valor é insignificante face à enorme importância do seu valor de uso.