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Os malentendidos da reestruturação

Rui Viana Pereira, 20/12/2011

Todas as palavras transportam consigo uma herança histórica, cultural, etimológica. É isso que nos permite entendermo-nos, comunicarmos e construirmos uma imagem do mundo que nos rodeia.

Após muitos meses de conversas particulares com activistas, lendo os seus blogues, examinando os seus rascunhos, propostas e resoluções, ouvindo intervenções escritas ou orais que infelizmente nem sempre ficam para a história, começo finalmente a compreender o enorme malentendido que se gerou à volta das expressões «reestruturação» e «renegociação».

Parece-me claro que existem dois casos distintos entre os defensores da reestruturação da dívida pública: por um lado os que baseiam a defesa da reestruturação num malentendido sobre o significado desta palavra e suas implicações; por outro lado, os defensores convictos e esclarecidos, aqueles que sabem exactamente o que estão a dizer e para onde caminham. Ambos surgem aparentemente ombro a ombro do mesmo lado da barreira, mas seria da maior conveniência aprendermos a distingui-los.

O campo do malentendido

Os primeiros, os que laboram num malentendido, pretendem geralmente ver a dívida reformulada em termos mais justos, o que implicaria a redução das taxas de juro para níveis abaixo da usura (por exemplo, para a mesma taxa a que o Banco Central Europeu empresta aos bancos que por sua vez compram dívida soberana), o eventual repúdio de parcelas da dívida ilegítimas, que resultam da corrupção ou que não passam de «socialização» das dívidas privadas dos bancos e das empresas. Por outras palavras, o que de facto essas pessoas defendem não difere significativamente daquilo que o CADPP defende, mesmo que não tenham ainda adquirido uma consciência plena da natureza do processo de endividamento num estado capitalista.

Por outro lado, nem sempre os activistas engajados em movimentos organizados ou em partidos sustentam o mesmo discurso em diferentes circunstâncias – é comum que numa situação privada sustentem as suas próprias ideias (porque a generalidade destes activistas tem a capacidade de pensar pela sua própria cabeça), mas numa situação pública tendam a reproduzir o discurso «oficial» da organização a que pertencem, nem sempre coincidente com as posições que defenderam descontraidamente há 10 minutos ali na tasca da esquina.

Assim, parece-me urgente alertar todos os opositores firmes da reestruturação para a necessidade de não hostilizar activistas que, embora utilizando as palavras erradas, poderão afinal estar a defender as mesmas posições que esses opositores advogam. A hostilidade, pública ou pessoal, tem invarialmente o poder de transformar o debate ideológico num embate emocional, de transmutar toda a lógica discursiva em descarga hormonal, enquistando em extremos opostos pessoas que afinal pertenciam ao mesmo campo.

Uma das coisas mais frustrantes destes últimos 9 meses de activismo político tem sido a necessidade de canalizar o tempo e a energia disponíveis para este tipo de batalhas emocionais. Embora toda a gente saiba sem sombra de dúvida onde se situa o inimigo principal, a maior parte das energias, quando não a sua totalidade, perde-se no combate a um «inimigo» secundário que muitas vezes nem sequer é inimigo, é apenas malentendido.

O sentido histórico da reestruturação

A expressão «reestruturação da dívida» contém em si uma carga etimológica e histórica que deve ser apreendida antes de ser tomada qualquer posição, sob pena de todo o debate se tornar inútil. Reestruturação da dívida, ao contrário do que muitos activistas de esquerda supõem, não significa a renegociação da dívida pública a favor da maioria da população.

Para começar, devemos comparar as nossas expectativas futuras sobre uma possível reestruturação da dívida soberana com a experiência histórica. Àqueles que julgam tratar-se de um conceito novo sem ponto de referência histórico, faremos notar que estamos perante uma dessas reformulações, tão frequentes em política, de velhas fórmulas desacreditadas – mudam-se as palavras para melhor enganar as pessoas. No caso vertente, temos que o velho «ajuste estrutural» foi substituído pela «reestruturação da dívida». Trata-se, porém, exactamente do mesmo, com os mesmíssimos resultados que o Terceiro Mundo sofre continuadamente desde a década de 1980.

À partida, reestruturação tem a ver com uma mudança de estruturas, como a própria palavra deveria indicar a um olhar atento. Ora uma mudança de estrutura económica, social e política negociada com entidades externas que se encontram numa posição de força e que têm a sua própria agenda económica, militar e estratégica não poderá jamais ser favorável à parte fraca (o povo português, no caso vertente).

Sucede que todas as negociações políticas e económicas assentam numa base simples: a relação de forças. Quando um país em situação de dificuldade requer aos seus credores a renegociação dos prazos de pagamento, dos juros e das condições do contrato, só pode esperar um desfecho plausível: a substituição dos contratos anteriores de endividamento por outro pior, ainda que no imediato pareça mais favorável. Só o último dos inocentes poderia acreditar que quem negoceia em nome dos credores é Madre Teresa de Calcutá.

Por conseguinte, ainda que admitíssemos a necessidade de reestruturar (e portanto renegociar) alguma coisa, só haveria ganho, em vez de maiores perdas para a população, nas seguintes circunstâncias:

  1. Começando por inverter a relação negocial de forças ou pelo menos reequilibrando-a; por exemplo: ameaçando (convictamente, entenda-se) a declaração unilateral soberana de repúdio de partes importantes da dívida. Esta solução, que para muitas pessoas pode parecer abstrusa ou impraticável, é não só viável e defensável à luz do direito internacional, como já foi utilizada no passado em numerosos casos, com excelentes resultados (Argentina, Indonésia, Equador, etc.).
  2. Não é de excluir à partida a hipótese de renegociação num contexto de relação de forças favorável. Mas isto jamais poderá acontecer enquanto tivermos um governo de orientação liberal ou neoliberal – como têm sido os governos do PS, PSD e CDS. Militar por uma renegociação da dívida sob a batuta de poderes públicos neoliberais é, sempre tem sido, um suicídio político, económico e social.

Encontramo-nos aqui no domínio dos factos históricos; e perante os factos não existe margem para dúvidas ou divergências ideológicas.

Alguns dos malefícios tradicionais da reestruturação

Numa situação de mobilização social eminente em torno da dívida pública, nada melhor para o credor do que uma reestruturação/renegociação para apagar todas as pistas e branquear as aldrabices feitas ao longo do processo de endividamento. A renegociação irá substituir os velhos contratos e acordos por outros novos; os documentos comprometedores tendem a desaparecer. Se já é difícil a uma auditoria cidadã aceder aos documentos relativos aos acordos em vigor, mais difícil será repescar documentos relativos a acordos que já não vigoram, descobrir actas de reuniões onde se discutiram decisões que já não contam, etc. A renegociação e reestruturação é um importante momento de branqueamento dos actos de endividamento do passado, como comprova a experiência da auditoria brasileira, por exemplo.

Por outro lado, os juros anteriores serão transformados em capital. Ao renegociar os valores da dívida pendente, o credor procurará fazer valer os seus créditos somando o capital da dívida aos juros vencidos e vincendos, para calcular o valor total de capital e renda que esperava receber. Resultado: não só se torna difícil, daí por diante, documentar e compreender todos os aspectos da acumulação de capital e juros, como já referi a propósito do branqueamento inerente à reestruturação, como ainda por cima os juros anteriores transformam-se em capital. Isto significa que o devedor irá pagar juros sobre juros. E embora esta prática seja moral e legalmente proibida e permita a denúncia imediata e unilateral do contrato, é evidente que um governo que assinou um tal acordo, ou um conjunto de cidadãos que militou por uma reestruturação deste tipo, não tenciona repudiar a dívida. Nestas condições, o credor até  pode dar-se o luxo de aceitar uma «baixa» dos juros futuros, iludindo completamente a população, que julga que ficou a ganhar com o negócio e não se apercebe de que vai pagar juros sobre juros – ou seja, vai pagar juros mais altos do que na situação anterior. É por isso que os defensores maliciosos da reestruturação afirmam que esta é a única via para reduzir os juros vincendos.

Quando o saque duma população atingiu um nível tal que já nenhum reembolso da dívida será viável a prazo, o credor sabe que tem de renegociar – por um lado, para evitar a sublevação geral; por outro, para encontrar formas sustentáveis de manter o saque dos futuros bens colectivos. Este, aliás, é outro malentendido corrente: o conceito de «sustentabilidade».

Por fim lembremos que não existe nenhum processo de negociação de créditos que não envolva garantias. Até na compra a crédito de uma casa ou de um televisor acontece assim. A reestruturação da dívida pública não é excepção – haverá que negociar novas condições e garantias relativas ao novo contrato. O problema, porém, é que já nas negociações anteriores foram dadas garantias, feitas cedências e fornecidas concessões. As novas vêm somar-se às antigas (por vezes já esquecidas na memória colectiva), apesar de tudo continuar a dizer respeito ao mesmo montante inicialmente negociado. É então que o negociador do outro lado da mesa, que como já se referiu não é certamente Madre Teresa de Calcutá, aproveitará para adquirir novas garantias de privatização, leis mais favoráveis ao patronato, novas formas de transferência dos capitais colectivos para a esfera privada, garantias de negócios, exploração de recursos naturais a preço de saldo, etc.

Em suma, renegociar ou reestruturar numa situação de fraqueza é por regra historicamente comprovada a melhor maneira de cair do fundo do poço para o fundo dos infernos.

O efeito pacificador

Acresce a todas estas manigâncias o efeito do discurso político e da comunicação social dominante. Por regra, este discurso pretende fazer-nos acreditar que se entrou em negociações para salvar a pátria. A população, que possivelmente estaria a ponto de se sublevar em virtude das condições de miséria para que foi empurrada, vê ali uma réstea de esperança e acalma-se durante mais algum tempo. A reestruturação tem um efeito social pacificador.

A esmagadora maioria dos activistas de esquerda envolvidos na questão da dívida soberana é constituída gente bem intencionada e de boa-fé, que certamente sofrerá umas belas noites de insónia no dia em que se aperceber de todos estes factores escondidos por detrás do conceito de reestruturação – aposto o que for preciso em que nenhum deles gostaria de ter sobre os ombros a responsabilidade do imenso sofrimento causado a várias gerações futuras, a incontáveis milhões de pessoas, inerente a quem defende hoje a reestruturação da dívida pública. Quanto mais depressa e com menos atitudes ofensivas os trouxermos para a consciência destas questões, mais insónias lhes pouparemos.

O campo dos reestruturacionistas convictos

No meio da vasta massa de activistas iludidos pelo malentendido da reestruturação, renegociação e sustentabilidade, é bem possível que lá encontremos uns quantos esclarecidos e convictos defensores da reestruturação/renegociação/sustentabilidade. Esta categoria de pessoas, beneficiando da confusão geral, pode até fazer uma coisa aparentemente improvável: misturar-se na massa de militantes de esquerda, participar em projectos de auditoria cidadã, tornar-se figura paladina e tutelar, e depois, calmamente, boicotar por dentro todo o processo de auditoria cidadã e mobilização cívica alargada, reorientando-o para a reestruturação – e eventualmente, como bónus, fazer carreira e salvar alguns amigos co-responsáveis pelo endividamento público. Basta a presença de 1 ou 2 ou 3 destes reestruturacionistas convictos para rebentar com a iniciativa da auditoria cidadã e o seu sentido democrático, produzindo um nado-morto.

A eventual presença destas pessoas levanta um problema prático: não nos é possível concluir se certos textos e decisões provêm de ignorâncias e malentendidos ou de um boicote encapotado mas activo à auditoria cidadã. Refiro-me a frases deste jaez: «Procura-se mobilizar a participação cidadã reorientando-a para a necessidade de uma reestruturação liderada pelo Estado português»; «É necessário preparar a reestruturação da dívida pública liderada pelo Estado português estendendo os prazos de maturidade dos empréstimos, reduzindo as suas taxas de juro ou mesmo reduzindo o capital em dívida para níveis sustentáveis pelo Estado português»; «reestruturar a dívida reduzindo-a para níveis económica e socialmente sustentáveis»; etc. [extraído de documentos de trabalho para a iniciativa da auditoria cidadã em Portugal; sublinhados meus].

Evitemos, claro está, o péssimo vício do juízo de intenção – mas ficamos impossibilitados de compreender porque foram introduzidas nos rascunhos iniciais a maioria das frases que alguns de nós gostariam de ouvir («repúdio das parcelas ilegítimas da dívida», etc.), para mais tarde desaparecerem, sendo necessário recorrer a uma série de expedientes para repor algumas. Este tipo de subtracção passa facilmente despercebido quando os processos de debate e decisão democrática se tornem atabalhoados. 

Em contrapartida, a ligação lógica entre a defesa intransigente das frases acima citadas e a recusa de todas as propostas que visavam democratizar a auditoria cidadã e abri-la organicamente à sociedade civil é óbvia e não requer qualquer juízo de intenção para ser adquirida.

Todas estas manigâncias se tornam possíveis porque, no que respeita à dívida soberana, à auditoria popular e aos processos de endividamento do Estado capitalista, a generalidade dos militantes de esquerda sofre de uma enorme ignorância – como é natural, tratando-se de um tema que foi tabu até há bem pouco tempo e sobre o qual ainda agora estamos todos a começar a aprender.

Também neste aspecto uma aproximação fraterna a todos quantos vivem iludidos na converseta da reestruturação é imprescindível. Só a consciencialização desta massa de activistas permitirá desmascarar e neutralizar a acção dos boicotadores internos da auditoria cidadã, se eles existirem.

 
temas: reestruturação

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