Estado de necessidade
O estado de necessidade faz parte do arsenal jurídico internacional. Prevê o incumprimento de uma obrigação, a fim de evitar um dano ainda maior.
Em direito internacional o bem-estar da população e os seus direitos fundamentais são uma das funções obrigatórias natureza do Estado. (Se assim não fosse, as ditaduras, oligarquias, etc., seriam legítimas e aceites pela comunidade internacional.)
Em certas circunstâncias, pode acontecer que, para honrar os seus compromissos com os credores (internos ou externos), um Estado teria de deitar a perder os interesses fundamentais da população (tal como são definidos pela constituição interna, pelas leis internacionais e pelas Cartas Internacionais dos direitos humanos, políticos, culturais e económicos). Nesse caso, se o Estado der prioridade aos interesses dos credores, estará a causar um dano maior, visto que os interesses da esmagadora maioria da população pesam mais do que os de um conjunto de credores.
Frequentemente o pagamento indefinido da dívida externa e respectivos juros provoca crises sociais e políticas no interior dos Estados. Uma vez que o interesse primordial do Estado são as populações, se o mesmo Estado der prioridade aos credores, que são uma minoria privilegiada, a sua legitimidade e razão de existir podem ser justamente postas em causa.
Em suma: sempre que a salvaguarda de interesses essenciais da população está em perigo, o Estado pode declarar unilateralmente o estado de necessidade, dando prioridade aos interesses da população e suspendendo ou anulando o serviço da dívida.
Diferenças relativamente ao caso de força maior
No caso de força maior, o impedimento de continuar a reembolsar a dívida é inelutável; o Estado, mesmo que quisesse cumprir, não poderia fazê-lo (devido, por exemplo, a uma crise económica muito grave, um cataclismo, etc.).
Mas no caso do estado de necessidade o impedimento não é absoluto. O Estado pode optar – simplesmente não deve continuar a reembolsar a dívida, sob pena de esvaziar a sua legitimidade e razão de ser. Trata-se portanto de uma decisão unilateral por razões ponderosas. Estas razões são de natureza social, política, cultural e económica e tem a ver com interesses fundamentais da maioria da população.
Alguns aspectos de definição e âmbito
O estado de necessidade é uma situação em que existe «perigo para a existência do Estado, para a sua sobrevivência política ou económica» [Visscher Ch., Théorie et réalités du droit international, Pedone, Paris, 1970, p.339, 3eme édition].
Não há nada de subjectivo ou controverso na avaliação do argumento do estado de necessidade. Quando o FMI ou o Banco Mundial fazem acordos que implicam um prejuízo grave para a educação, a saúde, a segurança, a justiça, o desenvolvimento económico ou cultural de uma população, estão a pôr em perigo a existência do Estado, por definição.
Se os planos políticos impostos pelos credores visam apenas garantir que o Estado continue a pagar a dívida e respectivos juros, sem ter em conta as consequências sociais e económicas, lesam deveres essenciais do Estado para com as suas populações, justificando assim a declaração unilateral de estado de necessidade. Aliás, em muitos destes casos as entidades credoras não podem invocar desconhecimento das consequências do que pretendem impor, o que permite acrescentar aos argumentos de estado de necessidade o crime de dolo praticado por essas entidades.
Quando um Estado declara unilateralmente o estado de necessidade e suspende o reembolso duma dívida, coloca-se a questão de saber se essa suspensão é transitória, por tempo indeterminado ou definitiva (anulação). Tudo depende das circunstâncias – encontramos antecedentes históricos para todos os gostos.
Antecedentes históricos
Os exemplos históricos neste domínio abundam. Vejamos alguns, a título de exemplo:
1. Portugal vs. Inglaterra, 1832 – o Estado português apreendeu os bens ingleses em território nacional. A Inglaterra arguiu com os tratados de protecção mútua; as autoridades portuguesas responderam com a necessidade imperativa angariar meios para pôr termo a uma grave crise social e económica e mantiveram a desapropriação unilateral dos bens ingleses.
2. África do Sul, [data?] – o governo sul-africano declarou que, se um Estado não pode cumprir todos os seus compromissos e obrigações, encontra-se em estado de necessidade; «deve nesse caso estabelecer uma ordem de prioridades quanto às suas obrigações e responder em primeiro lugar às mais vitais». No seguimento desta declaração, a Comissão do Direito Internacional da ONU (CDI) concluiu que
«Não se pode pedir a um Estado que encerre as suas escolas, universidades e tribunais, que abandone os serviços públicos ao ponto de deixar a sua comunidade entregue ao caos e à anarquia, simplesmente para poder dispor de dinheiro para reembolsar os seus credores estrangeiros ou nacionais.
Tal como no caso dos indivíduos, há limites para o que se pode razoavelmente esperar de um Estado (...)» [ACDI, 1980, p. 164-167]
3. Société Commerciale de Belgique vs. Grécia, 1938 – o governo grego declarou:
«é evidente que nestas circunstâncias é impossível ao Governo grego efectuar os pagamentos e transferências de divisas (...) sem comprometer a existência económica do país e o funcionamento normal dos serviços públicos.» [TPJI, Tese do governo grego, 13 de Dezembro de 1938, TPJI, série C, no. 87, p. 236. O Governo belga admitiu que «… um Estado não é obrigado a pagar uma dívida se ao fazê-lo comprometer os seus serviços públicos (…)». Ibid, p. 236.]
Resta recordar que o estado de necessidade pode ser efectivamente provocado pelas instituições financeiras internacionais [Ripaghen W, ATDI, 1980, p.152].
Fontes e referências
CADTM, Diaz Hugo Ruiz, publicado pela ATTAC-France em 18-01-2008.
Documentação da International Law Commission, das Nações Unidas:
Addendum - Eighth report on State responsibility by Mr. Roberto Ago, Special Rapporteur – the internationally wrongful act of the State, source of international responsibility (part 1).
Vários documentos da ONU e dos tribunais internacionais, alguns dos quais se encontram reproduzidos neste site.
Índice deste caderno
Bases de direitovisitas (todas as línguas): 5.229