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A Dívida para Totós - Parte I - Conceitos fundamentais (e uma sugestão de como chegámos até aqui)

al.wragg, 04/10/2012

1ª parte da série «A Dívida para Totós». Conceitos básicos: défice e dívida.

O Produto Interno Bruto, ou PIB, é, de uma forma simples, a soma do valor de mercado de todos os bens e serviços produzidos num país durante um ano. Podemos imaginar o PIB como o bolo que as pessoas de um país produzem durante um ano. Esse bolo não é tudo o que existe para ser comido durante esse ano, uma vez que o país pode ter alimento armazenado de outros anos ou pode pedir emprestado bolo ao vizinho. No entanto o PIB dá-nos uma boa ideia do que deveríamos estar a consumir na economia durante o ano.

O Estado administra os bens e serviços públicos, e para essa administração necessita de dinheiro. Parte desse dinheiro pode ser obtido por receitas próprias (através de taxas, por exemplo) ou pode ser cobrado aos agentes económicos privados (pessoas e empresas) através de impostos. Os impostos que o Estado cobra correspondem a uma fatia do bolo que é retirada para ser utilizada noutros fins.

Não é correcto imaginar que o Estado retira a sua fatia do bolo e que portanto sobra menos bolo para todos se alimentarem. Se isso acontece ou não depende da forma como o Estado gasta essa fatia de bolo: se ele a gastar em subsídios de desemprego, por exemplo, ele estará a devolver essa fatia aos agentes privados. A questão é que o Estado tira a uns e dá a outros, num processo que se chama redistribuição do rendimento. Nesse processo de redistribuição algumas pessoas podem ficar a perder (se pagam mais do que recebem) ou podem ficar a ganhar (se recebem mais do que pagam).

Durante os últimos anos o Estado português tem gasto mais bolo (dinheiro) do que aquele que retira ao PIB. Isso é possível porque o Estado português tem pedido bolo emprestado aos agentes privados portugueses e estrangeiros. Deve então levantar-se a questão de saber por que razão o Estado manteve durante muitos anos essa actividade de pedir dinheiro emprestado aos agentes privados, gastando mais dinheiro do que aquele que tinha disponível.

As despesas e as receitas do Governo (que é quem concentra o poder executivo do Estado) têm de ser previstas com antecedência e têm de ser aprovadas anualmente na Assembleia da República. O documento que contém essas previsões de receitas e despesas é o Orçamento de Estado (OE abreviadamente). A discussão e votação do OE na Assembleia da República ocorre anualmente entre os meses de Outubro e Novembro.

Todos os OE são públicos e podem ser consultados livremente (por exemplo, através da Internet).

É importante ter presente que os OE são diplomas que contêm as previsões das despesas e receitas do Estado, e não o valor que efectivamente se veio a verificar. Se quisermos conhecer os valores efectivos devemos consultar em alternativa a Conta Geral do Estado1.

Se ao valor das receitas do Estado subtrairmos o valor das suas despesas, o resultado é o saldo orçamental. Se o saldo orçamental for positivo (quando as receitas são maiores que as despesas) ele toma o nome de superavit; se for negativo (quando as despesas são maiores que as receitas) ele toma o nome de défice. Existe um défice orçamental, portanto, quando as despesas do Estado são maiores do que as suas receitas.

Mas, como é possível que o Estado gaste dinheiro que não tem? A resposta é simples: não é possível. Na verdade o Estado só gasta mais dinheiro porque o pede emprestado. Esse dinheiro que é pedido emprestado também é inscrito no OE no lado das receitas. O que não fica lá registado no OE é a dívida que o Estado assim contrai, isto é, o dinheiro que fica a dever. Este dinheiro que o Estado fica a dever é a dívida pública. Por outro lado, quando o Estado devolve o dinheiro que pediu emprestado, isso também é registado no OE como uma despesa. Nestas transacções financeiras em que se pede dinheiro emprestado (receitas financeiras) e depois se o devolve (despesas financeiras) os agentes privados que emprestam ganham um dinheiro extra que é o juro. O juro da dívida é então o montante que o Estado tem de pagar aos agentes privados que lhe emprestaram dinheiro, a troco desse empréstimo. O juro é um valor que acresce ao que se deve devolver. Portanto, quando o Estado devolve dinheiro, uma parte desse dinheiro pode corresponder à devolução do dinheiro emprestado (será então uma amortização e diminuirá o valor da dívida do Estado) e outra parte pode corresponder ao pagamento de juros (que não altera o valor da dívida do Estado).

O montante do juro é calculado através da multiplicação do montante em dívida por uma taxa, a taxa de juro. A dívida pública global é constituída por muitos empréstimos, cada um com as suas condições de pagamento, os seus prazos e as suas taxas de juro. É possível calcular uma taxa de juro média para toda a dívida pública fazendo uma média de todas as taxas de juro de todos os empréstimos, ponderadas pelos respectivos valores em dívida.

As transacções financeiras do Estado envolvem então o dinheiro que é pedido emprestado (receitas) e o dinheiro que é devolvido e os juros (despesas). Como esses montantes também são registados no OE, o saldo final do OE é sempre nulo, isto é, o montante global das receitas do Estado é sempre igual ao montante das despesas. É importante lembrar que no OE não fica registado o valor da dívida global do Estado aos agentes privados internos (do interior de Portugal) ou externos.

Porém, se retirarmos aos valores do OE tudo o que diz respeito a estas transacções financeiras, ficamos com as despesas e receitas que o Estado efectivamente teria caso não houvesse esta coisa de pedir dinheiro emprestado. Ao saldo entre essas receitas e essas despesas dá-se o nome de saldo primário. Novamente este saldo primário pode ser deficitário ou superavitário, conforme as despesas sejam superiores às receitas ou vice-versa, respectivamente.

Um saldo primário deficitário significa que o Estado está a gastar mais do que as suas receitas normais (não financeiras, isto é, sem a obtenção de empréstimos) permitiriam e que, portanto, o Estado terá de pedir mais dinheiro emprestado. Ora, ao pedir mais dinheiro emprestado o Estado estará a aumentar a dívida. Resumindo, se o saldo primário é deficitário, a dívida pública terá de aumentar.

Um saldo primário superavitário, por outro lado, significa que o Estado está a gastar menos do que as suas receitas não financeiras permitiriam. Nesse caso o Estado poderia utilizar esse dinheiro que sobra para amortizar a sua dívida. No entanto, isso nem sempre é possível. A questão é que para além das despesas e receitas consideradas no saldo primário, o Estado ainda tem de pagar os juros pelos empréstimos obtidos.

Vamos então considerar que o défice orçamental de um determinado ano é dado pela subtracção do valor do saldo primário desse ano ao juro que o Estado tem de pagar esse ano. Ou seja, se o Estado tem a pagar 100 de juros e o saldo primário é de 40 (superavitário, isto é, as receitas são maiores que as despesas), então o défice orçamental é de 100-40 = 60. Ou seja, os 40 que sobraram ao Estado servem para pagar juros, mas ainda assim são precisos mais 60. A única forma que o Estado tem de pagar esses 60 que faltam é pedi-los emprestados.

Imaginemos agora que num determinado ano o Estado tem de pagar 100 de juros e o saldo primário é de 180 (também superavitário, isto é, as despesas são superiores às receitas). Nesse caso o défice orçamental do ano é de 100-180 = -80. O sinal negativo indica-nos que o valor corresponde a um défice negativo, isto é, um superavit. Ou seja, neste caso o dinheiro que sobrou ao Estado (180) foi suficiente para pagar os juros todos e ainda sobrou. O valor que sobra serve então para amortizar (isto é, diminuir) o valor da dívida pública global.

Portanto, o valor da dívida pública global de um determinado ano é igual ao valor que a dívida pública já tinha no ano anterior, acrescido do valor do défice verificado nas contas do ano anterior.

O que os Governos de Portugal foram fazendo nas últimas décadas foi acumulando défices uns atrás dos outros, que foram aumentando o valor da dívida pública ano após ano. Porquê?...

É sempre muito importante fazer as perguntas correctas. E a pergunta correcta neste caso não é a de querer saber porque os Governos foram fazendo isso, mas sim porque não?

Os elementos do Governo são quem detém o poder executivo do Estado. Eles têm, portanto, o poder de decidir quanto, onde, como e com quem gastar o dinheiro e qual dinheiro. Nesse processo, eles são fiscalizados pelos tribunais, que são quem detém o poder judicial. Mas o poder judicial só pode exigir que se façam cumprir as leis. E as leis são feitas pela Assembleia da República e pelo Governo, que partilham entre si o poder legislativo. Ora, como os Governos quase sempre conseguiram o apoio da maioria dos deputados na Assembleia da República, os Governos quase sempre conseguiram aprovar leis que fossem da sua conveniência. E os tribunais, o máximo que podem fazer é verificar se depois o Governo cumpre essas leis ou não.

Imaginemos que o Governo quer fazer um empreendimento turístico numa zona de paisagem protegida onde legalmente isso não é possível. Nesse caso, o Governo trata primeiro de alterar a lei, para criar uma excepção para aquele caso, e depois já pode fazer o empreendimento turístico sem que os tribunais o possam acusar de qualquer ilegalidade.

Na sua actuação o Governo também é fiscalizado pelas pessoas, isto é, por todos nós. Todos nós devemos exigir que a actividade do Governo seja transparente, ou seja, que a actividade possa ser verificada por qualquer pessoa, que os documentos respectivos sejam facilmente acessíveis. É claro que há sempre uma forma ou outra de os elementos do Governo conseguirem evitar esta fiscalização. No entanto, se as pessoas todas estiverem atentas, e elas são sempre em número muito maior do que o número de pessoas que está no Governo, torna-se muito mais difícil ao Governo fazer grandes vigarices durante muito tempo.

Todavia, os défices públicos que se verificaram ano após ano ao longo das últimas décadas foram uma grande vigarice que foi levada a cabo durante muito tempo. Como é que as pessoas não fiscalizaram isso? Bom, porque as pessoas andaram a dormir. Andaram, e ainda andam... Embora agora o barco da nossa economia navega num mar tão agitado que alguns já começam a acordar, mesmo que contra a sua própria vontade.

E enquanto as pessoas dormiam refasteladas os elementos dos sucessivos Governos foram fazendo vigarices. Porque não haviam eles de fazer essas vigarices? Vejamos. Imaginemos que existem pessoas que têm muito dinheiro. As pessoas que têm muito dinheiro costumam ter vontade de querer ter ainda mais dinheiro. As que têm pouco dinheiro também querem ter mais dinheiro, só que não têm tanto poder como as que têm muito. Uma das coisas que é necessário para poder fazer mais dinheiro é ter leis convenientes. Imaginemos que eu quero fazer muito dinheiro emprestando o dinheiro que já tenho aos outros e cobrando juros sobre esses empréstimos. Se o Estado cobrar um imposto muito grande sobre os juros eu vou ter mais dificuldades em fazer dinheiro. Imaginemos que eu quero fazer uma fábrica de automóveis que venda bom e barato. Para isso vou precisar de contratar muitos trabalhadores. Se o Estado fixar um salário mínimo muito elevado eu vou ter de pagar muito aos trabalhadores e vai-se tornar mais difícil fazer muito dinheiro.

Portanto, é importante para quem tem muito dinheiro e quer fazer ainda mais, que o Governo e a Assembleia da República aprovem leis que lhes sejam favoráveis. Assim, quem tem muito dinheiro apoia determinadas pessoas (normalmente organizadas em partidos) para elas irem para o Governo e para a Assembleia da República. Esse apoio pode ser feito de muitas formas: através de dinheiro, através de promessas de emprego depois das pessoas saírem do Governo, etc. Quando essas pessoas chegam então ao Governo, elas têm todo o interesse em proteger os interesses das pessoas ricas que os apoiaram. Já vimos que uma das formas de fazerem isso é aprovarem leis que sejam favoráveis às pessoas ricas. Normalmente quem está no Governo não diz que essas leis são boas para as pessoas ricas, senão as pessoas que não são ricas, que ainda são a maioria delas, iam ficar zangadas. Em vez disso o Governo diz sempre que essas leis são boas para a economia. Assim as pessoas entendem que são boas para toda a gente...

Mas há muitas outras formas de o Governo apoiar os interesses de quem o apoia. Uma dessas formas é gastando dinheiro.

Imaginemos agora o seguinte cenário. Um político do Governo decide fazer uma série de grandes estádios de futebol. Para isso irá contratar, através de um concurso público desenhado de tal forma que só possa ter um resultado, uma empresa de uma pessoa com dinheiro que o apoiou no passado ou que o poderá vir a apoiar no futuro (por exemplo quando ele sair do Governo). Assim, o Governo desvia dinheiros públicos para uma empresa de um amigo. No final o público, que somos todos nós, cidadãos a dormir que não fiscalizam a actividade do Governo, só vê os estádios de futebol e fica felicíssimo, porque futebol é uma coisa de que muita gente gosta.

Mas, para realizar essas obras, o Governo precisa dos tais dinheiros públicos. Ele poderia cobrar mais impostos e assim obter as receitas extraordinárias que iriam cobrir as despesas extraordinárias. Mas mais impostos iriam deixar as pessoas, ricas ou pobres, mais insatisfeitas. Em vez disso o Governo decide pedir dinheiro emprestado. Isso é muito bom, por vários motivos. Primeiro, isso é o mesmo que cobrar mais impostos no futuro que há-de vir, porque é nesse futuro que há-de vir que o empréstimo terá de ser devolvido. Segundo, quando chegar a altura de pagar, ou o político que agora está no Governo já estará na presidência de uma grande empresa a gozar os benefícios de ter ajudado os ricos, ou então as pessoas já se terão esquecido que ele é que pediu aquele dinheiro emprestado. Terceiro, o Governo poderá pedir dinheiro emprestado a um banco de um amigo seu. Assim, todo o dinheiro que o Estado terá de pagar no futuro em juros (através dos impostos que todos pagamos) será dinheiro que aumentará a riqueza do amigo do banco. E é claro que se o amigo do banco fica com essa vantagem, o político do Governo poderá de antemão negociar quais serão as vantagens para si próprio.

Se a população, que somos todos nós, está a dormir, porque é que os Governos que se sucedem uns aos outros, mas sempre com os mesmos políticos, desde há décadas em Portugal, não hão-de fazer coisas deste género?... É claro que fazem! Fizeram e fazem!

E o resultado está à vista. Temos actualmente uma dívida pública que se estima em cerca de 120% o valor do PIB. Mas lembremo-nos: não são apenas os elementos do Governo que são os culpados. Também os donos das empresas que forneceram o Estado e a cujas mãos o dinheiro foi parar são culpados. E também os donos do bancos e outras instituições a quem o Estado pediu dinheiro emprestado são culpados. E, finalmente, também nós que deixámos que isto tudo acontecesse nas nossas barbas somos culpados. Somos todos cúmplices, embora uns ganhem com isto tudo muito mais do que outros.

Resta dizer que enquanto nós dormíamos, os Governos não só gastaram o dinheiro público deste modo, aumentando cada vez mais a dívida pública, como também aprovaram leis que nos integraram num sistema monetário e financeiro que nos retira todo o poder e o põe nas mãos de empresas financeiras e outras que ninguém sabe quem são. Hoje, o poder está menos nas instituições eleitas por nós do que nas pessoas e instituições que têm muito dinheiro. São os “credores”, os “mercados”, as “agências de notação”, o “FMI” e outras instituições do género que controlam o que podemos e não podemos fazer. A este sistema não se chama democracia, mas sim plutocracia.

 


Notas:

1 Para informações mais detalhadas procurar por exemplo aqui: http://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/Paginas/default.aspx.

 
 

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A dívida para totós...
 

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