O uso das cativações e dos fundos autónomos configura um golpe palaciano
Nos últimos anos deu-se uma alteração estrutural profunda na construção dos orçamentos de Estado (OE) e na sua gestão. Esta transformação não foi súbita; ocorreu paulatinamente, pela mão de sucessivos governos. Consiste na introdução da noção e da prática sistemática do lucro dentro da estrutura do Estado, aliada à cativação de verbas orçamentais. A apresentação do OE na sua forma clássica tornou-se um mero instrumento de propaganda, uma peça teatral de gigantescas proporções onde a ficção dificilmente se cruza com a realidade.
Nos artigos anteriores desta série analisei o orçamento de Estado pelo lado da receita e os seus efeitos nas políticas de habitação. Neste artigo estudo o OE pelo lado da despesa. Não entrarei na análise comparativa dos orçamentos para cada uma das funções do Estado, pois não só esse aspecto já foi suficientemente tratado por muitos outros autores, mas sobretudo, como procurarei mostrar, porque esse tipo de análise se tornou relativamente inútil.
O orçamento de Estado sempre serviu como instrumento de propaganda; a sua execução sempre navegou num mar de trapalhices, com alterosas vagas de «contabilidade criativa». Por esse lado, dir-se-ia que nada há de novo. No entanto, as alterações recentes introduzidas na construção e gestão do OE não se limitam a agravar quantitativamente a trapalhice orçamental; transportam-no a um estádio qualitativamente diferente.
A prestidigitação das cativações
Existe uma relação estreita entre um programa político de governação e o plano orçamental que viabiliza cada um dos passos desse programa. Sabemos que uma organização desleixada das contas públicas pode inviabilizar o melhor dos programas políticos. Sabemos também que as escolhas políticas devem ter prioridade na organização do plano de despesas públicas e que o argumento da limitação de recursos, frequentemente usado, não passa em geral de uma manobra de comunicação para camuflar opções políticas contrárias às necessidades da maioria da população. No entanto, é possível – como o actual governo tem demonstrado – construir um plano de despesas públicas que responda vagamente a algumas das prioridades da maioria da população e depois, contrariando a mais elementar lealdade democrática, virar esse orçamento do avesso e encaminhar os recursos públicos para outros fins. Para alcançar este objectivo existem dois instrumentos principais que divorciam a previsão de despesas e a execução orçamental: as cativações e os fundos autónomos.
O actual governo tem recorrido à prática sistemática das cativações orçamentais: as verbas previstas para cobrir as despesas de cada um dos serviços do Estado, em vez de chegarem ao seu destino ordeiramente (por inteiro ou em duodécimos), são disponibilizadas em data imprevisível, a conta-gotas e com frequência só depois de muitos protestos e campanhas de opinião pública; em muitos casos nunca chegam ao destino.
Esta manobra de retenção dos dinheiros públicos (apelidada de «cativações» por ser este um termo menos deselegante do que «desvios») confere ao ministro das Finanças um poder absoluto sobre todos os sectores ministeriais, económicos e sociais: permite-lhe reter os meios de execução de cada serviço pelo tempo que entender e anular os programas políticos aprovados por outros órgãos de poder; coloca-o objectivamente no verdadeiro centro de todas as decisões políticas; confere-lhe um poder muito superior ao dos deputados, dos outros ministros e, claro está, da vontade democraticamente expressa pela população. Já tínhamos assistido a diversas manobras de deslocação do centro do poder com Vítor Gaspar, ministro das Finanças do governo de Passos Coelho, em conluio com a Troika. Vemo-la agora retomada por Mário Centeno, ministro das Finanças do governo de António Costa, numa versão (por comparação com o seu antecessor) mais subtil e menos irritante para os órgãos de fiscalização e contrapoder, entre os quais se conta o Tribunal Constitucional.
A governação centrada no poder financeiro gera várias reacções em cadeia: provoca o caos económico (por exemplo, os fornecedores de bens e serviços ao Estado têm de esperar pacientemente que o sr. ministro das Finanças acorde bem disposto e envie dinheiro para despesas); os serviços de saúde, educação, apoio social, não são extintos, podem até ser até louvados pelo Governo todos os dias, podem até ver as suas verbas aumentadas no OE, mas estas verbas, ao serem retidas – e por fim desviadas, como veremos –, matam os serviços públicos à míngua de recursos, impedem a aquisição de meios de produção, boicotam a contratação de pessoal e o pagamento de salários.
Por efeito da política de cativações orçamentais, nos 12 meses seguintes à aprovação do OE as políticas administrativas descolam-se da previsão de despesas, divorciam-se do que foi aprovado na Assembleia, promulgado pela Presidência e publicado no Diário da República. O OE torna-se um mero instrumento propaganda do Governo e do partido ou partidos no poder – e também uma encenação conveniente para os deputados da oposição, permitindo justificar o seu labor parlamentar, por mais inútil que ele seja.
O truque das despesas previstas no OE mas nunca executadas na realidade funciona como uma manobra de prestidigitação: até ao último instante o espectador permanece estático, sentado no seu lugar, convencido de que a pomba (neste caso a verba prevista para determinada despesa) está ali mesmo, dentro de um cofre, quando na realidade ela já foi deslocada para dentro de outra caixa. É assim que, por exemplo, o orçamento de 6300 M€ previsto para o Ministério da Educação em 2017 ficou reduzido a 6072 M€ (228 milhões de euros mudaram-se para a outra manga do Ministério das Finanças); na área da Saúde, 19 milhões desencaminharam-se algures; na área da Cultura, 62 M€ (= 19 % da verba prevista) nunca chegaram a dar um ar da sua graça. E assim por diante.
Este tipo de práticas força-nos a adoptar novos métodos de análise crítica, pois já não faz sentido olhar para os mapas de despesa constantes na proposta de OE, discutir a distribuição de recursos disponíveis pelas diversas áreas (saúde, educação, cultura, habitação, economia, administração do Estado, dívida, etc.) e pronunciar as conclusões correspondentes, pois nada disto coincide com a realidade executiva. Se até aqui a construção e apresentação do OE já era demasiado críptica e opaca, agora temos pela frente outro problema ainda mais grave: o OE não passa de uma monumental encenação destinada a desviar a nossa atenção do verdadeiro curso político da governação. A cesura entre a encenação e a realidade apenas pode acontecer graças ao facto de todos os partidos com assento na Assembleia da República, tendo a possibilidade de se oporem à instauração de semelhante regime, optarem por apoiá-lo (ou deixá-lo passar, o que vai dar no mesmo); e também porque os movimentos sociais parecem ainda não ter adquirido a maturidade necessária para, de forma autónoma, saírem à rua para dizer: basta! (com ou sem colete, mas visto que estamos em Portugal, o manguito de Bordalo Pinheiro parece-me mais adequado).
Uma vez que a gestão orçamental passou a assentar numa incógnita dependente dos actos discricionários do Governo (ou do ministro das Finanças, conforme prefiram interpretar os acontecimentos), um dos instrumentos de análise possíveis (perdoem a ironia) seria o cálculo probabilístico. Assim, por exemplo, se o Governo propõe 1000 para um serviço social mas nos anos anteriores a prestidigitação financeira evaporou em média 20 % das verbas previstas para as áreas sociais, podemos legitimamente partir do princípio que o Governo, ao dizer 1000, quer na realidade significar 800. Esta deriva estocástica mata de vez toda a esperança de acedermos ao reino do rigor e da transparência e torna cada vez mais difícil os cidadãos verem e entenderem o rumo da administração pública.
Em suma: as cativações – que na realidade são desvios dos dinheiros públicos, como se comprova por alturas da apresentação da Conta Geral do Estado consolidada, dois anos após a sua consumação – constituem uma forma palaciana de subverter o normal funcionamento dos órgãos de poder e a execução dos programas políticos aprovados.
Uma alteração estrutural decisiva na construção dos OE: os fundos autónomos
Para o melhor e para o pior, os serviços e fundos autónomos (SFA) sempre existiram. Nalguns casos a existência de serviços autónomos (isto é, serviços apetrechados de autonomia administrativa e executiva) era não só compreensível, mas até aconselhável, a meu ver – é o caso das universidades, dos serviços de saúde, etc., que têm tudo a ganhar quando mantêm a sua independência face ao vaivém de ministros e governos.
Os fundos autónomos (FA) também não nos eram desconhecidos. Como o nome indica, diferem dos serviços autónomos por terem uma natureza eminentemente financeira – a sua autonomia exerce-se não só ao nível administrativo e executivo, mas também ao nível financeiro e patrimonial. A natureza política dos FA sempre foi muito discutível: por exemplo, no caso dos fundos de pensões1, não me parece admissível que uma organização nascida do esforço solidário dos trabalhadores se dedique a comprar acções de empresas que praticam despedimentos em massa, que exploram os assalariados (obrigando-os a recorrer ao auxílio assistencial da Segurança Social para conseguirem sobreviver) e que em muitos casos se situam em países periféricos, exportando a riqueza aí produzida para os países dominantes, sem retorno. E, acima de tudo, os FA já eram portadores de um vício: introduzem o conceito de lucro na gestão dos interesses colectivos.
É preciso recordar que existem dois lugares onde o conceito de lucro não tem cabimento: as cooperativas (ou, de forma mais geral, todo o sector associativo e a «economia social»)2 e o Estado. Sucede que a ausência de lucro fere profundamente o projecto neoliberal, que em tudo à face da terra vê uma potencial fonte de lucro, desde a floresta amazónica até ao aparelho de Estado, passando pelos serviços sociais; por isso não é de espantar que os seus defensores tenham procurado com afinco sucessivas formas de introduzir o conceito e a prática do lucro dentro do Estado. Ora o Estado português não poderia instituir por lei a noção de lucro nas contas públicas, pois está sujeito a regras contabilísticas e administrativas internacionais que o impedem – aparentemente o projecto neoliberal tinha ido dar a um beco sem saída. No entanto, a existência de fundos de pensões e de meia dúzia de outros fundos constituía uma anomalia inspiradora para os intuitos neoliberais. Vários governos, especialmente a partir de 2005, ensaiaram formas de introduzir o conceito de lucro no Estado – primeiro no plano ideológico, depois por mecanismos administrativos efectivos – e por fim um sistema eficaz foi afinado pelo actual governo.
Na sua formulação actual, um fundo autónomo é uma entidade sujeita à tutela de um ministério, mas detentora de capital próprio, património próprio, fontes de rendimento próprias e autonomia na gestão dos seus recursos. As suas fontes de receita podem ser:
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taxas e impostos indirectos consignados no todo ou em parte;
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«receitas ordinárias» do tipo dividendos, venda de bens e serviços (exemplo: serviços e material de guerra), venda de património (que em muitos casos era património público há décadas), etc.;
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«transferências ordinárias» do OE;
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«transferências de capital»3 do OE;
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«transferências de capital» da UE;
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«transferências de capital» de entidades privadas.
O estatuto dos fundos autónomos foi subtilmente remodelado ao longo da legislatura do primeiro-ministro António Costa e o seu número aumentou de forma notável, acabando por forjar uma gigantesca máquina de investimentos financeiros à custa dos dinheiros públicos. Até 2005 existiam em Portugal 6 a 10 fundos autónomos (não contando com os fundos de pensões); esta flutuação deve-se em parte ao facto de alguns fundos autónomos serem transitórios, como o Fundo para a Reconstrução do Chiado. Em 2011 já havia 14 fundos autónomos, o que poderá indicar a percepção, já nessa época, do rumo a seguir para satisfazer o projecto neoliberal. Este número elevou-se para 30 em 2014 e subiu para 62 em 2017; finalmente, no OE de 2019, encontramos cerca de 90 fundos autónomos.4 A continuar a actual tendência, é de recear que em futuros OE tudo venha a ser dominado por fundos autónomos ou equiparados (ver mais à frente a questão da equiparação).
Visto que o dinheiro não cresce nas árvores e os investimentos de capital privado são insignificantes no cômputo geral dos fundos autónomos, grande parte dos FA tem de receber «transferências de capital» do OE – o que tem provocado uma enorme sangria de dinheiros públicos. Fazendo contas muito por alto e sempre por defeito, em 2004 os 11 fundos autónomos que escrutinei comeram 1523 M€ do orçamento público; em 2017 os referidos 62 FA absorveram pelo menos 4884 M€; graças à opacidade das contas públicas, julgo ser impossível prever quanto absorverão 90 FA em 2019, mas se aplicarmos a proporção verificada em 2017, obtemos uma previsão especulativa de 7011 M€.
Vários FA são sociedades SGPS («sociedades gestoras de participações sociais» = holdings, isto é, empresas com carteiras de investimento bolsista, que visam controlar outras empresas). Alguns destes holdings detêm outros holdings – havendo mesmo um denominado Fundo de Fundos para a Internacionalização –, formando uma cadeia financeira labiríntica e virtualmente impossível de escrutinar. Na longa lista de fundos autónomos encontramos instituições que, directa ou indirectamente, detêm acções em dezenas de empresas privadas espalhadas por todo o mundo, incluindo, por exemplo, empresas de exploração de diamantes em Angola5, empresas ligadas à corrupção no Brasil, grandes empresas com presença em Portugal, nomeadamente nas áreas das telecomunicações, do turismo, da indústria do papel (entre as quais a Inapa e outras directa ou indirectamente ligadas à criminalidade incendiária nas florestas nacionais), etc.
Em suma, os FA constituem não só um problema político grave pela sua natureza intrínseca – pois obedecem à lógica do lucro e não a escolhas políticas democraticamente aprovadas –, mas também um factor multiplicador da opacidade das contas públicas.
Alguns destes fundos encontram-se estreitamente ligados à dívida pública e às suas causas. Veja-se o Fundo de Resolução – criado para salvar os restos do Banco Espírito Santo e, de maneira geral, para amortecer os desvarios financeiros da banca –, inicialmente dotado de uma verba transferida pelo Estado a título extraordinário; este fundo devia nos anos seguintes ser alimentado pelos bancos privados e devolver ao Estado as verbas que este avançou, a título de empréstimo (não há que alimentar grandes esperanças, pois tem-se visto que a banca é muito má pagadora). No entanto em 2018 o Estado continuava a pôr no Fundo de Resolução 850 M€; em 2019 voltará a fazer uma transferência excepcional de 850 M€. Parafraseando uma tirada de Paulo Morais em conferência recente,6 o extraordinário tornou-se ordinário. À sangria provocada pelo Fundo de Resolução português devemos acrescentar a transferência de 897 M€ e 853 M€, respectivamente em 2018 e 2019, para o Fundo de Resolução Europeu.7
O facto de os FA possuírem autonomia administrativa e financeira dá-lhes uma considerável margem de manobra, o que permite ao Governo utilizá-los como instrumento de desvio das verbas do OE. Assim, por exemplo, no OE-2019 o Fundo Ambiental recebe transferências de capital provenientes dos dinheiros públicos e a seguir transfere os seus próprios capitais8 para outras empresas, em especial na área dos transportes de Lisboa e Porto. Isto significa que o Governo apresenta na Assembleia da República um determinado projecto político, mas depois de os deputados o votarem favoravelmente, as verbas necessárias são desviadas para outros fins, sem passar cartão a ninguém. Entretanto ficou no ar a palavra «ambiental», que cai sempre bem nos tempos que vão correndo.
Em suma: os fundos autónomos não só introduzem a lógica do lucro nas contas do Estado (o que já de si é uma calamidade política suficiente para fazer soar todos os alarmes), mas também permitem agravar o processo de encenação, falsificação e desvio das contas públicas. É um jogo de prestidigitação, com dinheiros a serem transferidos em cadeia de um lado para o outro, ao gosto das trafulhices financeiras tão comuns na banca e nos fundos de investimento privados.
É certo que o Estado sempre funcionou como uma central de negócios em benefício dos interesses do capital e em prejuízo dos interesses gerais da população; mas a introdução orgânica do conceito de lucro, através das cativações orçamentais e do novo modelo de fundos autónomos, parece-me elevar o favorecimento dos negócios privados a um novo nível qualitativo e concentrar no Ministério das Finanças todo o poder real. Chama-se a isto um golpe palaciano.
As entidades equiparáveis a fundos autónomos
O labirinto orçamental não se limita aos aspectos acima descritos. Quando referi a existência de cerca de 90 fundos autónomos, não estava a contar com inúmeras entidades que lhes são equiparáveis. Sucessivas alterações jurídicas transformaram velhas e respeitáveis instituições em entidades autónomas equiparáveis aos FA: é o caso de vários institutos públicos (IP), empresas públicas (EP), fundações, agências, etc. Todas estas entidades formam uma massa na ordem das centenas de instituições com autonomia financeira.
É-me impossível no espaço deste artigo analisar centenas de serviços, institutos, fundações, etc. De resto, para isso seria necessária uma equipa pluridisciplinar e longas semanas de trabalho de auditoria cívica e independente, a fim de distinguir quais desses serviços se comportam como fundos autónomos e quais continuam a ser respeitáveis entidades prestadoras de serviços de utilidade pública.
(Ver também artigo sobre o Fundo de Apoio ao Turismo e ao Cinema)
Conclusão
Para que não restem dúvidas: estou a falar de um conjunto de mudanças estruturais no modelo de gestão pública, paulatinamente instaladas ao longo de 3 ou 4 legislaturas (todas elas do PS, com excepção do governo de Passos Coelho, do PSD+PP), acabando por configurar o que pode ser entendido como uma mudança de regime, ainda que todos os outros órgãos de poder constitucionalmente previstos continuem no seu lugar. Este golpe dá-se ao estilo palaciano: sem intervenções militares nem convulsões nas ruas.
Muitos autores têm criticado as cativações. Algumas críticas pontuais têm sido lançadas a este ou àquele fundo autónomo. Mas ninguém parece querer tirar a conclusão óbvia: estamos perante uma manobra que institucionaliza na administração pública o conceito aberrante de lucro, que concentra o poder real na gestão financeira do Estado, em prejuízo de todos os outros órgãos de poder, e que faz tábua rasa dos interesses da maioria da população.
Ao longo da actual legislatura os partidos de esquerda poderiam ter-se oposto terminantemente a este golpe palaciano. Pelo menos a partir do segundo ano de vigência do governo de António Costa, quando já toda a população portuguesa comentava nas ruas o truque das cativações orçamentais, não é de todo credível que as direcções dos partidos de esquerda estivessem tão distraídas, tão embevecidas pelo seu namoro com o poder executivo, que não fossem capazes de perceber o que ocorria mesmo diante do seu nariz. Podiam ter-se oposto terminantemente, podiam ter ameaçado fazer cair o Governo, visto que o PS não detém a maioria parlamentar – embora não fosse de estranhar que nessa circunstância os partidos de direita viessem em socorro de António Costa, uma vez que são co-autores na instalação deste golpe. Esquivando-se a tomar uma atitude radical, correm o risco de ser vistos como cúmplices ou co-responsáveis.
Não chega dizer, como sugeri mais acima, que os métodos clássicos de análise crítica do OE deixaram de fazer sentido e que outros têm de ser inventados. Aliás, essa nem é a questão mais premente. A mais urgente resposta tem de consistir num apelo ao derrube integral do modelo que configura o actual regime.
É este o momento adequado, mais uma vez, para propor alternativas radicais não só às actuais políticas governativas, mas também ao esquema de organização dos poderes públicos – do poder central aos órgãos autárquicos, da Segurança Social à dívida pública, da política fiscal à política de habitação, enfim, a todos os níveis e em toda a dimensão da sociedade portuguesa. Este combate não pode ser ganho recorrendo exclusivamente a um assento parlamentar. Só pode ser ganho com a mobilização das populações nos mais variados sectores, de preferência unindo-as e não dividindo-as em pequenas parcelas de interesses minoritários ou sectoriais. Não pode ser ganho chamando simplesmente as populações à rua e pondo-lhes uma bandeirinha na mão. Tem de assentar na construção de novas formas de democracia e participação que apenas podem ser inventadas e praticadas pelos sectores da população ligados ao trabalho, aos bairros, às escolas.
Notas:
1 Os fundos de pensões são instituições que se dedicam à especulação financeira, usando as quotizações dos trabalhadores para jogar na Bolsa, a fim de obterem um lucro que, em teoria, serviria para multiplicar o saldo das caixas de pensões de reforma.
2 Acerca da eterna batalha entre o Estado e os representantes do sector capitalista, por um lado, e o sector associativo não lucrativo (hoje denominado «economia social») por outro lado, ver entre outros: «Relações entre Cooperativas e Estado em Portugal», de João Salazar Leite, 2011, publicado em www.cases.pt, e «O Cooperativismo e o Novo Código Cooperativo», de António Bica, publicado em 2015 por www.esquerda.net (ambos consultados em janeiro/2019). Ver também a mais recente legislação para o sector cooperativo em https://www.cases.pt/wp-content/uploads/Lei_de_Bases_ES.pdf
3 «Transferência de capital» é a expressão usada no OE. A introdução do termo «capital» remete para a noção de lucro, exploração de mais-valias e acumulação privada. Outra coisa muito diferente seria usar a expressão «transferência de verbas do Estado».
4 Não incluo nestas contas os fundos autónomos e outras entidades equiparáveis em várias áreas sociais (educação, saúde, segurança social), porque os organismos envolvidos são às centenas (hospitais, universidade, institutos, fundações, etc.); seria necessário analisar em pormenor cada um deles, para sabermos se se comportam como fundos autónomos ou como serviços em sentido clássico. Incluo, no entanto, meia dúzia de entidades pertencentes a outras áreas que, não possuindo a designação de «fundos», são-no de facto.
5 A «Sociedade Portuguesa de Empreendimentos (SPE), empresa dedicada à exploração de diamantes em Angola», que por sua vez detinha até 2018 a Sociedade Mineira do Lucapa (SML). Ver: Luís Villalobos, «Empresa Portuguesa de Diamantes Não Encontra Accionistas para Lhes Dar 2,5 Milhões», Público, 11/04/2018.
6 Conferência sobre o Orçamento de Estado, realizada no ISCAL em janeiro/2018.
8 Ver: Lei 71/2018, artigo 283º (transferência de 40 % dos impostos sobre os combustíveis para o Fundo Ambiental); artigo 351º, n.º 49 (transferência de 1,8 M€ para a Mobi.E, SA), n.º 52 (2 M€ para o Fundo Azul), n.º 57 (0,25 M€ para o IHRU), n.º 60 a 66 (para diversas comissões de coordenação e desenvolvimento regional, num total de 6 M€), n.º 67 (3 M€ para o Fundo de Serviço Público de Transportes), n.º 68 a 69 (total de 0,455 M€ para o IHRU e para Reabilitar como Regra), e várias transferências para a Transtejo SA, Soflusa SA, Metro do Porto SA, Projecto de Renovação da Frota da Trasntejo, Projeto de Expansão da Rede do Metropolitano de Lisboa EPE, Projeto de Expansão da Rede da Metro do Porto SA, CP SA (perfazendo estes 3,8 M€). Ver também Aviso n.º 3498-A/2018.
Fontes e referências
Direcção-Geral do Orçamento – dgo.pt.
Parpública, Participações Públicas (SGPS), S.A. – parpublica.pt.
Lei 71/2018 – consultada via Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa.
Aviso n.º 3498-A/2018 – consultado via Diário da República.
Índice deste caderno
OE-2019visitas (todas as línguas): 4.506