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Introdução

Comecemos por definir o âmbito e a razão de ser deste manual.

o que nos propomos investigar:

a dívida soberana portuguesa

Porquê? – porque é em nome da dívida que o Estado social e os bens sociais são desbaratados. Se procuramos investigar e quantificar a dívida soberana, é porque ela não é transparente e as suas consequências nos suscitam as maiores dúvidas – como compreender que os contratos de dívida, geralmente justificados numa lógica de «desenvolvimento», andem associados a um agravamento da exploração e das condições de vida das populações, a uma perda de soberania, a um decréscimo do investimento produtivo? – alguma coisa correu mal e necessita ser investigada.

A dívida soberana tem a ver com muita coisa além-fronteiras; portanto, a dada altura teremos de analisar uma complexa teia de interesses internacionais.

Como se constrói um processo de investigação

A nossa investigação deve partir de um conjunto de perguntas que definem o cerne da questão:

quanto devemos?

a quem devemos?

porque devemos?

A necessidade de rigor

A primeira pergunta – quanto devemos? – é bastante técnica; terá de ser investigada com a ajuda de especialistas de gestão, finanças, contabilidade.

A segunda pergunta – a quem devemos? – pode encerrar algumas armadilhas e até credores habilidosamente escondidos, mas resultará mais ou menos clara à medida que formos indagando a primeira questão.

A terceira pergunta – porque devemos? – traz-nos novas armadilhas, até porque, logo à partida, pode estar mal formulada e obriga-nos a olhar mais atentamente para a metodologia das nossas perguntas.

Como (ou de que modo, ou em que medida, ou quanto) é o tipo de pergunta que fazemos quando temos dúvidas de ordem lógica, científica ou técnica – exemplo: como nasceu o universo? como se calcula a força da gravidade? como se formou o Movimento dos Capitães de Abril? Portanto, o que a nossa terceira pergunta pretende significar, o que devemos perguntar em bom rigor, é isto:

como funciona o processo de endividamento?

como se formou a dívida soberana portuguesa?

Por outras palavras, além de querermos saber quanto devemos e a quem devemos, pretendemos saber como chegámos a essa situação e quem paga a dívida. Só depois de respondermos a esta pergunta poderemos saber como nos libertar da dívida e como evitar que a situação se repita.

Esta pergunta sugere também que a auditoria cidadã não é um problema essencialmente técnico, mas sim político.

Uma auditoria cidadã é um instrumento político de acção
que põe em cena a participação cívica,
questiona a transparência administrativa
e responsabiliza os poderes públicos
perante os seus eleitores

 

Auditar a dívida pública implica propor a suspensão do serviço da dívida

Num Estado moderno, democrático, não esclavagista, só pode existir uma razão legítima para um Estado se endividar, atirando para cima dos cidadãos o pesado encargo de reembolsar a dívida: o bem-estar comum imediato; a introdução de benefícios para a maioria dos contribuintes; a melhoria dos meios de pagamento – e não o benefício de uma minoria já de si privilegiada.

Por conseguinte, investigar o que está a correr mal num processo que joga com a vida de milhões de pessoas e está a prejudicá-las implica suspender esse processo até à conclusão da investigação. 

propor a auditoria cidadã

implica propor a

suspensão do serviço da dívida

[nota: o serviço da dívida inclui o reembolso da dívida mais os respectivos juros]

As condições necessárias à auditoria cidadã

Os poderes públicos portugueses aceitaram negociar com o FMI e com a Troika acordos e condições de endividamento que agravaram as condições de vida da maioria dos cidadãos. Obviamente, a sociedade civil não pode exigir a esses poderes públicos que investiguem a dívida que eles próprios criaram – isso seria o mesmo que pedir a um juiz para julgar em causa própria. Propor, por exemplo, um referendo popular para obrigar os poderes públicos a realizarem uma auditoria seria um passo politicamente inútil – os poderes públicos tenderiam a «legitimar» aquilo que já executaram, sob pena de se incriminarem a si mesmos.

Por conseguinte terá de ser a sociedade civil a tomar esse encargo. Esta tarefa, obviamente, irá perturbar os interesses de quem negociou e assinou os acordos de endividamento – podemos contar com a firme oposição e boicote do poder público. É natural que, sem uma mobilização forte dos movimentos cívicos, não seja possível levar a cabo qualquer investigação!

Existirão alternativas credíveis à investigação da dívida?

Uma breve nota acerca das propostas de alguns sectores políticos favoráveis à reestruturação ou renegociação da dívida: os exemplos históricos e os métodos estabelecidos pelo FMI e pelo Banco Mundial (e adoptados na íntegra pela Troika) demonstram que uma renegociação conduz sempre ao agravamento das ilegitimidades anteriormente praticadas e a uma espiral de endividamento.

Todas as renegociações efectuadas numa situação de «aperto» são feitas sob ameaça e chantagem – facto que em si mesmo justifica a anulação dos acordos [ver capítulo sobre os instrumentos jurídicos]. Além disso, a renegociação traria à população uma esperança ilusória de alívio, constituindo portanto um fortíssimo factor de desmobilização.

O interesse objectivo das populações versus futurologia

Uma das ilusões a que o discurso economicista nos habituou nos últimos 50 anos foi a fé pseudocientífica, quase religiosa, de que é possível prever o futuro.

Algumas das maiores barbaridades sofridas pela Humanidade advêm precisamente da convicção de que é possível prever o futuro (social, político, económico, etc.). Em nome de um futuro «melhor» hipoteticamente previsto, podem ser impostos os maiores sacrifícios.

A negociação dos acordos de endividamento aposta frequentemente neste tipo de futurologia. Por regra, assenta numa previsão do futuro (em particular do futuro económico) que justifica um agravamento da repartição desigual dos rendimentos colectivos, com prejuízo para as camadas mais frágeis da sociedade.

No processo de auditoria cidadã e no cálculo dos ganhos e perdas sociais relativos ao processo de endividamento,
 

nenhum argumento de sacrifício imediato em nome de um futuro imaginado deve ser admitido

 

Os índices de bem-estar efectivo, passado e presente, das populações são o único critério legítimo,  mensurável, objectivamente comparável.

 

A auditoria como plataforma mínima de acção comum

A auditoria cidadã é outro nome para uma investigação da dívida levada a cabo pelos cidadãos. Esta investigação assenta no direito internacionalmente consagrado de participação dos cidadãos na vida política, económica e cultural do seu país; força os poderes públicos à transparência e à responsabilização perante os eleitores.

A proposta da auditoria cidadã não presume conclusões finais; não antecipa nem se baseia em programas de acção política; é por isso um processo capaz de unir na acção o máximo número de pessoas, redes, organizações e movimentos sociais, sem lhes condicionar o carácter e as propostas individuais.

A investigação sobre a natureza da dívida soberana é justa e irrecusável – a não ser para quem tire proveito pessoal do endividamento colectivo.

A investigação da dívida deve contar com a participação activa do maior número possível de movimentos cívicos, de organizações profissionais e sindicais, de especialistas das várias matérias em causa, etc. A investigação da dívida, para chegar a bom porto, deve funcionar como plataforma mínima de acção.

A indignação popular e os movimentos cívicos já existem; mas só ganharão peso na cena política actual quando encontrarem uma plataforma mínima de acção comum.

A auditoria cidadã deve funcionar como uma plataforma mínima de acção comum.

A investigação da dívida não só depende dos movimentos sociais, mas também lhes dá um sentido comum, tornando-os mais fortes.

 

 
 

Índice deste caderno

Manual de auditoria cidadã

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