La deuda como arma de guerra en Palestina
¿Aceptará Egipto acoger a la población palestina expulsada de Gaza a cambio de la cancelación de su deuda externa?
«Lembrem-se do que Amaleque nos fez, diz a nossa Santa Bíblia.» Estas palavras foram pronunciadas pelo primeiro-ministro israelita Benjamin Natanyahu, conotando a invasão terrestre de Gaza com uma missão sagrada. Os defensores de direitos humanos qualificaram estas declarações como uma chamada explícita ao genocídio, dado que a nação Amaleque era um antigo arqui-inimigo dos israelitas e o seu extermínio teria sido ordenado por Deus.
Na passada semana [anterior a 5/11/2023] veio a lume um documento proveniente do ministro dos serviços secretos israelita, Gila Gamaliel, onde consta a proposta de deslocar os residentes de Gaza para o Sinai (Egipto), como solução «que produzirá resultados estratégicos positivos a longo prazo». Como poderia o Egipto aceitar essa proposta, quando a maioria da sua população se mostra abertamente pró-palestina? A resposta reside em um elemento macroeconómico: a dívida.
Depois da sua revelação por parte do jornal israelita Calcalist e por WikiLeaks, a notícia chega-nos agora através da imprensa crítica israelita e egípcia: Telavive parece estar em conversações com o presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, para que o Egipto receba os habitantes de Gaza e os estabeleça no seu território dentro do Sinai, a troco de cancelar todas as suas dívidas com o Banco Mundial. Isto significa que o governo israelita assumiria a dívida do Egipto para com os credores multilaterais (como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, etc.), ou poderia convencer os países ocidentais aliados – com o apoio dos EUA – a anularem a dívida egípcia às instituições internacionais. Entretanto, estão a ser negociadas possíveis ajudas financeiras para acções concretas, como sejam o financiamento de uma cidade de tendas – que mais tarde seria convertida em edifícios residenciais –, proposto ao governo egípcio pelo secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, na sua recente ronda pela região.
A autorização de entrada da população palestiniana no Egipto com a desculpa da preocupação humanitária tolda o objectivo real desta «solução para a crise»: a limpeza étnica e colonizadora de terras, a troco de favores financeiros, neste caso o cancelamento da dívida.
O Egipto, um país asfixiado pela dívida
De facto, do ponto de vista macroeconómico, a proposta pode parecer uma prenda para o governo de Abdel Fattah al-Sisi. O Egipto, com 105 milhões de habitantes, enfrenta actualmente uma crise da dívida histórica – ainda que pouco badalada no Ocidente. O Bloomberg Economics situa o Egipto no segundo lugar da lista de países mais vulneráveis ao incumprimento dos seus reembolsos da dívida, a seguir à Ucrânia. Duas das principais fontes de receita do Egipto, o turismo e as taxas de trânsito no Canal de Suez, aumentaram, mas não o suficiente para compensar a dívida externa, que em junho de 2023 alcançou um total de 164,7 mil milhões de dólares. Parte desta dívida deve-se a prestamistas próximos, como os Emirados Árabes Unidos, seus aliados no Golfo. Outra parte é devida a prestamistas menos amigáveis, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), a quem tem de pagar 2.950 milhões de dólares em finais de 2023, e aos detentores de títulos estrangeiros, a quem deve 1.580 milhões de dólares.
O Egipto, um dos maiores importadores de trigo do mundo e dependente da importação de outros alimentos básicos e combustíveis, enfrenta os impactos da guerra na Ucrânia, uma inflação crescente, aumentos de preços sem precedentes e acesso limitado a financiamento acessível. Por consequência, o país encontra-se totalmente dependente dos empréstimos internacionais do FMI e dos estados ricos do Golfo. Esta dependência limita a margem de manobra do Egipto em matéria de política externa, o que torna difícil e pouco provável que actue de forma independente dos EUA, que, juntamente com os países europeus, tomam as decisões nas instituições multilaterais como o FMI e o Banco Mundial.
Por outro lado, as eleições presidenciais no Egipto estão marcadas para dezembro de 2023. Se o governo de Abdel Fattah al-Sisi ceder agora à proposta do governo de ultradireita israelita sobre a deslocação forçada da população palestina, a troco do cancelamento da dívida, poderá piorar ainda mais a sua popularidade: a «solução» choca com a opinião pública egípcia, maioritariamente pró-palestina, que no passado 18 de outubro se manifestou em solidariedade com o povo palestiniano, gritando «Não à deslocação, nem ao realojamento, a terra é a terra da Palestina». A oposição e a população egípcia estão bastante conscientes de que o Egipto é um aliado dos EUA, e das razões que levam o seu governo autoritário e as suas medidas repressivas a serem ditadas pelos EUA: devem-se em grande parte à existência de Israel. Ou seja, os EUA contam que o governo egípcio actue como dique de contenção frente à esmagadora população anti-sionista. Independentemente da situação pré-eleitoral do Egipto, se a situação económica do país não melhorar e se Israel continuar a bombardear o povo palestiniano em Gaza com a mesma brutalidade de que deu provas nas últimas semanas – matando milhares de menores e civis –, é possível que o Egipto não tenha outra opção senão aceitar de facto a deslocação dos refugiados para os seus territórios, a troco de ajudas financeiras e de um pacote parcial de alívio da dívida.
A dividocracia, uma (não tão) nova ferramenta colonial
As lógicas por detrás da proposta do Governo israelita – oferecer a anulação da dívida a troco de favores políticos – não são novidade. São apenas mais um exemplo de uma prática muito utilizada pelos países enriquecidos do Norte Global num mundo marcado por estruturas de poder financeiro neocoloniais. Isto significa que os países empobrecidos e destinatários dos empréstimos do Norte Global e das instituições multilaterais (FMI, Banco Mundial, etc.) continuam numa situação em grande parte idêntica à das ex-colónias. Neste sentido, a dívida não é uma questão meramente financeira, pode converter-se numa ferramenta de opressão e chantagem: o credor exerce poder sobre o devedor, influenciando as suas decisões políticas.
Voltando ao Egipto, não seria a primeira vez que os EUA utilizam a estratégia do cancelamento da dívida como ferramenta para obrigar o Egipto a cumprir as exigências políticas dos EUA. Em 1991, os EUA e os seus aliados perdoaram metade da dívida externa egípcia (11.100 milhões de dólares) a troco da participação do Egipto na segunda Guerra do Golfo, na coligação anti-Iraque.
Muitos movimentos sociais – originados no movimento Jubileu dos anos 2000 – continuam a denunciar este sistema de «dividocracia» e fazem notar que a dívida é uma ferramenta de submissão e expansão de políticas neoliberais altamente lesivas para o meio ambiente e os direitos sociais. Neste sentido, quem vive nos países ricos ocidentais não deve manter-se em silêncio perante propostas financeiras que apoiam a limpeza étnica e a colonização das terras palestinas por parte do governo ultradireitista israelita.
Por sorte, nem toda a comunidade internacional permanece calada perante o massacre na Palestina. Países como a Bolívia, Colômbia, Brasil, Argentina e México mostraram-se críticos e contundentes perante os ataques israelitas. Na Bolívia, Luis Arce cortou relações com o governo de Netanyahu, a Colômbia e o Chile chamaram para consulta os seus embaixadores no país. A estas declarações somaram-se as condenações pronunciadas na passada quarta-feira pela Argentina e pelo México, após o ataque ao campo de refugiados de Yabala, em Gaza. O Ocidente, entretanto, olha para o lado e joga as suas cartas macroeconómicas para terraplanar o caminho da ocupação.
visitas (todas las lenguas): 25