Desenvolvimento e dívida (versão original)
O termo «desenvolvimento» foi politicamente cunhado pela primeira vez na História durante o discurso de tomada de posse do presidente Truman, no início de 1949:
«O velho imperialismo – a exploração para enriquecimento estrangeiro – não faz parte dos nossos planos. Concebemos um programa de desenvolvimento baseado nos conceitos de justiça e fair-dealing democrático. Todos os países, incluindo o nosso, teriam muito a ganhar com um programa construtivo para melhorar a utilização dos recursos humanos e naturais.» [1] [Harry S. Truman, 20-01-1949]
A partir desse momento, todos os países periféricos que não pertencessem ao centro hegemónico (onde pontuam EUA, Inglaterra, França e Alemanha) ficariam sujeitos a esse labéu horrendo: o subdesenvolvimento. Mas, nada de pânico... lá estavam os países do centro para, «baseados nos conceitos de justiça e democracia», nos conduzirem ao desenvolvimento.
Desenvolvimento – o campeão da unanimidade e do consenso
Nunca, que eu esteja a recordar-me, um termo foi tão imediata e unanimemente aceite por todas as correntes políticas, da direita à extrema esquerda. Em todas as partes do Mundo, a maioria das correntes de esquerda pregou fanaticamente a ideia de desenvolvimento e encarregou-se de o pôr em marcha quando se viu no poder.
Hoje vemos o perigo subreptício deste conceito renascer sob as mais variadas formas, às quais devemos manter-nos atentos – desenvolvimento sustentável, crescimento económico, pós-desenvolvimento, ajustes estruturais, etc.
Afinal que significa «desenvolvimento»?
«É um vector emocional, mais do que um termo cognitivo. Denota melhoria, avanço, progresso; significa algo vagamente positivo. Por isso, é tão difícil opormo-nos a ele: quem quereria contradizer algo positivo? […] Como desenvolvimento pode significar qualquer coisa, desde construir arranha-céus até instalar retretes, desde perfurar a terra para explorar petróleo até perfurar a terra para encontrar água, este é um conceito com um vazio descomunal... É o testemunho vivo do poder das ideias, no sentido de um conceito tão pobre em conteúdo ter dominado o debate político durante meio século.» [Wolfgang Sachs]
Há décadas que os teóricos gastam tempo e ganham dinheiro discutindo entre si o «verdadeiro» significado do termo – mas todas essas discussões não alteram um pingo da realidade: o conceito de desenvolvimento é, pura e simplesmente, um eufemismo moderno de colonialismo. Marcha de par com a famosa necessidade imperiosa de crescimento económico.
O velho colonialismo impunha às populações locais um modelo económico, religioso, moral, familiar, político e territorial. O desenvolvimentismo faz exactamente o mesmo, mas utilizando um termo dificílimo de contrariar, como bem aponta Sachs.
Desenvolver-se é aspirar a um modelo
O desenvolvimento é como um caminho de crisálida: partir dum lugar primordial onde se está enrolado como um feto, para chegar às alturas de um modelo. E qual será esse modelo? Do ponto de vista dos «desenvolvimentistas», esta pergunta é fácil de responder: trata-se de alcançar o modelo dos países militar, política e economicamente dominantes.
Em nome deste modelo, sociedades inteiras foram desmanteladas, culturas inteiras foram destruídas, soluções económicas e ambientais milenarmente testadas foram deitadas para o lixo, povos inteiros foram expropriados das suas terras e chacinados, vastos recursos naturais foram exauridos até ao desastre ecológico e climático ... Em todos os lugares do mundo onde os povos se encontravam harmoniosamente envolvidos entre si e com a natureza, o ex-colonizador tratou de os des-envolver.
Ao fim de 60 anos, a única coisa que não aconteceu, de facto, foi os países «subdesenvolvidos» terem alcançado o proposto modelo de «desenvolvimento»... Curioso, não é?
A «ajuda» dos nossos modelos
Apesar deste fracasso clamoroso, os nossos modelos não desistem de ajudar-nos. Caritativamente continuam a guiar-nos na senda desenvolvimentista. Injectam capitais, tecnologia, conselheiros, e se for preciso até substituem as formas de governação locais e legítimas por equipas de conselheiros «técnicos», como propõe a senhora Merkel.
O ambiente é contaminado, as formas de solidariedade social são extintas da memória colectiva, os Estados decretam falência ou estão na eminência de o fazer ... mas os nossos modelos teimam em ajudar-nos, em reestruturar-nos, em emprestar-nos rios de dinheiro e de tecnologia (a tecnologia deles, vendida por eles).
Os países «desenvolvidos» não estão minimamente interessados em aprender como, ao longo de milénios, certas populações da Lousã conseguiram construir um equilíbrio (económico, ambiental,...) com a natureza e com os seus semelhantes. Pelo contrário, pretendem ensinar a essas populações a necessidade de produzir triliões de garrafas de plástico e com elas entupir os vales e os fundos oceânicos, de destruir a floresta serrana sem qualquer proveito acrescido para quem lá vive, de usar indústrias da saúde que matam mais do que curam, etc.
O nosso modelo não pára de fazer liftings e operações plásticas, para esconder as rugas das suas próprias estatísticas: na Inglaterra, a estatística hospitalar (interna e reservada) demonstra que milhares de entradas nas urgências se devem à intervenção prévia de um agente da indústria da saúde (clássica ou alternativa) no curso duma doença ou até no curso dum perfeito estado de saúde. [Vernon Coleman]
Sobretudo o desenvolvimento veio ensinar-nos a querer ser escravos.
Mantenhamo-nos alerta, recusemos a hóstia redentora
Como já foi referido, a maioria das correntes de esquerda sempre foi particularmente vulnerável ao conceito de desenvolvimento; sobretudo as correntes de esquerda com origem na cultura dominante (ocidental e do Norte). Para estas, devido à génese das suas ideologias, o modelo desenvolvimentista confunde-se com o conceito de progresso, e este, por sua vez, acaba por se enredar nas mais subtis armadilhas do capitalismo e do imperialismo, preterindo o interesse colectivo em favor da pseudociência e tecnologia, fazendo com que os governos de esquerda se tornem frequentemente defensores da destruição cultural, ambiental, económica e soberana das populações locais.
O conceito de desenvolvimento, que finalmente começa a sofrer a crítica que merecia desde o primeiro minuto em que Truman o pronunciou, pode ser substituído por sinónimos igualmente sedutores. Esta substituição do termo «desenvolvimento» por outros equivalentes revela uma obsessão, e também um dos mais estranhos fenómenos da época pós-guerra, aparentemente tão diversificada: o «desenvolvimentismo» é o único modelo reinante há 60 anos. Nunca, até há bem pouco tempo, passaria pela cabeça a ideólogos e políticos pô-lo em causa.
Uma solução de recurso
Construir modelos alternativos não é coisa que se faça da noite para o dia. Vai ser preciso ainda um longo debate e muitas experiências no terreno para construirmos uma alternativa ao modelo totalitário do «desenvolvimentismo». Mas o CADPP propõe como solução para a crise a eliminação dos factores de endividamento sistemático – os quais assentam, em grande parte, na tara desenvolvimentista, para a qual ainda não construímos alternativas. Como resolver este dilema? A regra de segurança que proponho seja seguida ao longo dos futuros debates sobre a dívida é simples: evitemos, recusemos todos os argumentos que refiram ou remetam para o conceito de desenvolvimento, de crescimento económico, de reestruturação económica ou social, de sistemas económicos «sustentáveis», ou similares. Mais tarde teremos ocasião de regressar ao tema e explorá-lo com vagar, procurar modelos alternativos ao desenvolvimentismo. Por agora, não nos deixemos iludir pelos argumentos que sugerem a necessidade urgente e imperiosa de desenvolver e «crescer» como solução para a crise.
O desenvolvimentismo foi precisamente o ardil que há mais de 60 anos nos pôs a bailar cândida e voluntariamente em direcção à escravatura do endividamento público, sob a batuta do capital financeiro. Silenciemos a música dessa orquestra infernal, ao menos nos nossos debates.
Notas:
[1] «The old imperialism – exploitation for foreign profit – has no place in our plans. What we envisage is a program of development based on the concepts of democratic fair-dealing. All countries, including our own, will greatly benefit from a constructive program for the better use of the world's human and natural resources», http://www.trumanlib....
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