A dialéctica da crise da dívida soberana e a federalização forçada da Europa
A zona Euro está submergida numa profunda crise. No seu presente estado, inclui 17 países, e muitos acreditam que a saída da Grécia da zona Euro será inevitável tendo em conta os seus altos níveis de endividamento. A resolução ou perpetuação desta crise tem profundos efeitos sobre a situação económica, social e política de Portugal, a Europa e o Mundo.
Muitos comentadores políticos e económicos especulam sobre a potencial saída da Grécia do Euro, ou até sobre a eventual dissolução da Zona Euro. Porém, o discurso dos líderes dos países mais poderosos, assim como as figuras mais influentes da União Europeia e do Banco Central Europeu, revelam um eixo central que toma o formato de uma proposta única: a crise da divida soberana só poderá ser resolvida por uma maior centralização de poder na Europa através de maior integração financeira e económica (nomeadamente através da introdução de Eurobonds) e através da abdicação parcial da soberania e por fim, a federalização da Europa.
Merkel advoga desde 2011 a perda de soberania das nações mais devedoras enquanto, ao mesmo tempo, propõe uma maior união económica.
Mais recentemente, a Comissão Europeia, o Conselho da Europa, o Presidente do BCE e o chefe da comissão dos lideres financeiros da Zona Euro revelaram um plano para uma Europa Federal onde os países abdicam da sua capacidade de ter políticas fiscais independentes e elaborar os seus próprios orçamentos.
Jean-Claude Trichet defendia em 2011 uma governação financeira mais rigorosa na Zona Euro e que o BCE será obrigado a ter um papel mais central, propondo dar mais poder de vigilância ao BCE em relação aos países devedores, com sanções «quase automáticas» para penalizar países incumpridores e prazos mais curtos para os processos de redução do défice. Basicamente, quer reforçar o poder do BCE e reduzir a soberania nacional dos países da Zona Euro.
Mais recentemente, Mario Draghi, primeiro-ministro não-eleito da Itália, antigo presidente do BCE e antigo líder do Banco da Itália, garante que os Eurobonds serão em breve uma realidade, apresentando a maior integração económica que isto significaria como uma inevitabilidade.
Somente Merkel continua a sua oposição à introdução dos Eurobonds... por agora. Porém, não rejeita a federalização da Europa. Pelo contrário, visa somente defender a posição de supremacia da Alemanha relativamente ao mapa da dívida soberana. É por essa razão que em 2011, juntamente com Sarkozy, defendia que somente depois de maior «integração económica» poderiam os Eurobonds ser introduzidos.
Reforçou recentemente esta posição, sendo necessário notar que a rejeição dos Eurobonds é, oficialmente, temporária. A sua introdução futura é apresentada como uma inevitabilidade.
Passos Coelho, subserviente como sempre nos habituou, diz exactamente a mesma coisa, repetindo que uma maior integração económica deve preceder a introdução de Eurobonds.
Os líderes Europeus estão perfeitamente coordenados nos temas centrais, sendo as discórdias residuais e pontuais maioritariamente insignificantes. Os seus discursos são exactamente iguais, demonstrando que fazem pouco mais do que ler o guião que lhes é imposto por terceiros. O consenso é óbvio, e o consenso orbita à volta do reforço da posição do BCE.
O problema neste cenário é simples: aqueles que estão na melhor posição para resolver a crise da divida são exactamente aqueles indivíduos e instituições que a criaram. Temos que ter em conta igualmente que a crise da divida soberana era estruturalmente inevitável tendo em conta a dinâmica de produção do Euro que leva à inevitável emergência de uma divida impagável, dado que todo dinheiro emitido ou tem uma taxa de juro afixada, ou é ele próprio criado através de empréstimos, ou seja, é capital resultante da emissão de uma dívida. A dívida não só é inevitável para a emissão do Euro como as notas de Euro são elas próprias um certificado de uma dívida.
Estes factores só nos podem levar a uma conclusão: os culpados pela crise estão agora claramente a exigir que as mesmas instituições que criaram a crise da divida soberana (crise essa que entretanto lançou grande parte da população para um estado de precariedade, pobreza e exclusão e que, cada vez mais, leva os Europeus ao suicídio) sejam aquelas que resolvam a mesma crise que criaram através do reforço do seu próprio poder, através da introdução de mecanismos que lhes permitam governar os países devedores. Mas hoje, todos os países são devedores. A divida é estrutural, não é residual. A crise da divida soberana e as estratégias e medidas que nos propõem as elites da política e finança (que aliás, cada vez mais são os mesmos indivíduos, visto a tendência cada vez mais acentuada de ter banqueiros como governantes) traem a existência de um plano mais abrangente, uma série de ambições que transcendem o campo da finança. É um plano político de centralização de poder, um projecto antidemocrático que encontra agora, como seria de prever, uma população pronta a aceitar qualquer solução para os problemas que as próprias instituições e indivíduos que a dizem querer resolver criaram.
Segue portanto todo este processo a lógica de uma dialéctica cuja síntese foi previamente arquitectada, lógica dentro da qual os agentes políticos criam um problema, esperam pela reacção ao problema e depois propõem uma solução (seguindo a formula «tese + antítese = síntese») – a qual de facto avança a estratégia de quem criou o problema no primeiro lugar. O problema é a divida soberana, a reacção inevitável vem na forma das aclamações da população a uma solução para as dificuldades económicas, e a solução é a perda da soberania e a centralização de poder político, centralização esta complementada pela subida da desigualdade económica e da exclusão social.
A crise da dívida soberana proporcionou o pretexto necessário para declarar o Estado de Excepção. E este estado permite ao Estado fazer excepções no que toca os direitos cívicos, os direitos dos trabalhadores, os salários e, sobretudo, o direito à democracia e à representação política. As estruturas de representação política na Grécia e em Portugal já são virtualmente inconsequentes face às imposições da trindade composta pelo BCE, Comissão Europeia e FMI (os três membros da infame «Troika»). Os líderes da União Europeia e do BCE querem somente oficializar este processo de perda de democracia através de ajustes estruturais. Tudo isto enquanto a população, confusa e empobrecida, frustrada e perdida, cada vez tem menor capacidade de resistir a este processo. Até porque a maioria não quer, ou é incapaz de aceitar a verdade óbvia, a qual os líderes da União Europeia nem sequer se dão ao trabalho de tentar esconder. Eles querem o monopólio sobre o poder e sobre as posses materiais, sem parlamentos eficazes, sem líderes eleitos que possam resistir às imposições de terceiros, sem que os países possam sequer produzir os seus próprios orçamentos.
E enquanto a população, estupidificada e resignada, ainda discute se a Grécia sairá ou não do Euro, se o Euro sequer irá continuar, o BCE já sabe exactamente o que quer e qual o plano de acção a tomar. Diz abertamente que vai reestruturar a Zona Euro para resolver a crise (que o próprio BCE criou).
Ainda para mais, já desde (pelo menos) 2011 tem uma proposta concreta de como funcionará a Zona Euro depois da reestruturação no documento ('The Monetary Policy of the ECB', 2011, Banco Central Europeu), e não prevê, como o fazem vários comentadores, nem a redução de membros da Zona Euro, nem o fim do Euro, mas sim a expansão da Zona Euro, primeiro para 18 países e depois para 27, número que por coincidência é exactamente igual ao número de países membros da União Europeia.
Este esquema será composto de seis membros executivos, sendo o resto dos membros divididos em três grupos, um com cinco membros (primeiro grupo), outro com oito membros (segundo grupo), e um terceiro grupo com três membros).
E quanto à federalização da Europa, também ela é discutida abertamente.
A solução para a crise soberana, fraudulenta e fictícia, já está portanto decretada. A União Europeia só poderá resolver a crise se os seus Estados membros abdicarem da sua soberania, submetendo-se à supremacia política da instituição mais poderosa da Europa, o Banco Central Europeu, que segundo o seu estatuto de estrutura «independente» não está subordinado a nenhuma instituição democraticamente eleita, tendo somente que apresentar um relatório anual às demais instituições da União Europeia. A maioria dos comentadores não vai mais longe do que criticar o facto de os Estados da Zona Euro terem que passar por bancos intermediários para se financiar, não podendo ir directamente ao BCE. Esquece-se a maioria, ao criticar os bancos intermediários, de mencionar qual a instituição que realmente criou esta crise, e mais grave ainda, não são sequer capazes de identificar qual a instituição que mais vai beneficiar da implementação das presentes propostas de resolução da «crise». Se esta incapacidade continuar, a população da União Europeia será, muito em breve, completamente governada por banqueiros e tecnocratas do Banco Central Europeu. Tal não seria de admirar, porque é precisamente o que muitos desejariam ver, tanto à esquerda como à direita: o BCE a cavalgar para o resgate da Zona Euro.
E devemos ter sempre muito cuidado com aquilo que desejamos.
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