A semântica do Mecanismo de Recuperação e Resiliência
A lexicometria pode ajudar a identificar os conceitos dominantes do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR), os temas nele ausentes e a forma como os poderes públicos constroem uma semântica capaz de encobrir os interesses das classes dominantes na crise actual.1 Nesta dissertação deixamos algumas pistas sobre o interesse da análise semântica das directivas europeias para o entendimento dos seus objectivos políticos.

Os defensores dos interesses do Capital recorrem sistematicamente a duas armas maiores para enfraquecerem a luta dos explorados: as manobras divisionistas e as manobras semânticas. A estas duas acresce a utilização de manobras repressivas (umas subtis, outras brutas), que definem a génese do próprio Estado e são usadas como último recurso, quando tudo o mais falha.
A primeira dessas armas, o divisionismo, é bem conhecida, ainda que difícil de anular. A fim de que o ínfimo 1 % de privilegiados não sucumba a um embate frontal e compacto com os 99 % de miseráveis, os trabalhadores sedentários são jogados contra os migrantes, os homens contra as mulheres, os empregados contra os desempregados, os jovens recém-chegados ao mercado de trabalho contra os trabalhadores com direitos adquiridos, o campo contra a cidade, os diplomados contra os iletrados. Enquanto os oprimidos e explorados se concentrarem nas suas aparentes diferenças, deixam incólume o inimigo comum.
A segunda arma maior dos defensores do Capital é menos badalada, mas nem por isso menos eficaz. Trata-se da constante alteração semântica do discurso dominante, a qual impede a cristalização de uma consciência colectiva. Embora as ideias centrais dos exploradores (os seus interesses) se mantenham imutáveis ao longo de muitas gerações, o vocabulário usado para as exprimir muda com regularidade. Enquanto as ciências em geral e a Economia Política em particular procuram estabilizar os seus signos, construir um vocabulário permanente que permita à comunidade científica manter-se coesa e dialogante, não alimentar mal-entendidos, transmitir um conjunto vasto de conhecimentos estáveis e aferidos geração após geração, o Capital procura fazer exactamente o oposto: muda regularmente os símbolos significantes através dos quais apresenta a sua narrativa histórica e o seu projecto de sociedade. Este catavento semiótico exerce um efeito desorientador no campo popular, que precisa de bastante tempo para: 1) compreender o cerne do projecto capitalista; 2) gerar uma narrativa alternativa e unificadora; 3) organizar-se em torno dos seus próprios interesses e agir sobre a realidade social. Por regra, quando estes três tempos estão perto da maturidade e prestes a produzir um efeito mobilizador, o Capital toma a iniciativa de efectuar uma mudança de vocabulário e de narrativa, desorientando o campo do Trabalho2. Não tem de ser forçosamente assim, caso os oprimidos sejam capazes de tomar a iniciativa e remeter o patronato para uma posição defensiva, mas infelizmente é o que acontece na esmagadora maioria dos casos históricos. A questão da iniciativa é crucial no jogo de forças entre explorados e exploradores.
Postas as coisas nestes termos, pode parecer que andamos às voltas com questões puramente teóricas, longe da realidade quotidiana. Contudo, confrontando esta teoria com alguns exemplos práticos, vemos que se trata de algo muito terra-a-terra, que atravessa constantemente o nosso dia-a-dia.
Assim, por exemplo, verificamos que a cada 10 ou 15 anos muda a semântica dominante no que diz respeito ao sistema da dívida. Em 2011 os Portugueses foram esmagados por um discurso que justificava o endividamento brutal do país em benefício exclusivo uma ínfima minoria (os banqueiros). Esse discurso assentava na ideia de que tínhamos todos nós, incluindo os mais miseráveis, gasto em demasia, que os serviços sociais provocavam um prejuízo incomportável, que a evolução demográfica tornava insustentável o sistema contributivo de pensões, etc. Era o discurso da culpabilização, para fazer engolir a pílula. Foram precisos praticamente 10 anos para que alguns sectores da população começassem a compreender que os contratos de endividamento impostos pela Troika (ciosamente escondidos dos olhares do público) diziam expressamente que os empréstimos apenas podiam servir para recapitalizar a banca e que o país seria severamente punido se ousasse aplicar essas verbas no domínio social; que a evolução da pirâmide etária não diminui a quantidade de pessoas disponíveis para trabalhar e portanto para sustentar o sistema contributivo de pensões, pelo contrário, aumenta-a (o que enfraquece o sistema contributivo é o desemprego e os baixos salários, não é a idade mediana das pessoas); que a questão do lucro e do prejuízo não se coloca de todo em relação aos serviços sociais (saúde, educação, cultura, habitação, ensino, saneamento, cuidados de proximidade, entre outros), pela simples razão de que esses serviços não precisam de ter um valor de troca para existirem, mas têm sempre um elevadíssimo valor de uso, um valor vital.
Quando esta consciência começou a ganhar corpo, o discurso dominante mudou subitamente de forma. O jogo voltou à estaca zero e agora será preciso reiniciar a desconstrução do discurso dominante.
Será que os poderes europeus se arrependeram da austeridade?
Em numerosas passagens do MRR e dos PRR parece haver uma espécie de mea culpa implícita em relação ao discurso anterior, que visava justificar o endividamento ilegítimo e as medidas de austeridade. Assim, por exemplo, a construção da resiliência futura no sector da saúde implicaria agora uma revitalização dos serviços de saúde … previamente destruídos pelas medidas neoliberais de austeridade.
Será mesmo assim? Estarão as autoridades europeias e nacionais realmente arrependidas de terem minado os serviços públicos de saúde, destruindo a capacidade de resiliência, por exemplo, face a uma pandemia inesperada?, de terem enfraquecido os serviços públicos de educação, de investigação científica, de comunicações, deixando-nos incapazes de tirar proveito pleno da era digital?, de terem promovido a exploração selvagem do ambiente e dos recursos naturais? Uma vez que o campo popular não tomou a iniciativa (salvo algumas excepções no que diz respeito ao ambiente e às alterações climáticas), vê-se agora obrigado a reiniciar a partir do zero um moroso processo de desconstrução da narrativa dominante.
Um novo vocabulário que encobre novos e mais vastos processos de endividamento
Como já foi dito na apresentação deste caderno, estamos perante a criação de novas formas de endividamento ainda mais vastas e esmagadoras do que aquelas a que estávamos habituados. Infelizmente, as novas modalidades de endividamento são-nos apresentadas através de uma semântica enganadora, que habilidosamente chama subvenções ao processo de endividamento.
Lemas dominantes no MRR |
Ocorrências |
---|---|
dever |
186 |
resiliência |
91 |
recuperação |
91 |
plano |
86 |
comissão |
74 |
estados_membros |
71 |
financeiro |
69 |
UE |
67 |
mecanismo |
59 |
execução |
51 |
europeu |
45 |
medida |
40 |
apoio |
39 |
regulamento |
36 |
investimento |
36 |
incluir |
36 |
objectivo |
35 |
social |
34 |
reforma |
33 |
estado_membro |
33 |
assegurar |
33 |
forma |
32 |
económico |
29 |
conselho |
28 |
avaliação |
28 |
presente |
26 |
contribuição |
26 |
abrigo |
26 |
prazo |
25 |
efeito |
25 |
nacional |
24 |
causa |
22 |
acordo |
22 |
digital |
21 |
matéria |
20 |
caso |
20 |
base |
20 |
apresentar |
20 |
Tabela 1: Lemas activos predominantes (frequência >=20) no MRR.3 É notável o facto de nesta lista de ocorrências dos 38 lemas principais apenas encontrarmos 4 verbos (isto é, 4 denotadores de acção): dever, incluir, assegurar, apresentar. O lema «dever», que pode funcionar ora como verbo, ora como substantivo, é absolutamente dominante, com o dobro das ocorrências relativamente a «recuperação e resiliência».
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Os conceitos centrais do Mecanismo de Recuperação e Resiliência
Dois dos temas nucleares do MRR encontram-se expressos no próprio título do documento: «recuperação» e «resiliência».
O conceito de resiliência não oferece dúvidas, pois é definido no artigo 2.º do Regulamento (UE) 2021/241 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/02/2021, que cria o Mecanismo de Recuperação e Resiliência, e não se afasta significativamente do senso comum:
«"Resiliência" [é] a capacidade de fazer face, de forma justa, sustentável e inclusiva, a choques económicos, sociais e ambientais, ou a mudanças estruturais persistentes»
No entanto, o conceito de recuperação, que também é central às directivas europeias, não se encontra contemplado no conjunto de definições do citado artigo. Isto não é de espantar, pois a ideia de recuperação envolve o âmago da questão: recuperação de quem?4 Os interesses nucleares em jogo (interesses de classe) são cuidadosamente silenciados em todos os documentos da União, como se jamais tivessem existido à face da Terra.5
«O PRR é, sem dúvida, um plano de recuperação e resiliência. Mais exactamente, é um plano de recuperação e resiliência do capital. […] A verdade é esta: o PRR, a recuperação e resiliência do capital, fazem-se à custa da miséria dos trabalhadores e da destruição do trabalho organizado.»6
Outra ideia esquiva nos documentos da UE ligados ao MRR diz respeito à origem dos recursos financeiros. A melhor aproximação a esta questão encontra-se no referido artigo 2.º, onde se define «Fundos da União». Infelizmente, trata-se de uma definição tautológica (resumindo: Fundos da União são fundos europeus que venham a ser definidos). Aliás, as tautologias são um vício recorrente no MRR.
É preciso rebuscarmos outros documentos da UE para encontrarmos pistas sobre o financiamento do MRR. Essas pistas vêm à luz do dia numa página da UE intitulada «The EU as a borrower – investor relations» («A UE como devedora – relações com os investidores»). Aí percebemos finalmente que estamos perante um programa de endividamento massivo ao nível da União.
É claro que a ideia de «fundos» está presente nos documentos relativos ao Mecanismo de Recuperação e Resiliência, não é totalmente sonegada ao nosso olhar, mas como nunca é aí definida, nem são esclarecidos os seus verdadeiros mecanismos, o cidadão comum não se apercebe das suas implicações. Para o cidadão comum, a ideia de «fundos» tem sobretudo a ver com pé-de-meia, poupanças, quotização solidária. Ora estas formas de acumulação previdente de recursos nada têm a ver com a exploração do nosso semelhante; servem apenas a sobrevivência pessoal ou mútua.
Os «fundos» a que se referem os documentos da UE são de outro tipo bem diferente: resultam da angariação de recursos financeiros especulativos, usurários, da acumulação de capitais com o fim específico de provocar o endividamento, ou seja, a subjugação política e a extracção de rendas (juros) que serão pagas pelo cidadão comum, em proveito de uma minoria já de si privilegiada. «Fundo», na terminologia anglófona e financeira (p. ex., Fundo Monetário Internacional), significa uma operação do mercado financeiro para alimentar uma dívida presente ou futura, paga à custa dos bens comuns.
Aí está como um simples equívoco semântico pode convencer populações inteiras de que o MRR busca o «bem comum», quando na realidade busca o bem duma elite financeira.
Mea culpa ou fogo-de-vista?
Como já referi, parece lavrar no texto do MRR a renegação implícita de muitas das políticas neoliberais anteriormente adoptadas. Boa parte das propostas e linhas orientadoras avançadas no documento equivalem a uma admissão envergonhada dos resultados desastrosos da austeridade imposta pelas mesmíssimas autoridades ao longo do ciclo político anterior.
De facto, em diversas passagens os considerandos do MRR alertam explicitamente para:
-
os efeitos nefastos da debilidade dos serviços públicos de saúde e a necessidade de fortalecê-los;
-
o agravamento da situação da Mulher por efeito da pauperização e desorganização económica e social;
-
a necessidade de voltar a apetrechar os serviços públicos de ensino e investigação, bem como aumentar o número de quadros aí colocados e dignificá-los;
-
reforçar diversos outros tipos de serviço público, nomeadamente os cuidados de proximidade e diversos outros mecanismos ligados à reprodução social;
-
retomar a contratação colectiva;
-
reduzir a precariedade laboral (não são estas as palavras usadas) e dar condições de estabilidade e dignidade aos trabalhadores; (Nota bem: no entanto, nunca se fala em acabar definitivamente com a precariedade laboral nem em revogar as leis que desregulamentaram as relações de trabalho e enfraqueceram a capacidade negocial dos trabalhadores)
-
desenvolver e adoptar soluções digitais abertas;
-
etc.
Cada uma destas declarações esbarra contra diversos indícios que apontam no sentido oposto – isto é, que levam a crer que o suposto mea culpa é, na realidade, um artifício semântico. Disso tentaremos tratar, componente a componente, nos restantes artigos deste caderno.
Notas:
[1] Neste estudo usámos a aplicação Iramuteq para fazer a lexicometria do MRR e do PRR. Não somos peritos na matéria e por isso não temos pretensões de fazer uma análise lexicométrica apurada. Apenas pretendemos apontar pistas auxiliares para uma análise de conteúdos.
[2] A noção de Trabalho deve ser entendida em sentido amplo: inclui todos os tipos de trabalho, seja ele pago ou não, voluntário ou forçado, mercantil ou não mercantil e ligado à reprodução social (e portanto não reconhecido e não pago na sua maior parte). Em contrapartida, a noção de Capital deve ser entendida em sentido estrito: refere-se à acumulação de recursos apenas quando ela serve para explorar o trabalho alheio; não é capital a mercearia da esquina, onde apenas trabalham os familiares do dono/a; não é capital o conjunto de recursos acumulados num hospital público ou num departamento multimédia do Estado.
[3] Frequência: número de ocorrências de um lema dentro de um texto.
Lema: termo que denota uma família de palavras ou conceito; o lema «investir», por exemplo, agrupa todas as formas do verbo que apareçam no texto. Uma frequência=7 do lema «investimento» significa que o somatório das ocorrências das palavras investimento e investimentos é igual a 7.
Formas activas são os lemas/conceitos considerados mais importantes num determinado texto, isto é, capazes de produzirem sentido no contexto em questão.
Formas suplementares são as palavras que, embora sejam indispensáveis à construção das frases, não são consideradas portadoras de sentido próprio no contexto em questão.
Exemplos: os lemas Portugal, PRR, investir, emprego, foram neste caso considerados «formas activas»; os lemas como, que, para, um, antes, foram considerados formas suplementares, bem como ser, estar, haver, ter, e não são contabilizados.
Nota metodológica: as referências directas a regulamentos e leis foram subtraídos das tabelas lexicométricas.
[4] O exercício da política, que tantas pessoas parecem ter enorme dificuldade em entender e definir, consiste muito simplesmente na gestão dos múltiplos interesses em jogo numa sociedade. Por isso todas as demandas políticas, incluindo esta que aqui fazemos, devem de começar e acabar com esta pergunta singela: quem?, para quem?
[5] Em bom rigor, não é bem assim. Os documentos oficiais da União designam por vezes sectores específicos da sociedade (as mulheres, as crianças, os migrantes, etc.). Mas, repare-se, trata-se de subclasses, remetendo para as já referidas manobras divisionistas e silenciando as grandes categorias sociais – nomeadamente a distinção entre Capital e Trabalho, entre explorados e exploradores. O efeito nefasto deste escamoteamento das grandes categorias sociais é perfeitamente escalpelizado, por exemplo, no manifesto «Feminismo para os 99%», de Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, 2021.
[6] Adriano Zilhão, «O Que É o PRR e a Quem Serve a Bazuca?», Via Esquerda, 22/03/2021.
Fontes e referências
Consultar a lista geral de fontes e referências deste caderno.
Índice deste caderno
O Mecanismo de Recuperação e Resiliênciavisitas (todas as línguas): 64