Bancos – os donos do dinheiro e o ciclo do crédito
A esmagadora maioria do dinheiro actualmente existente está nos bancos ou passa pelos bancos.
O dinheiro pode existir como moeda ou não passar de números lançados em livros virtuais de balanço digital. Na verdade, a maior parte do dinheiro existente é imaginário – a lei autoriza os bancos a criar esse dinheiro sem correspondência com a moeda ou qualquer outro meio de garantia.
A renda
Quando um cliente do banco pede um empréstimo, o banco usa o dinheiro depositado por outros clientes para conceder esse empréstimo. Sobre o empréstimo cobra juros.
Este processo de sacar dinheiro do devedor tem diversos nomes em diferentes línguas; alguns desses nomes são bastante mais explícitos do que a expressão portuguesa juros: assim acontece com as expressões rent e interest. De facto o banqueiro apenas empresta dinheiro na medida do seu interesse em sacar uma renda sobre todo o dinheiro existente (o dele e o dos outros). Se este interesse fosse proibido por lei, o banqueiro fecharia a loja e iria dedicar-se a uma actividade produtiva.
Recapitulemos: dinheiro emprestado provém inicialmente de alguém (os depositantes) e é emprestado a um devedor. Seria lógico pensar que o depositante donde provém o dinheiro inicial recebesse o juro do empréstimo. Assim aconteceria, naturalmente, se o banco não existisse como entidade intermediária e o empréstimo fosse feito directamente entre quem tem um excedente e quem precisa de dinheiro. No entanto, ao instituir-se como intermediário do negócio, é o banco quem arrecada uma renda (o juro).
Mas, perguntarão vocês, o banco não paga também juros ao depositante? Na verdade esses juros são calculados de forma a serem muitíssimo inferiores ao juro de empréstimo e a permitirem uma grande margem de lucro para o banco; na maioria dos casos os juros de depósito reduzem-se a uma percentagem centesimal insignificante; no caso dos salários normais, mensalmente depositados no banco, ou das pequenas poupanças, a renda do depositante acaba por ser negativa, porque os bancos cada vez cobram mais taxas e serviços ao depositante. O depositante médio tem de pagar para pôr o seu dinheiro no banco e usar os respectivos serviços de pagamento virtual.
De modo que na prática a situação é esta:
- o banco cobra uma renda por guardar o dinheiro da esmagadora maioria da população e das empresas (todos eles legalmente obrigados, de diversas formas, a usar os serviços bancários);
- o banco usa o dinheiro alheio para conceder crédito e
- através do crédito o banco cria mais dinheiro e apropria-se duma parte dele.
Perante este ciclo do crédito, é fácil de compreender que os bancos se considerem donos de todo o dinheiro existente.
Os ciclos de maturidade – o time-out
Como já vimos, o banco central toma nota da quantidade de dinheiro depositada nos bancos privados e permite-lhes que emprestem até cerca de 9 vezes esse dinheiro. Existe portanto uma enorme quantidade de dinheiro a ser constantemente fabricada, a render juros e, pelo menos virtualmente, em circulação no mercado, mesmo que não tenha correspondência pecuniária (=não possa ser traduzido em moeda, sendo apenas virtual).
Mas cada empréstimo tem um prazo de maturidade (time-out) – ou seja, um tempo ao fim do qual o capital inicial do empréstimo mais os respectivos juros são integralmente reembolsados ao banco. Passado esse prazo, o dinheiro criado pelo banco desaparece de circulação.
Ora dinheiro a desaparecer de circulação é mau negócio para os bancos. Por isso eles têm de encontrar renovadas formas de emprestarem continuamente, para que o dinheiro virtualmente criado não desapareça e eles, os bancos, não vão à falência.
Além disso, a quantidade de dinheiro (real ou virtual) em circulação determina a quantidade total de meios de pagamento que todos nós possuímos e portanto a quantidade de transacções que podem ser feitas. Como veremos a propósito da inflação, essa quantidade total de dinheiro determina também o preço dos serviços e dos produtos (incluindo o «preço» do próprio dinheiro, ou seja os juros).
No entanto, estranhamente, a quantia total de transacções de um país não fornece qualquer indicação acerca do valor acrescentado nem da quantidade de bens e serviços produzidos no país.
As transacções
As transacções, como a palavra indica, são trocas de bens e serviços entre entidades diferentes.
Todas as transacções dependem do interesse de cada uma das partes. Se eu tiver um carro mas achar mais interessante ter dinheiro, e se tu tiveres dinheiro mas achares mais interessante ter um carro, estão criadas as condições para efectuarmos uma transacção – toma lá o carro, passa para cá o dinheiro.
Isto é possível porque:
- alguém produziu o carro e o pôs no mercado;
- alguém fabricou o dinheiro e o pôs no mercado.
Se todo o dinheiro desaparecer do mercado, já não será possível efectuar este tipo de transacções, terá de ser criado outro processo de fazer circular os bens e serviços. Se o fabrico de carros ou qualquer outro tipo de bens e serviços cessar, cessa de vez a circulação de produtos e a transacção; o dinheiro passa a valer zero, porque já não representa nada, nem sequer se representa a si mesmo, uma vez que deixa de ter interesse.
Este simples facto permite compreender a força infinita dos trabalhadores e dos consumidores. Se, de repente, todos os trabalhadores do mundo deixassem de produzir bens e serviços, o dinheiro, e portanto os bancos, deixariam de fazer qualquer sentido. Da mesma forma, se todos os consumidores do mundo deixarem de comprar uma determinada máquina por a considerarem demasiado poluente e prejudicial ao ambiente colectivo, nenhum empresário teria interesse em continuar a fabricar essa máquina; procuraria alternativas menos poluentes para vender, continuar a fazer negócio e ter lucros.
O que aconteceria se todos os empréstimos fossem reembolsados
É bom não esquecermos a noção de valor avançada na primeira parte deste manual: o valor de troca real dos bens e serviços mede-se pela quantidade de trabalho neles incorporada → uma parte desse valor é apropriada pelo empresário, a outra regressa ao trabalhador sob a forma de salário → o trabalhador e o empresário são obrigados a depositar o seu dinheiro no banco → o banco usa esse dinheiro para emprestar e fabricar mais dinheiro → o devedor usa o dinheiro para fazer transacções (consumir, pagar a renda de casa, etc.) → todo o dinheiro dessas transacções passa pelo banco, permitindo-lhe criar mais dinheiro e mais crédito → os créditos são reembolsados, cada qual segundo o seu prazo de maturidade, anulando assim a criação fictícia desses montantes.
Então e se todos os empréstimos fossem reembolsados? – não restaria praticamente nenhum dinheiro em circulação (com excepção do dinheiro vivo (moeda, etc.), que constitui uma ínfima parte do dinheiro existente nos saldos contabilísticos).
Este «perigo» do reembolso total, por um lado, cria a ilusão de que sem crédito a sociedade não poderia funcionar (porque actualmente se confunde sociedade com mercado capitalista); por outro lado, reforça a ideia de que os bancos são os donos do dinheiro.
No caso das dívidas soberanas (e também no caso do crédito ao consumo) é fácil perceber que todo o discurso de «economês» sobre a «sustentabilidade» da dívida, sobre o perigo fatal de sobrevir uma incapacidade de pagamento e reembolso, etc., tudo isso não passa de um enorme logro. De facto, a única coisa que interessa às instituições financeiras é que o sistema de crédito continue a funcionar, independentemente de haver ou não capacidade de reembolso.
Este facto explica um fenómeno aparentemente incongruente que acontece no preciso momento em que este texto está a ser escrito (Dezembro 2011): o FMI emprestou uma tranche de 70.000 milhões de euros a Portugal, dos quais 34.400 servirão para … pagar os juros da dívida! Da metade restante, uma boa parte servirá para … recapitalizar a banca! – ou seja, para permitir que a banca crie mais crédito, a partir do qual irá cobrar os tais juros …
Qualquer leigo na matéria terá a intuição imediata de que o reembolso integral da dívida jamais será possível. No entanto os bancos não estão verdadeiramente preocupados com o facto. A única coisa que pode fazer os bancos entrarem em pânico é um país declarar a cessação do jogo do crédito.
Diga-se de passagem que são muito raros os casos em que um país não tem dívida soberana externa. Os responsáveis políticos desses países recebem telefonemas regulares do FMI e do Banco Mundial, tentando convencê-los das «vantagens» de gerarem dívida externa, entrarem no ciclo do crédito global e «deixarem de estar isolados»1. Por estranho que possa parecer … nesses países a vida corre normalmente; a sociedade, a população e os negócios não se extinguem por artes mágicas; pelo contrário, é aí que tendem a registar-se elevadas taxas de sustentabilidade, tanto económica como de conservação do ambiente.
Notas
[1] Por razões de lealdade, não serão aqui divulgadas as nossas fontes. Por outro lado, é possível que passados alguns anos sobre a publicação destas linhas, já não exista nenhum país que não tenha cedido à pressão do FMI e do Banco Mundial para se endividar, porque essa pressão é exercida de formas brutais nos bastidores da diplomacia política e económica.
Índice deste caderno
ABC de Economiavisitas (todas as línguas): 3.490