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Um milhão de revoltas e vontades

Rui Viana Pereira, 16/09/2012

A resignação como marca da casa? Não!

Nos últimos anos, exceptuados os protestos de vanguarda expressos por alguns movimentos e organizações sociais, a população portuguesa tem suportado de forma submissa as medidas de austeridade – com incómodo, com sacrifício, mas ainda assim pacífica e resignadamente.

Esta resignação não nasce de um carácter «nacional» ou cultural, nem resulta de estupidez congénita. É induzida por décadas de campanhas maciças de propaganda que levaram os trabalhadores portugueses a acreditar nos mais espantosos contos do vigário, contra toda a evidência. A força dessas campanhas levou-os a acreditar que é culpa sua o défice do Estado e o endividamento público; que a salvação das suas vidas depende da salvação dos bancos e dos especuladores financeiros; que não há dinheiro para pagar os serviços e funcionários do Estado. Por isso aceitaram a intervenção da Troika.

O facto de esta credulidade inocente acontecer num país onde o ordenado mínimo líquido nos últimos anos se situa abaixo dos 400 euros (compare-se com a Espanha, Grécia e outros países da Europa), sugere duas conclusões: 1) é mais fácil ludibriar e dominar um povo habituado à miséria durante muitas gerações; 2) nos últimos 30 anos o capital e os partidos do arco do poder (PS, PSD e CDS-PP no caso português) concentraram a maior parte das suas forças e recursos na contratação de assessores de imprensa e no controle absoluto dos meios de comunicação.

Foto de Rita Neves

Toda a resignação tem um limite

Ainda assim, o desconforto e a revolta de alguns sectores da população fazem-se sentir periodicamente. De 12 de Março de 2011 para cá, assistimos a duas greves gerais e várias manifestações de grande dimensão. E agora, no passado 15 de Setembro, vimos descer à rua uma massa impressionante de gente revoltada. As estimativas apontam para mais de um milhão de manifestantes em todo o país.

As palavras de ordem da convocatória sintetizam de forma exemplar todos os motivos de revolta latente: «Que se lixe a troika»; «Queremos [recuperar] as nossas vidas»; «É preciso fazer qualquer coisa de extraordinário». Tudo o mais está subentendido nestas três frases: a urgência de derrubar o governo, de pôr fim à política de austeridade, de repor as funções sociais do Estado, de suspender o pagamento duma dívida pública ilegítima que beneficia o capital e rouba os trabalhadores.

Antes do dia da manifestação, vários representantes dos oficiais e sargentos das forças armadas deixaram um recado claro: existem boas razões para o povo português se revoltar contra este estado de coisas e os poderes políticos não podem contar connosco para reprimir o povo que jurámos defender.

Foto de Rita Neves

O que pode significar um milhão de pessoas no contexto actual?

Recordemos que um milhão de pessoas corresponde a cerca de 10 % dos eleitores.

Recordemos também, antes de embandeirarmos em arco, que a actual coligação no poder (CDS-PP + PSD) obteve nas eleições de 5-Jun-2011 o apoio de 29 % dos eleitores – mas isso foi antes de os trabalhadores perderem um a três meses de salário por ano; antes da anulação prática dos instrumentos de acordo colectivo de trabalho; antes do aumento da carga horária de trabalho, semanal e anual; antes de os trabalhadores serem obrigados a fazer horas (e até dias) extraordinárias e não remuneradas; antes do aumento do IVA; antes dos cortes nas pensões de reforma e invalidez, na saúde, na educação, na cultura, nos apoios ao desemprego e à miséria; antes do despedimento em massa dos professores; antes do despedimento, reforma compulsiva e precarização dos médicos e enfermeiros do serviço nacional de saúde; antes do encerramento de grande número escolas, hospitais e serviços de saúde; antes da redução drástica das camas disponíveis nos hospitais públicos; antes do aumento das propinas; antes do reforço das medidas de educação tendentes a transformar as crianças em trabalhadores habituados à escravidão logo a partir dos 5 anos de idade; antes de certas brigadas de polícia entrarem a matar nos bairros da periferia urbana; antes de mais de 100 militantes serem levados a tribunal por se manifestarem pacificamente contra a prepotência camarária; antes de as páginas de Internet onde se anunciam as manifestações e concentrações serem encerradas e bloqueadas; antes de os militantes que procuram ajudar os moradores dos bairros de lata serem espancados por polícias à paisana; antes de desempregados indignados serem presos e levados a tribunal por tentarem entrar num centro de emprego, pedir trabalho e distribuir panfletos; antes da carga horária dos professores ser brutalmente aumentada; antes de o ministro da educação decretar que a lotação máxima das salas de aula passa para 30 alunos (era 24 há dois anos); antes de os doentes de hemodiálise sem recursos económicos serem abandonados à morte no interior do país, naquilo que já pode ser considerado como um novo massacre dos tempos modernos; antes de o governo decretar o encerramento da maior e mais importante maternidade do país, onde se fazia escola e cultura na matéria; antes de o orçamento da cultura sofrer um corte de 100 %; antes...

Importa saber que nesta manifestação estavam muitos milhares de militantes e simpatizantes de organizações políticas, partidárias e sindicais que (elas, as organizações) começaram por condenar a manifestação. Importa saber que durante uma semana inteira e até 2 horas antes da concentração, os órgãos de comunicação fizeram uma campanha exaustiva para dissuadir a população de se manifestar, ameaçando com cargas policiais, provocadores infiltrados, extremistas mascarados e mal-intencionados – contribuindo assim para impedir que muitas mais centenas de milhar de pessoas saíssem à rua. Sob uma capa de aparente neutralidade, a comunicação social deu o seu melhor para desmobilizar a manifestação.

Foto de Rita Neves

Súbita e imprevisível, a gota de água

Com uma notável falta de sentido do timing, dois dias depois da convocatória da manifestação o primeiro-ministro anunciou uma das medidas mais ofensivas de que os trabalhadores têm memória: a subida de 7 % da contribuição para a segurança social, acompanhada da descida de 5,75 % do lado da contribuição patronal e de mais cortes nas funções sociais do estado. Esta medida vem somar-se às anteriores medidas de austeridade e implica uma nova redução salarial de pelo menos 8,5 %.

Muitas das pessoas que compareceram à manifestação (talvez a larga maioria) já não possui outras armas de protesto e luta – são trabalhadores com vínculo precário; não podem dar-se o luxo de distribuir um panfleto, de fazer uma greve, sob pena de despedimento imediato e de entrarem na lista negra das agências de emprego. Hoje, muita gente tem terror de comparecer a um protesto público, ser fotografado e reconhecido publicamente, e em consequência ser despedido. Vivemos um clima de medo semelhante ao que imperava durante a ditadura.

Por tudo isto, e não apenas pela força dos números, a manifestação de 15-Set-2012 foi uma demonstração clara do espírito de revolta que vai alastrando no país. Em termos estritamente numéricos, a única coisa parecida de que temos memória foi o 1.º de Maio de 1974, quando um milhão de pessoas saiu à rua em Lisboa (nessa época a população lisboeta era bastante superior à actual). Há, no entanto, uma diferença importante a assinalar: sentiu-se qualquer coisa de profundamente comovente no Maio de 1974, quando um milhão de gente a rir e aos pulos na rua cumprimentava e abraçava fraternalmente o companheiro ou a companheira do lado, fosse quem fosse. É esta alegria vitoriosa que falta somar ao que vimos este fim-de-semana nas ruas de Lisboa e do Porto.

Foto de Rita Neves

Esta mobilização massiva não pode ser um acidente no deserto

Evidentemente não basta sair à rua e gritar «basta!». Nunca uma alteração política e de poder pôde ser feita apenas com boas intenções e palavras de ordem – são necessárias formas de luta mais duras, que forcem o poder a arrepiar caminho ou, melhor ainda, a cair. Neste sentido, face ao formidável potencial demonstrado em todo o país no passado dia 15, os sindicatos e as organizações de esquerda adquiriram redobrada responsabilidade no processo de luta contra a austeridade e o poder instituído. Já não podem desculpar-se com dúvidas sobre o estado subjectivo dos trabalhadores portugueses – ficou bem claro, independentemente das opções políticas de cada um, que existe uma consciência e uma vontade generalizada de pôr fim às medidas de austeridade, de mandar este governo, o FMI e a Troika para casa.

Doravante, qualquer acto das organizações de trabalhadores e políticas que não tome em consideração a clareza desta demonstração, que procure apaziguar os ânimos e assinar compromissos, só pode ser visto como um execrável acto de traição.

 
temas: evento, 15 setembro 2012

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