A dívida pública portuguesa face ao direito internacional
Atendendo à massificação de algum vocabulário hoje em voga na imprensa europeia, não deixa de causar estranheza que alguns conceitos como «perdão da dívida», «resgate financeiro», «ajustamento estrutural» sempre estivessem associados aos chamados países do Terceiro Mundo. Foi também neste hemisfério e em nome das mesmas razões que o Fundo Monetário Internacional (FMI), em conjunto com as outras duas instituições que pautam a ordem económica internacional – GATT- OMC (Organização Mundial do Comércio) e BM (Banco Mundial) – impuseram nestes países um certo «condicionalismo» como imperativo do resgate financeiro.
Esse condicionalismo passava invariavelmente por uma terapia de choque, traduzida numa série de medidas inspiradas na mesma cartilha, independentemente das realidades a intervir: diminuição do peso do sector público na economia, espartilhos orçamentais, aumento de impostos, etc. Foi esta a receita que estrangulou a economia dos países visados e perpetuou a sua subjugação económica. É esta a receita que poucas décadas depois reaparece em solo europeu de forma aparentemente inevitável.
Ventilando apenas algumas das subtilezas da ordem económica internacional, uma superstrutura alimentada pela necessária ruína económica de alguns países, assinala-se que o suposto cinismo ideológico do «condicionalismo» das instituições monetárias internacionais configura uma cripto-ideologia associada ao desmantelamento do Estado Social, manifestada num conjunto de características comuns às várias realidades económicas: diminuição e em alguns casos supressão da intervenção do Estado na economia, privatização dos chamados monopólios estaduais, nos domínios da saúde, educação, telecomunicações, infra-estruturas.
É sob a bandeira da privatização e dinamização da economia que a invasão levada a cabo pelas instituições internacionais fala de uma dívida pública, identificada pelos tecnocratas que encabeçam instituições como «excessos do Estado».
Daí a necessidade de uma desconstrução dessa visão negativista do papel do Estado na economia começar pela imperatividade de uma auditoria popular e independente, que ponha a nu as verdadeiras causas, bem como as amplas parcelas dessa dívida que resultam da transferência de encargos privados para a dívida pública e, em geral, do frenesi privatizador que se vem acentuando desde a década de oitenta.
Não seria difícil demonstrar que os prodígios de administração que constituem as chamadas PPP (Parcerias Público Privadas) formam um paraíso para administradores corruptos e outros voluntaristas, sempre salvaguardados nas suas aventuras financeiras pela mão amiga do Estado liberal. Não seria igualmente difícil demonstrar que a gestão danosa na área da saúde provém precisamente de uma determinada perspectiva de gestão que acentua os gastos do sector público. Tudo parece correr bem, enquanto a maré se encontra cheia, mas quando esvazia, o poder político não hesita em lançar um pouco mais da doença para curar a doença.
Por tudo isto permitimo-nos considerar uma boa parte desta dívida, em nome da qual há quem pretenda empreender a terapia de choque social, como odiosa, ilegítima e ilegal.
O termo «odiosa», por si só, detém uma carga subjectiva nada exagerada, tendo em conta os seus contornos e os sacrifícios que o seu pagamento implica. Sem nos determos com mais exemplos de como uma dívida pública pode ser odiosa, lembremos o caso do Haiti, vitorioso na abolição da escravatura em finais do século xix, e por isto mesmo obrigado ao pagamento de uma suposta dívida até meados do século xx, dívida esta originada pelo prejuízo que a libertação do seu povo teria causado aos «homens de negócios» franceses.
A dívida é ilegal, porque sustentada em engrenagens de poder corrupto, baseadas em equilíbrios e jogos económicos que mais não são do que extorsão.
A dívida é ilegítima porque não foi contraída em favor e proveito dos que por ela deverão pagar, uma escolha já bem traçada pelo executivo, que se traduz em impostos regressivos, taxas de IVA incomportáveis, amputação de serviços indispensáveis, diminuição dos cuidados de saúde, supressão de subsídios e redução de salários.
Face a isto, a alternativa a um futuro ruinoso passa pelo repúdio desta dívida, acto para o qual nos encontramos legitimados por uma ampla base legal internacional.
De facto, são muitos os textos de direito internacional que licenciam a nossa posição.
Dispõe o artigo 55º da Carta das Nações Unidas que
«com o fim de criar condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas promoverão: a) A elevação dos níveis de vida, o pleno emprego e condições de progresso e desenvolvimento económico e social; b) A solução dos problemas internacionais económicos, sociais, de saúde e conexos, bem como a cooperação internacional, de carácter cultural e educacional.»
Este artigo é secundado pelo disposto no artigo 56º do mesmo diploma, segundo o qual,
«para a realização dos objectivos enumerados no artigo 55º, todos os membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente.»
Estabelece ainda o artigo 103º que
«no caso de conflito entre as obrigações dos membros das Nações Unidas em virtude da presente Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da presente Carta».
Estamos aqui perante um princípio de hierarquia normativa, condição necessária de efectividade do direito internacional reconhecido como «Jus Cogens», isto é, um conjunto de princípio e direitos transversais a todos os sistemas jurídicos.
Um outro diploma, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), determina no seu artigo 1º que
«todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude deste direito estabelecem livremente a sua condição política e, desse modo, providenciam o seu desenvolvimento económico, social e cultural.»
Da mesma forma, o artigo 1º do Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais dispõe que
«todos os povos têm o direito a dispor deles mesmos. Em virtude deste direito, eles determinam livremente o seu estatuto político e asseguram livremente o seu desenvolvimento económico, social e cultural.»
Estamos assim legitimados para, mediante um acto unilateral, promover um esforço de cidadania fundado no repúdio de uma dívida que, além de injusta, arrastará o país e as gerações futuras para um ciclo indeterminado de pobreza.
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