Com ou sem reestruturação, a dívida é impagável e a austeridade insuportável
Numerosos economistas têm afirmado desde há mais de um ano que a dívida pública portuguesa, à semelhança de outras, é impagável. Esta conclusão não vem apenas de economistas e académicos, alguns deles ao serviço do FMI – até José Sócrates, o ex-primeiro-ministro português que negociou o Memorando com a Troika em 2011, afirmou seis meses depois que a dívida é impagável: «Para pequenos países como Portugal e Espanha, pagar a dívida é uma ideia de criança. As dívidas dos Estados são por definição eternas. As dívidas gerem-se»[*]. O que o José Sócrates pretenderia talvez dizer é que todos os Estados têm dívida – nesse sentido ela é eterna – e que o problema se coloca quando ela ultrapassa os limites da solvabilidade; no caso português, a dívida contraída serve de justificação às medidas de austeridade e estas, por sua vez, provocam uma acumulação de efeitos nefastos, limitando a capacidade de pagamento.
Uma das formas clássicas de «gestão» da dívida a que José Sócrates se refere é a chamada «reestruturação», em redor da qual se reúne agora um vasto leque de figuras de proa da vida política nacional, congregadas no «Manifesto pela Reestruturação da Dívida»[*], também conhecido por «Manifesto dos 70». Os defensores da reestruturação propõem um conjunto de condições para a renegociação dos planos de pagamento da dívida:
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que «honre» o pagamento integral da dívida;
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que seja gerida no quadro das instituições da UE;
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que alivie os problemas de tesouraria e o serviço da dívida (amortização+juros), eventualmente através de redução da taxa de juros e do alongamento dos prazos de pagamento por mais 30-40 anos.
O Manifesto completa estas condições com as seguintes propostas:
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limitação da dívida (principal+juros) a 60 % do PIB, conforme o disposto no Tratado Orçamental da UE;
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reestruturação de € 143.000 M com taxas de juro à volta dos 2,5 % – resultado: um serviço da dívida inicial de 4,3 % do PIB;
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a restante dívida, € 100.000 M, também seria reestruturada a uma taxa de 2,5 % – resultado: mais 1,5 % do PIB.
No total, o serviço da dívida absorveria por ano 5,8 % do PIB. Sucede que «cerca de 29,3 % da dívida tem como credores o FMI e a UE e as taxas que cobram não se afastam muito dos 2,5 %, pelo que seria necessário convencê-los a aumentar os prazos de amortização»[*]. Quanto aos títulos da dívida com taxas mais elevadas, detidos na sua maioria por instituições financeiras ou fundos de pensões, seria necessário fazer uma coisa absurda: convencer delicadamente os credores a trocarem títulos que rendem juros de cerca de 5,1 % por outros que rendem metade. Além destes dois óbices, a proposta de reestruturação não consegue demonstrar que o serviço da dívida passaria a ser suportável ou que as condições de vida das populações seriam menos gravosas. Tão-pouco coloca duas questões essenciais a qualquer dívida pública: 1) a ilegitimidade de uma parte da dívida ou a necessidade de auditar a dívida para identificar a parte ilegítima; 2) os meios necessários para impor uma renegociação.
Para percebermos melhor as possíveis consequências de uma reestruturação, vamos examinar estas propostas apoiados num estudo pormenorizado de Vítor Lima[*] e nos dados oficiais fornecidos pelo IGCP (Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública)[*]. Munindo-se dos dados e previsões fornecidos pelo próprio Governo, Vítor Lima resume três cenários possíveis da seguinte maneira:
Cenário 1 – continuidade proactiva radical dos planos de pagamento
Mantendo o plano de pagamentos conforme está e segundo as contas do IGCP, o serviço de dívida variará, no período 2014-2021, entre 8,8 e 12,4 % do PIB; o valor em dívida, € 205.252 M no final de 2013, seria cerca de € 105.000 M em 2021.
O crescimento do PIB necessário para sustentar este cenário é delirante: de 2014 a 2021 seria necessário garantir mínimos de crescimento de 8,8-12,4 %. Uma vez que tais níveis de crescimento nunca existiram nem podem existir (nem que rebentassem 200 poços de petróleo na costa portuguesa), e partindo do princípio que a dívida é para pagar por inteiro, a necessidade de renegociar resulta óbvia – se alguém apresenta objecções, como é o caso do primeiro-ministro Passos Coelho, ou o faz por razões de oportunidade política ou como manobra de marketing (ou seja, pressionando no sentido da reestruturação, embora dando a impressão de que está contra). A reestruturação, de facto, vem sendo feita pelo Governo, embora de modo errante e muito limitado, desde 2012 até às operações recentemente noticiadas.
Cenário 2 – continuidade proactiva amortecida (redução para metade dos montantes de amortização, devido a contracção de nova dívida)
Ainda segundo as contas do IGCP para o período 2014-2021, este cenário reduz para metade o montante da amortização da dívida. É comum os Estados fazerem este tipo de redução, que geralmente é obtida contraindo novos empréstimos. Para termos uma ideia do resultado prático de pedir crédito para substituir parcialmente crédito acumulado, veja-se o que aconteceu à dívida no período 2011‑2013 (gráfico 1).

O resultado desta solução é um alívio temporário de tesouraria, à custa de um aumento dos juros; implica também a extensão da dependência política e financeira por mais algumas décadas, reforçando assim o endividamento a longo prazo. Ora, convém não esquecer, o sistema de endividamento está intimamente ligado ao agravamento das condições de exploração, à transferência de rendimentos para fora do país, à redução drástica de salários e à captura dos recursos e bens colectivos; por conseguinte qualquer reforço do sistema de endividamento acaba por acarretar um agravamento das condições de vida das populações. O prolongamento dos prazos de endividamento e as condições geralmente impostas para esse efeito agrava também outros factores pouco visíveis no imediato, entre os quais avultam as agressões ambientais, cuja factura, apesar de não vir acompanhada de um contrato escrito nem ser visível a olho nu, é brutalmente pesada e se prolonga por incontáveis gerações.
Neste cenário, entre 2014 e 2021 teríamos de garantir crescimentos do PIB da ordem dos 6,6-8,5 % – um verdadeiro conto de fadas.
Cenário 3 – continuidade proactiva prolongada (mais 30 anos de servidão a esta dívida)
Continuemos a servir-nos dos dados fornecidos pelo próprio IGCP, tentando agora perceber o que acontece se esticarmos os prazos de pagamento por mais 30 anos. Neste caso teríamos de garantir um crescimento do PIB na ordem dos 5,8-6,6 % – continuamos no reino dos contos de fadas, desta vez por mais 30 anos, de 2014 a 2044.
Alguns argumentos exemplarmente desonestos
Como acabamos de ver, a reestruturação da dívida não a tornaria pagável. Como se isso não bastasse, os defensores da reestruturação, para convencerem a população da bondade das suas propostas, apresentam argumentos de duvidosa honestidade do ponto de vista histórico e político.
Primeiro, porque falam de «pagamento honrado» e silenciam em absoluto o facto mais elementar a ter em conta quando se fala de dívida pública: será essa dívida legítima? Deveremos pagá-la ou repudiá-la, por não servir os interesses e necessidades de quem é chamado a pagá-la? Admitindo os argumentos de José Sócrates em Poitiers – segundo os quais «um país pequeno como Portugal» tem de endividar-se para «desenvolver» as suas infra-estruturas e serviços públicos –, que parte da dívida contraída junto da Troika serviu para «desenvolver» infra-estruturas, serviços públicos e outros interesses colectivos? Ainda que a auditoria da dívida esteja por fazer, está bem à vista que, à excepção dos bancos recapitalizados com fundos públicos, das entidades privadas envolvidas nas PPP (parcerias público-privadas), das IPSS (instituições privadas de solidariedade social) e de mais umas quantas instituições e empresas privadas, ninguém beneficiou da dívida em Portugal, antes pelo contrário.
Segundo, os proponentes da reestruturação chamam à baila os acordos internacionais sobre a dívida alemã pós-guerra. Ora, embora possamos (e devamos) invocar os casos de perdão de dívida em razão do interesse das populações como um precedente do direito internacional e da colaboração entre estados, o exemplo da Alemanha é completamente descabido e as circunstâncias históricas são irrepetíveis. A Alemanha representava para os países do Ocidente, face ao crescente poderio económico e militar do Bloco de Leste, um interesse estratégico imperioso. Em virtude desse interesse, as potências ocidentais aceitaram condições de pagamento que no caso português são factualmente impossíveis: a Alemanha pagou uma parte importante da sua dívida em moeda nacional, quando o marco alemão não possuía valor apreciável no mercado cambial – a única solução para quem recebia os juros e amortizações em marcos alemães era reinvesti-los no sector produtivo dentro da própria Alemanha, gerando assim o famoso «milagre alemão».
Terceiro, em Portugal passa-se exactamente o oposto do que acabamos de descrever para a Alemanha: os montantes do serviço da dívida são pagos em moeda forte dos países dominantes e saem imediatamente do país, indo alimentar os especuladores sediados nas economias dominantes. O mecanismo da dívida não é um investimento interno, como sugere José Sócrates e o «Manifesto dos 70», mas sim um mecanismo de passadeira rolante em perpétuo movimento, através da qual o valor gerado pelos produtores nacionais é desviado para o bolso dos grandes credores.
Quarto, os proponentes da reestruturação passam totalmente ao lado da necessidade de propor a coordenação com outros países em situação semelhante – ou com os movimentos sociais presentes noutros países, em particular na zona europeia e magrebina, dentro ou fora da Zona Euro –, como se fosse possível Portugal desenrascar sozinho uma saída para a crise. Esta falha dos reestruturadores revela uma visão eminentemente económica da dívida, quando, de facto, se trata de um assunto meridianamente político, pois a dívida é um mecanismo de domínio político, económico, social, ideológico.
O problema da renegociação
«Reestruturação» é um termo puramente conceptual, que nos situa no domínio da representação simbólica de relações entre ideias abstractas, e que por isso mesmo podem assumir aspectos nebulosos. A sua concretização depende de uma acção prática, que é a renegociação. Renegociar é pôr em causa os termos em que um negócio foi assinado e encerrado; se esse negócio nos correu mal, gostaríamos de reformular os seus termos. Mas a nossa intenção não existe isolada, esbarra na vontade da contraparte desse negócio. O mais elementar bom senso diz-nos que só perante argumentos muito poderosos (de ordem económica, física, militar, etc.) conseguiremos obrigar a parte oposta a regressar à mesa das negociações. Toda a conversa sobre reestruturação é portanto balofa e enganadora, se não apresentar os trunfos necessários para obrigarem o credor a renegociar. Para avaliar os trunfos de quem pretende renegociar, porém, temos de saber exactamente de quem estamos a falar, isto é, quem é a parte interessada do lado de cá – e este é outro ponto fundamental que não é claro nas propostas de reestruturação.
Se a parte interessada do lado português forem as instituições financeiras, as grandes cadeias privadas de hotelaria, de distribuição, de importação e exportação de bens e serviços, de exploração dos recursos naturais e colectivos, então o Governo, que é actualmente o representante global desses interesses, saberá melhor que ninguém se existem ou não trunfos para impor uma renegociação.
Se se considerar que a parte interessada do lado português é a população em geral, e em particular a população trabalhadora (que paga o grosso da dívida, ao contribuir com 75 % da colecta fiscal e contributiva), então os trunfos dependem da capacidade de mobilização e da combatividade dos movimentos sociais, isto é, da dinâmica dos cidadãos organizados na base da sociedade. A capacidade de mobilização destes movimentos é absolutamente decisiva, quer se trate de reestruturar, de auditar, ou de repudiar a dívida ilegítima. Ora este elemento decisivo – sem o qual nenhuma proposta que implique negociação pode fazer sentido ou ter razão de ser – é totalmente ignorado pelos proponentes da reestruturação, tanto no que diz respeito à sua avaliação, como ao seu incentivo – o que nos leva a suspeitar, cremos nós que legitimamente, que não é nos interesses da população portuguesa em geral que os proponentes da reestruturação estão a pensar.
Considerando o facto, já referido, de que a necessidade de renegociar a dívida pública – por ela ser excessiva e provocar uma cadeia de acontecimentos que sufocam a capacidade de pagamento e o bem-estar das populações – é do conhecimento geral dos técnicos e responsáveis políticos há muito tempo, o papel dos «reestruturadores» fica em grande parte reduzido a criar um biombo mediático que esconde a questão essencial: a necessidade de expor a ilegitimidade duma grande parte – talvez a maior parte – da dívida e de mobilizar as populações em torno do repúdio inequívoco dessa dívida, de forma a criar uma força suficiente para remeter o custo e as responsabilidades do endividamento público para quem o provocou e com ele tem lucrado.
Fontes e referências
Correio da Manhã, «Pagar a Dívida É Ideia de Criança», 7-12-2011 (consultado em 24-03-2014) – conferência proferida por José Sócrates a 3-11-2011, no campus universitário de Poitiers, França. Ou: Jornal de Negócios, «José Sócrates: "Pagar a dívida é ideia de criança"», 7/12/2011 (consultado em 10/01/2022).
Vítor Lima, «Entre Roteiros e Manifestos, Uma Classe Política Pestilenta», 15-03-2014, grazia-tanta.blogspot.pt/2014/03/entre-roteiros-e-manifestos-uma-classe.html (consultado em 24-03-2014).
Vítor Lima, «Porque Não É Pagável a Dívida Pública Portuguesa», 2-03-2014, grazia-tanta.blogspot.pt/2014/03/porque-nao-e-pagavel-divida-publica.html (consultado em 24-03-2014).
«Manifesto pela Reestruturação da Dívida», esquerda.net/artigo/manifesto-pela-reestruturação-da-dívida/31694 (consultado em 20-03-2014).
IGCP, www.igcp.pt/ – é a entidade a quem compete gerir o financiamento e a dívida pública directa do Estado.
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