Skip to content
Por motivos técnicos, este site teve de ser reconstruído de raiz. Algumas das suas funcionalidades e páginas anteriores perderam-se e é possível que algumas ligações tenham sido quebradas.

O papel do Tribunal Constitucional português

Rui Viana Pereira, 05/12/2013

O Tribunal Constitucional (TC) está na berra. Uns esperam dele a salvação contra as medidas de austeridade contrárias aos direitos fundamentais consagrados na Constituição e no direito internacional. Outros pedem-lhe uma aplicação da Lei Fundamental temperada pelos condicionalismos e exigências da Troika. Outros exigem a extinção do TC, argumentando que deveria ser substituído por um conselho superior de juízes de carreira.

 

O que é o Tribunal Constitucional (TC) português?

Segundo a página digital do TC, este tribunal tem «funções de garantia e defesa da Lei Fundamental».

«O Tribunal Constitucional é um órgão de soberania autónomo (...) as suas decisões impõem-se a qualquer outra autoridade. O Tribunal Constitucional não está integrado na organização dos restantes tribunais».

10 dos 13 juízes do TC «são eleitos pela Assembleia da República» por maioria qualificada. Os restantes 3 juízes «são cooptados (ou seja, escolhidos) pelos 10 Juízes eleitos pela Assembleia da República». Do total de 13 juízes, 6 «são obrigatoriamente escolhidos de entre juízes de outros tribunais».

Ao contrário do que pode sugerir a frase «funções de garantia e defesa da Lei Fundamental», o papel do TC não é o de «policiar» os actos administrativos e legislativos – só pode pronunciar-se a pedido expresso dos outros órgãos de soberania, e mesmo assim com enormes limitações processuais.

Para ser nomeado juiz do TC por um período de 9 anos, basta à maioria dos candidatos (7 em 13) ter alguma formação jurídica não especializada (por exemplo, ser licenciado); a candidatura depende essencialmente da confiança política do parlamento (isto é, dos partidos do arco do poder).1

Quem produz as leis que o TC fiscaliza?

As leis são emanadas pelas mesmas entidades que escolhem os juízes do TC: os deputados à Assembleia da República; ou o Governo e as administrações locais.

Por outras palavras, o TC é o epicentro de um pacto de regime entre os partidos no poder.

Do ponto de vista público, isto é, daquilo que parece, a actividade do TC consiste em fiscalizar as leis, examinadas à luz duma interpretação da Constituição. Ora, é frequente que cada uma das 13 cabeças do TC tenha uma interpretação diferente das outras, como se pode comprovar pelas declarações de voto nas sessões do TC – o que não os impede, miraculosamente, de tomarem decisões por maioria e até por unanimidade.

Uma vez que a Lei Fundamental ( Constituição) é o instrumento básico de trabalho do TC, para compreendermos bem o papel actual deste tribunal temos de ter uma visão clara da construção, origem e evolução da Constituição.

Como se formou a actual Constituição?

A Assembleia Constituinte foi criada por sufrágio universal em 25/Abril/1975 – ou seja, os trabalhos constitucionais já estavam em curso, com um determinado rumo, antes do golpe de 25 Novembro. A actual Constituição portuguesa, mesmo tendo em conta as alterações que foi sofrendo ao longo de 37 anos, resulta dum conjunto de circunstâncias históricas específicas.

Por um lado, vem no seguimento de um golpe militar (25 de Novembro de 1975) destinado a travar o processo revolucionário então em curso e a instituir um Estado de direito e de democracia representativa – isto é, resulta de um processo que pôs um travão à participação directa dos cidadãos na planificação e governação, na organização e apropriação ds meios de produção; esta participação directa estava a tornar-se cada vez mais intensa em 1975, ameaçando constituir um duplo poder organizado.

Por outro lado, o golpe militar não foi do tipo chileno – não visava impor uma ditadura militar mas sim um estado de direito em moldes clássicos. De modo que o impulso revolucionário em curso antes do golpe militar não se extinguiu totalmente do dia para a noite de 25 de Novembro de 1975. Uma parte da sua influência manteve-se durante algum tempo – e durante esse tempo decorreu a discussão da primeira Constituição portuguesa pós-ditadura, aprovada em 2 de Abril de 1976, ou seja, 4 meses depois do golpe militar.

Estes dois vectores seminais (revolução e contra-revolução) reflectem-se ainda hoje na Constituição, provocando interpretações divergentes e conflitos de interesse frequentes. Talvez por isso, em 1982, os partidos representados no Parlamento decidiram estabelecer um compromisso: introduzir um quinto órgão de soberania, o Tribunal Constitucional. Este órgão tem de funcionar, na prática e independentemente dos aspectos formais, como garante do pacto de regime estabelecido em Novembro de 1975 – se deixar de ser útil nesse papel, é natural que venha a ser extinto.

A revisão constitucional de 1982 é um marco decisivo na progressiva mudança de rumo da Constituição. Entre diversas alterações destacam-se: a República portuguesa deixa de definir-se como «um estado democrático em transição para o socialismo», e passa a definir-se simplesmente como um «estado de direito democrático»; a apropriação colectiva dos principais meios de produção e dos recursos naturais desaparece das declarações iniciais – a secção onde as constituições definem os princípios fundamentais, a soberania, a natureza do Estado e o regime – e é remetida para a secção de «organização económica»2; os partidos passam a ser considerados representantes absolutos da vontade popular, remetendo para segundo plano a participação cidadã directa; etc. É importante notar que em 1982, ao mesmo tempo que a Constituição sofre uma primeira inflexão em direcção ao neoliberalismo, continua a manter várias referências à propriedade colectiva de recursos e bens essenciais, e à prevalência dos interesses colectivos sobre os particulares. De modo que as contradições e incongruências já existentes no texto constitucional inicial agravaram-se ainda mais. Isto permite talvez compreender a introdução de um árbitro político bizarro – embora o TC, no texto constitucional, esteja arrumado na secção dos tribunais, ele não obedece nem pertence à estrutura judicial, nem aos princípios e garantias de justiça (apenas os outros órgãos de soberania podem recorrer ao TC; o cidadão comum não pode pedir justiça ao TC); é declarado autónomo e as suas decisões obrigam todos os outros órgãos de soberania, incluindo os tribunais.

A introdução de um elemento estranho ao mecanismo institucional: a Troika

Os acordos assinados com a Troika são, para todos os efeitos práticos, uma segunda Carta fundamental – condicionam a actividade legislativa e governativa. O povo português vê-se na situação bizarra de ter duas constituições ao mesmo tempo. A Carta da Troika entra constantemente em contradição com a Constituição portuguesa – permite a violação dos direitos, liberdades e garantias, anula as promessas de concertação social e negociação colectiva, elimina as garantias elementares de independência política, social, económica e cultural, etc.; chega mesmo ao ponto de anular alguns princípios básicos dos estados de direito: favorece a retroactividade de taxas e impostos e a sonegação de retribuições anteriormente garantidas; sugere a alteração funcional de vários órgãos de soberania, nomeadamente os tribunais.3

De forma declarada e sem disfarces, o executivo e a maioria parlamentar passaram a governar de acordo com o Memorando da Troika. É frequente os poderes públicos afirmarem a impossibilidade de cumprir integralmente certos artigos da Constituição, por estarmos «obrigados» a cumprir um Acordo que «assinámos». Mas, e é aqui que a porca torce o rabo, as instituições previstas na Constituição continuam a funcionar – e permitem que o TC se pronuncie sobre a constitucionalidade das normas emitidas em consonância com a nova Carta.

Esta situação contém uma multiplicidade de problemas insolúveis:

  • o TC não foi criado nem estruturado para conciliar duas cartas constitucionais, mas apenas os conflitos entre uma lei fundamental e os restantes órgãos de soberania;

  • o TC tem a obrigação formal de arbitrar em função das regras expressas na Constituição; mas ao mesmo tempo é um órgão politicamente nomeado;

  • ora as entidades que nomearam os juízes do TC com base na confiança política são as mesmas que governam em função da nova Carta, isto é, dos acordos com a Troika, que subscreveram.

Algumas correntes políticas em Portugal adoptaram uma palavra de ordem sugestiva e moralizadora: «Não há becos sem saída». Mas, curiosamente – e note-se que os promotores dessa palavra de ordem apelam frequentemente à intervenção do TC –, a situação que acabamos de descrever é precisamente um beco sem saída. Perante a vigência simultânea de duas Cartas – uma situação inédita de duplo poder no papel –, de todas as possibilidades existentes à nossa disposição, uma delas é totalmente inviável: pedir ao TC que resolva o problema.

Os partidos de direita foram rápidos a tirar as consequências da actual situação: há já algum tempo que os seus sectores mais afoitos pedem uma revisão radical da Constituição; outros, muito antes de todo este bruá, pediram a suspensão provisória da Constituição.

E nós, os de baixo, que opções temos?

A única resposta eficaz perante o conflito de interesses actual é esta: rasgue-se o Acordo com a Troika – sem hesitações, sem compromissos, sem renegociações! Rasgue-se o Acordo e reinstaure-se a Constituição – ao menos por agora, apesar de tudo o que esta Constituição possa ter de criticável, mas também com todos os resquícios que ainda restam das conquistas obtidas durante o processo revolucionário de 1974-1975.

Aqui, porém, surge um problema triplo:

  1. O actual parlamento, que é quem tem autoridade institucional para rasgar o Acordo com a Troika, é na sua maioria pelo Acordo.

  2. Isto significa que seria necessário ir a eleições e constituir uma nova maioria de sentido oposto. Mas, se atendermos a que numa possível alteração do balanço de maiorias e minorias o PS terá um papel de charneira central e a sua direcção foi a primeira signatária do Acordo, vemos que a coisa não é tão fácil como poderia parecer à primeira vista.

  3. Com eleições ou sem eleições, com novas maiorias parlamentares ou sem elas, os poderes económicos nacionais e internacionais não aceitarão mansamente a anulação do Acordo, seja qual for o partido que esteja no poder. A única coisa que pode forçá-los a aceitar a anulação do Acordo e da dívida pública é uma movimentação social duma intensidade tal, que o capital prefira ceder e fazer as pazes, antes de ser obrigado a levar o confronto a uma fase extrema e sem retorno.

 


Notas:

  • 1. O Direito português tem uma peculiaridade: preocupa-se mais com a mecânica processual do aparelho jurídico, do que com os factos, o conteúdo e a intenção das leis. Este artigo adopta uma abordagem exclusivamente baseada na análise de conteúdo e significado político das leis, das instituições e dos factos históricos – por isso é possível que esteja em contradição com pontos de vista dos juristas.

  • 2. Tudo isto desapareceu da versão actualmente em vigor, datada de 2005.

  • 3. Há quem critique a minha interpretação da situação política actual e prefira caracterizá-la como um estado de excepção. Mas num estado de excepção teríamos um decreto explícito de suspensão total ou parcial da Lei Fundamental – não é o caso. O estado de excepção não explica o papel do Tribunal Constitucional, nem o facto de ele continuar em funções, juntamente com os outros órgãos de soberania; é uma interpretação demasiado simples e passa ao lado da realidade histórica que vivemos.

 

Fontes e referências

Tribunal Constitucional: http://www.tribunalc... – onde podem ser consultados os acórdãos e a definição estatutária do Tribunal.

Para o estudo das sucessivas alterações à Constituição, ver http://www.parlament...

 
 

Índice deste caderno

O Tribunal Constitucional
temas: jurisprudência

visitas (todas as línguas): 5.418
 

Este sítio usa cookies para funcionar melhor