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A paz está à vista, mas o governo de Israel não quer aceitá-la

Rui Viana Pereira, 12/05/2024

Embora não sendo a guerra o objecto deste site, cremos que o bloqueio de informação imposto pelos media mainstream em Portugal justifica esta nossa incursão rara nas notícias sobre a guerra.

Não nos debruçaremos sobre os antecedentes históricos que levaram à calamidade humanitária em curso na Faixa de Gaza. Sobre esse assunto existe abundante literatura que o leitor pode consultar com facilidade. Vamos concentrar-nos apenas em dois factos recentes e pouco divulgados no nosso burgo:

  1. O facto de, a 6 de maio, em negociações mediadas pelo Egipto e o Qatar, o Hamas se declarar disposto a aceitar uma trégua permanente, com troca de prisioneiros e reféns, o regresso dos palestinianos às suas casas (ou o que resta delas…), a reconstrução das cidades e infraestruturas arrasadas por Israel; e o facto de o governo de Israel recusar tudo isto e pretender manter a guerra permanente.

  2. O facto de o movimento estudantil mundial estar a tomar uma posição enérgica sobre o genocídio em curso na Faixa de Gaza.

As três fases do acordo proposto pelo Hamas

O Hamas aceitou formalmente um acordo de cessar-fogo, mediado pelo Egipto e pelo Qatar, para acabar com a guerra em Gaza. No entanto, Israel insiste que as suas principais exigências não ficam satisfeitas nesta proposta.

As condições aceites pelo Hamas desenrolar-se-iam em três fases de seis a sete semanas cada uma:

Fase 1:

A primeira fase duraria 42 dias. Durante esse período far-se-ia uma troca de prisioneiros escalonada ao longo de 7 semanas: o Hamas libertaria 33 reféns, incluindo as restantes mulheres israelitas – tanto as civis como as militares –, jovens abaixo dos 19 anos que não sejam soldados, adultos acima dos 50 e pessoas doentes. Até à sexta semana, todos os reféns civis seriam libertados. Se não houvesse cativos suficientes nesta categoria, seriam entregues os restos mortais dos detidos falecidos. Em contrapartida, por cada israelita civil entregue seriam libertados 30 prisioneiros palestinianos detidos em Israel, e por cada mulher soldado israelita, 50 palestinianos.

Nesta primeira fase as tropas israelitas deveriam retirar de forma faseada, permitindo o regresso dos palestinianos deslocados às zonas libertas.

Israel não poderia usar aviões militares ou de reconhecimento durante 10 horas por dia ou 12 horas nos dias de libertação de reféns e prisioneiros.

A partir do primeiro dia, Israel deveria permitir a entrada em Gaza de ajuda humanitária em «quantidades intensivas e suficientes» – 600 camiões/dia, incluindo combustíveis, alojamento temporário e reconstrução das infraestruturas.

Entretanto haveria uma suspensão das hostilidades militares, pelo menos a partir do 16º dia, e conversações para uma «calma sustentada» (expressão um pouco tonta mas que permite evitar a expressão «cessar-fogo permanente», que provoca urticária nos negociadores israelitas).

Fase 2:

Os contendores teriam de negociar várias coisas nesta segunda fase, que também duraria 42 dias. Segundo a proposta actual, o Hamas libertaria todos os homens restantes, tanto civis como soldados. Em contrapartida, Israel libertaria prisioneiros palestinianos, em quantidade a negociar. As libertações decorreriam até a «calma sustentável» sedimentar e todas as tropas israelitas retirarem de Gaza.

Fase 3:

A última etapa incluiria a libertação dos restos mortais dos reféns falecidos em Gaza, mais prisioneiros detidos por Israel e o início de um plano quinquenal de reconstrução. Note-se que isto implica o reclamado fim do bloqueio de Gaza. O plano diz que o Hamas aceita não reconstruir o seu arsenal militar.

A urticária israelita

Como se vê, a proposta é bastante razoável (atendendo às dificuldades de negociação) e visa sobretudo a defesa da população. No entanto, o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu diz que é uma forma de «torpedear» a sua operação militar em Rafah (relançada poucas horas depois de o Hamas ter aceite a proposta egípcio-qatariana de cessar-fogo…). Além disso, Netanyahu foi claro: não aceitará que o Hamas retome o controlo político na Faixa.

O primeiro-ministro israelita encontra-se entre a espada e a parede, visto que os seus apoiantes de extrema direita ameaçam derrubá-lo se ele suspender a ofensiva em Rafah. Por outro lado, as tensões entre o governo israelita e a administração norte-americana aumentaram, por razões internas à política norte-americana que examinaremos adiante.

As tarefas hercúleas do pós-guerra

O plano de reconstrução de Gaza duraria 3 a 5 anos, sob a supervisão do Egipto, do Qatar e das Nações Unidas. Não fica claro quem governaria Gaza durante a reconstrução, nem o que aconteceria ao Hamas durante esse período, nem quem pagaria a enormidade dos custos de reconstrução.

A administração Biden vem agora dizer que não aceitará o regresso da ocupação militar israelita da Faixa de Gaza. Esta afirmação vale o que vale, visto que ainda há dois dias os EUA vetaram a integração da Palestina como 194º membro de pleno direito nas NU – a votação na assembleia geral das NU para a integração da Palestina como membro de pleno direito tinha resultado em 143 esmagadores votos a favor, 9 contra e 25 abstenções. Na lista dos votos contra encontramos, para além dos EUA: Argentina, República Checa, Hungria, Israel, Micronésia, Nauru, Palau e Papua Nova Guiné.

A administração norte-americana reclama como condição prévia ao reconhecimento do Estado da Palestina o regresso da Autoridade Palestiniana, expulsa de Gaza pelo Hamas em 2007. Por seu lado, Netanyahu e a extrema direita israelita garantem que jamais reconhecerão o estado da Palestina.

Uma missão impossível: extinguir o Hamas

Não são precisos mais de dois dedos de testa para perceber, mesmo antes do início do actual conflito e da acção terrorista do Hamas em 7 de outubro passado (condenável em si mesma, evidentemente), que não é possível extinguir o Hamas. Melhor dizendo, a única maneira de extinguir qualquer força militar resistente apoiada pela população consiste em extinguir a população no seu todo, ou seja, praticar um genocídio. Qualquer ex-combatente da guerra colonial com os tais dois dedos de testa sabe isto intuitivamente; e, com maior força de razão, qualquer general israelita que tenha estudado a arte da guerra de guerrilha tem isto como dado adquirido. Por conseguinte, a justificação que preside à operação militar israelita na Faixa de Gaza (extinguir o Hamas) é uma declaração hipócrita, porque desde o início só pode significar uma coisa: a extinção do povo residente na Faixa de Gaza.

A comunicação social portuguesa insiste em apresentar o Hamas de tal forma, que o leitor tende a imaginar um grupelho armado clandestino, isolado de tudo e de todos, escondido em grutas e subterrâneos, donde parte pela calada da noite para executar acções terroristas, sendo estas a sua razão última de ser. Nada mais longe da realidade. O Hamas é uma organização política que governa a Faixa de Gaza, onde a partir de 2006 ganhou a maioria dos votos da população em eleições democráticas, legítimas e legitimadas por todos os observadores europeus aí instalados. Tem, além disso, um braço armado que (bem ou mal, podemos discuti-lo, mas só ao povo palestino compete julgá-lo) correu com a Autoridade Palestiniana para fora do território, acusando-a de corrupção. Escusado seria dizer que o governo de Israel começou por favorecer esta força política que minava a influência da OLP, da Fatah e da Autoridade Palestiniana, que entretanto já tinham deposto as armas e advogavam a paz e a solução dos dois estados. Fora de Gaza, as outras regiões palestinas são governadas pela Autoridade Palestiniana.

Como é normal, o Hamas tem aliados externos – tal como o Estado de Israel tem os seus aliados externos (e bem poderosos, diga-se de passagem), que lhe fornecem armas e apoio político. E no entanto, por maiores que sejam os desmandos e massacres que Israel ou as milícias sob a sua protecção venham praticando ao longo dos últimos 76 anos, isso não nos leva a pedir que os aliados de Israel ou os seus exércitos sejam declarados entidades terroristas.

Na verdade, só existe uma forma de convencer a população palestiniana a retirar o seu apoio ao Hamas ou a qualquer outro tipo de resistência armada: levando até ela a paz e o bem-estar, devolvendo-lhe o acesso aos mares onde pescava e as terras confiscadas onde erguia as suas casas e plantava o seu sustento, dando-lhe a liberdade de se deslocar em todo o território onde residem os seus familiares e amigos, e mais além, e devolvendo a integridade a esse território. Nenhum ser humano na posse do seu perfeito juízo e abençoado pela paz e o bem-estar gosta de ter nódoas negras ou andar aos tiros. Infelizmente, o início de paz que poderia estar à vista com a proposta de acordo consentido pelo Hamas, que descrevemos mais acima, é recusado pelo actual governo de Israel.

À proposta de cessar-fogo permanente, Netanyahu e a extrema direita israelita respondem com a proposta de guerra permanente.

O movimento estudantil antigenocídio

Ao fim de várias semanas de acções de rua e acampamentos nas universidades, o movimento estudantil de protesto contra o massacre do povo palestiniano em Gaza atingiu proporções globais que nos trazem à memória os protestos contra a guerra do Vietname. Revelam, além disso, um ganho qualitativo na consciência sobre as políticas imperialistas e os interesses capitalistas que as sustentam.

Nos EUA, a pressão exercida pelos jovens em geral e pelos estudantes em particular é de tal ordem, que obrigou o actual presidente Biden a reconsiderar o seu posicionamento. Ainda que seja do conhecimento geral o apoio incondicional da administração norte-americana ao governo sionista de Israel (e aos fabricantes norte-americanos de armamento que alimentam a guerra no Próximo Oriente), a contestação de que é alvo por parte desta juventude obrigou o presidente Biden (a seis meses das eleições presidenciais…) a moderar o seu apoio a Netanyahu.

Países onde os estudantes estão em pé de guerra contra o genocídio do povo palestiniano:

África do Sul, Alemanha, Argélia, Argentina, Austrália, Áustria, Bangladeche, Bélgica, Bósnia, Brasil, Canadá, Coreia do Sul, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, EUA, Finlândia, França, Grã-Bretanha, Índia, Indonésia, Iraque, Irlanda, Itália, Japão, Jordânia, Líbano, Marrocos, México, Nigéria, Nova Zelândia, Países Baixos, Portugal, Quénia, Sérvia, Suécia, Suíça, Tailândia, Tunísia, Turquia, … 1

A força e a justeza dos movimentos estudantis em todo o mundo, bem como a sua lucidez anti-imperialista, mede-se pela violência policial que em diversos países tem tentado silenciá-los – em vão, pois o movimento não pára de crescer. A entrada das forças policiais armadas nas universidades, numa tentativa musculada de sufocar o movimento estudantil, é um crime desde sempre considerado inadmissível por toda a gente, de direita ou de esquerda, e que já não víamos ser praticado há algum tempo.

Ao contrário da ideia propalada por muitos comentadores do nosso burgo, que gostam de apresentar a juventude actual como um bando de pateta-alegres agarrados ao Tik-Tok e facilmente seduzíveis pelas forças neofascistas, largas camadas da juventude estão a demonstrar a sua capacidade de olhar para a realidade com olhos de ver e vontade de transformar o mundo – como, de resto, já tinham dado provas em relação à crise climática e vários outros temas candentes da actualidade, mas agora de forma mais radical e com uma visão mais global da sociedade.

No âmbito das manifestações de juventude contra o genocídio do povo palestiniano e os interesses imperialistas, é essencial sublinhar o papel da juventude judaica, que há seis meses se manifesta de forma clamorosa em diversas partes do mundo (incluindo Israel) contra a opressão e o massacre dos Palestinianos.

Apesar da proposta de guerra permanente de Netanyahu, em oposição à proposta de cessar-fogo permanente dos representantes palestinianos, este é um daqueles casos em que bem podemos dizer que a esperança reside na juventude.


Notas:

1. Segundo uma lista apresentada por Yorgos Mitralias, em «Le mouvement étudiant pour la Palestine s'étend désormais partout, inspirant la résistance à la barbarie de nos temps ...», no prelo.

 

Fontes e referências

Fonte principal dos dados sobre o acordo proposto pelos mediadores e aceite pelo Hamas a 6/05/2024:

«Here's what's on the table for Israel and Hamas in the latest cease-fire plan», Samy Magdy & Drew Callister, Associated Press News, 7/05/2024.

«Gaza: os pontos que ainda separam Israel e Hamas nas negociações por cessar-fogo – BBC News Brasil», BBC, 8/05/2024.

«Israel says Rafah operations will go ahead as Hamas deal remains ‘far’ from meeting its demands», Abeer Salman, Christian Edwards, Becky Anderson & Jeremy Diamond, CNN, 6/05/2024.

Outras fontes:

«Palestine’s current status», UN, 18/04/2024.

«US vetoes Palestine’s request for full UN membership», UN, 18/04/2024.

«French students protest in support of Palestinians near Sorbonne university», Associated Press News, 29/04/2024.

«Students at Mexico’s National University rally in support of Palestinians, US campuses», Associated Press News, 3/05/2024.

«George Washington University students maintain their pro-Palestinian encampment», Associated Press News, 30/04/2024.

«Pro-Palestinian student protesters encampment continues at Columbia University», Associated Press News, 29/04/2024.

«University of Minnesota students demand divestment in companies profiting from the Israel-Hamas war», Associated Press News, 10/05/2024.

«UN assembly approves resolution granting Palestine new rights and reviving its UN membership bid», Edith M. Lederer, Associated Press News, 11/05/2024.

«The Protests That Anticipated Today’s Gaza Solidarity Encampments», Adam Tomasi, Times, 10/05/2024.

 
temas: Israel, Palestina

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