Da expropriação por dívidas não pagas, à dívida hipotecária e estudantil: a dívida privada na era capitalista
O endividamento das classes populares e a repressão do não pagamento das dívidas como fonte de acumulação primitiva do capitalismo
Na Europa, do século XVI ao XVIII, o endividamento privado das classes populares e a repressão do não pagamento de dívidas contribuíram para constituir uma massa de proletários: a prisão, a mutilação e a criação de cárceres contribuíram para forçar as populações empobrecidas a aceitar o trabalho nas fábricas. Tudo isso faz parte integrante do processo de acumulação primitiva que permitiu ao capitalismo impor-se como modo de produção dominante, primeiro na Europa, depois no resto do mundo (ver quadro «A acumulação primitiva por expropriação»). Grande parte da massa de proletários que afluíram às cidades, onde as fábricas começavam a se desenvolver, era constituída por populações rurais sobreendividadas que tinham sido expropriadas das suas terras pelos credores.
O não pagamento das dívidas foi violentamente reprimido até meados do século XIX nos países que estiveram no centro do desenvolvimento do sistema capitalista industrial: a Europa Ocidental e a América do Norte.
Havia pesadas penas de prisão para castigar os pobres que não tinham pago as suas dívidas. A pena capital era frequentemente aplicada em Inglaterra até ao século XVIII. Nos EUA, no estado da Pensilvânia, em finais do século XVIII, os maus pagadores podiam ser condenados ao chicote, ser pregados ao pelourinho por uma orelha, antes de lha cortarem. Arriscavam-se também a ser marcados a ferro em brasa. Em França aplicava-se sistematicamente penas de prisão; além, claro está, da expulsão do alojamento e da apreensão de todos os bens.
A acumulação primitiva por expropriaçãoKarl Marx destaca como fontes, por vezes violentas, da acumulação primitiva que permitiram ao capitalismo tornar-se preponderante sobre outros modos de produção: a separação radical entre o produtor e os meios de produção, a supressão dos bens comunais, o levantamento de muros nos terrenos agrícolas, a expropriação dos instrumentos de trabalho dos artesãos, a repressão sanguinária contra os expropriados (que tudo tinham perdido por causa de dívidas que não conseguiam reembolsar), a conquista colonial e a retalhação dos continentes conquistados pelas potências europeias, o comércio de escravos, o sistema da dívida pública1. Silvia Federici acrescenta a caça às bruxas, esse vasto movimento de repressão sangrenta das mulheres que vai de finais do século XV a meados do século XVII. Ernest Mandel resume a posição de Marx e sublinha que «Se pode mesmo afirmar que Marx subestimou a importância da pilhagem do Terceiro Mundo na acumulação do capital industrial na Europa Ocidental»2. Rosa Luxemburgo, em 1913, em A Acumulação do Capital, analisa também o processo de acumulação original e o seu prolongamento na era imperialista de finais do século XIX.3 |
Alguns exemplos de expropriação e de resistência, do século XVIII ao XIX
Nos EUA, pouco depois da independência, nasceram vários movimentos de protesto dos camponeses cujas terras e bens tinham sido confiscados por não pagamento de impostos e taxas. Estes pagamentos eram cobrados em numerário, mas muitos camponeses não tinham dinheiro, ou tinham muito pouco, pois vivam de trocas e pagamentos em espécie. Muitos agricultores tinham servido nos exércitos revolucionários sem nunca terem recebido o soldo por inteiro. No Massachusetts, em 1782 em Groton e em 1873 em Uxbridge, os cidadãos organizaram-se e atacaram as autoridades, exigindo a devolução dos bens confiscados. No início da Rebelião de Shays, em 1786, as multidões impediram os tribunais de se estabelecerem em Northampton e em Worcester, depois de o governador Bowdoin ter metido processos judiciais destinados a cobrar dívidas e de a legislatura ter imposto uma taxa suplementar destinada a financiar o pagamento da parte que cabia ao Massachusetts na dívida externa dos EUA. Daniel Shays, que deu nome ao movimento, era um antigo combatente que não foi pago. Teve de comparecer em tribunal por faltar ao pagamento dos impostos.
A partir de 1798 organizou-se um movimento de autodefesa dos endividados que exigia a aprovação de uma legislação que os protegesse do arbítrio dos credores e da justiça. Foi aprovada uma lei federal em 1800, mas esta lei limitava-se a proteger os banqueiros e os comerciantes que falhassem o pagamento. Entretanto os outros estados continuaram a recorrer às suas próprias leis, que na maior parte dos casos favoreciam os credores.
Scott Standage4 cita um livro de 1828, The Patriot; or, People’s Companion, que advogava a abolição do encarceramento dos devedores, opinando que a dívida constituía uma forma de «escravatura civil» equivalente à escravatura dos Negros – os devedores, tal como os escravos, não beneficiavam de nenhuma protecção na Constituição.
A tentativa de escapar aos credores era uma das causas da corrente migratória do Leste dos EUA para o Oeste, o Far West. Grande parte dos europeus que participaram na colonização do Novo Mundo nos séculos XVII e XVIII tinha-se endividado para pagar a viagem e encontrava-se numa situação de servidão em relação aos seus credores. Durante muitos anos viam-se obrigados a reembolsar a dívida inicial e estavam sob a ameaça de prisão ou mutilação em caso de incumprimento. Calcula-se que entre metade e dois terços dos europeus que se instalaram nas 13 colónias britânicas da América do Norte entre 1630 e 1776 estavam em situação de servidão por causa de dívidas.5 Este tipo de servidão por dívida só em 1917 foi abolido nos EUA.
O mesmo tipo de contrato de endividamento para financiar a colonização foi aplicado no conjunto do Império Britânico. Milhões de pobres abandonaram a Índia nessas condições, para se instalarem nas Caraíbas britânicas, na ilha Maurícia, na África do Sul e noutras parte do Império. Só na ilha Maurícia, entre 1834 e 1917, perto de um milhão e meio de indianos instalou-se aí, mas viu-se obrigado pela miséria a aceitar contratos de servidão por dívida6.
Em 1875, na Índia, numa vasta região chamada Decão [en: Deccan], estalaram revoltas nas quais os camponeses endividados se levantaram para destruir sistematicamente os livros de contas dos usurários e assim repudiarem as dívidas7. A revolta durou dois meses e envolveu uma trintena de aldeias, num raio de 6500 km2. Foi criada em Londres uma comissão de inquérito parlamentar e em 1879 foi aprovada uma lei intitulada «Dekkhan Agriculturists’ Relief Act»8 que oferecia alguma protecção aos camponeses endividados.
Em 1880 os pequenos e médios agricultores dos EUA foram atingidos por uma crise da dívida. O mesmo voltou a acontecer em escala massiva na década de 1930, como descreve John Steinbeck no seu célebre romance As Vinhas da Ira, publicado em 1939. Estas crises sucessivas provocaram a expropriação de milhões de agricultores americanos endividados, em benefício das grandes empresas privadas do agronegócio.
Do truck system do século XIX ao crédito ao consumo do século XX
No século XIX, com a generalização da revolução industrial e a expansão do capitalismo, os patrões puseram em prática o truck system, que endividava permanentemente os assalariados: os trabalhadores, enquanto aguardavam o pagamento do salário, tinham de comprar na loja do patrão todos os bens essenciais de que necessitavam para sobreviverem – alimentos, meios de aquecimento, de iluminação, vestuário, etc. Eram-lhes cobrados preços exorbitantes e no momento de receberem, depois de descontadas as compras que tinham feito, era frequente terem de reconhecer uma dívida, pois as despesas excediam o salário. Para resolverem esta situação, os trabalhadores tiveram de travar duras lutas. É também uma das razões que levaram os operários a criarem cooperativas para produzir alimentos (padarias, etc.) ou para vender a preços suportáveis os produtos de primeira necessidade.* Por fim, o truck system foi proibido.
Depois da Segunda Guerra Mundial, as décadas de 1950-60 foram marcadas, nos países mais industrializados (o mesmo se diga de vários países do Sul, como a Argentina, por exemplo), por um período de forte crescimento económico (os «trinta gloriosos») que permitiu aos trabalhadores obter, através das suas lutas, grandes avanços sociais: nítido aumento do poder de compra, consolidação do sistema de segurança social, melhoria dos serviços públicos, em particular na saúde e no ensino … Além disso o Estado efectuou um considerável número de nacionalizações, ganhando assim poder de intervenção económica. As populações tiraram proveito da riqueza criada à escala nacional; a parte dos salários na repartição do rendimento nacional aumentou.
A partir da ofensiva neoliberal iniciada no Chile em 1973 com a ditadura de Pinochet e na Argentina em 1976 com a ditadura de Videla (ditaduras que beneficiaram do apoio activo de Washington) e depois desenvolvida por Thatcher e Reagan durante os anos 1980, os salários reais encolheram. Nos países mais industrializados, o consumo de massa foi aumentando à custa do crescente endividamento da população9. Os governantes, os bancos e as grandes empresas privadas de indústria e comércio favoreceram o recurso cada vez mais massivo ao endividamento das famílias.
A prisão por dívidas relativas a multas não pagas ao Estado não desapareceu em toda a partePor estranho que possa parecer, o não pagamento de dívidas privadas, incluindo as quantias devidas ao Estado, ainda hoje é passível de prisão em vários países europeus, apesar de estar proibida em várias convenções internacionais10. Em França, a prisão por dívida foi abolida por dois breves períodos, em 1793 e em 1848. Foi definitivamente suprimida em matéria civil e comercial pela lei de 22 de julho de 1867. O Código de Processo Penal suprimiu-a em 1958 nos processos penais no que diz respeito às indemnizações concedidas à parte civil. Actualmente, a prisão por dívidas só se aplica a multas, custas judiciais e pagamentos ao Tesouro e, mesmo assim, apenas se a infracção for de direito comum e não implicar uma pena de prisão perpétua. Portanto em França a restrição judicial consiste em encarcerar ou deter uma pessoa solvente por falta de pagamento de determinadas multas impostas pelo Tesouro ou pelas autoridades aduaneiras11. Na Bélgica, a prisão (chamada prisão subsidiária) por não pagamento das multas continua a ser possível, apesar de há vinte anos sucessivos ministros da Justiça recomendarem a sua não aplicação. A resposta do ministro da Justiça belga à pergunta colocada por um deputado de extrema-direita (Vlaams Belang), numa época em que esse partido obteve mais de 20 % dos votos, foi a seguinte: «Se a coima não for paga no prazo de dois meses a contar da data da sentença ou acórdão condenatório, ou da sua notificação, se for proferida à revelia, pode ser substituída por pena de prisão por tempo determinado na sentença ou acórdão condenatório, que não pode exceder seis meses para os condenados por crime doloso, três meses para os condenados por contraordenação e três dias para os condenados por crime leve». «Se apenas tiver sido aplicada uma multa, a pena de prisão em caso de não pagamento é equiparada a uma pena de prisão correccional ou policial, consoante a natureza da condenação». O artigo 41 estipula: «Em todos os casos, o condenado pode livrar-se desta prisão mediante o pagamento da coima; não pode evitar a apreensão dos seus bens oferecendo-se para ser preso»12. Na prática, um juiz belga pode emitir uma sentença que preveja a prisão subsidiária (o que só acontece em processos penais). Nesse caso, o juiz prevê uma multa e indica que se a pessoa assim desejar, ou não tiver meios para tanto, poderá cumprir tempo de prisão. Evidentemente, o rico preferirá pagar a multa e evitar a prisão, ao passo que uma pessoa de baixos rendimentos e reduzido ou nulo património terá de ir para a prisão. Isto mostra que a justiça, na prática, é uma justiça de classe. O ministro especificou ainda: «Em 2000, das 22.632 condenações a uma multa em processos penais, o Ministério Público abriu 3745 processos relativos à execução de penas de prisão subsidiárias. Em 2001, das 21.375 condenações a uma multa, apenas 1745 processos relativos à execução de penas de prisão subsidiária foram abertos pelo Ministério Público». Ainda que, na prática, as penas de prisão nunca sejam aplicadas ou só raramente, o facto de certos países manterem essa possibilidade é inquietante. De facto, caso a extrema-direita consiga aceder ao governo e os métodos repressivos sejam reforçados de forma permanente, é possível virmos a assistir ao pronunciamento de penas de prisão por dívida, que obviamente recairão sobre as classes populares. Não faltam magistrados reaccionários no aparelho judicial, dispostos a tomarem iniciativas que reforçarão o carácter de classe na aplicação da lei. De forma genérica, Jami Hubbard Solli demonstrou que em mais de 20 países a lei autoriza os credores a pedirem a prisão dos devedores em caso de incumprimento dos pagamentos13. Por exemplo, no Quénia e no Uganda, esta legislação é aplicada a torto e a direito. De facto, várias centenas de pessoas incapazes de reembolsar as suas dívidas encontram-se encarceradas. [N. do T.: No Brasil, a Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente a prisão civil por dívida, com excepção da dívida de pensão alimentícia. O que pode acontecer em caso de não pagamento de outras dívidas é a inclusão do nome do devedor em cadastros de inadimplentes, como o Serasa e o SPC. Essa medida pode gerar restrições de crédito e dificuldades financeiras, mas não é motivo para prisão (ver https://mvmadvogados.com.br/posso-ser-preso-por-uma-divida-entenda-a-lei/). Em Portugal as várias formas de prisão como meio de coacção posto à disposição do credor (Ordenações Filipinas, livro IV, título 76) foram revogadas pela Lei de 20 de Junho de 1774. As motivações desta lei, dirigida apenas aos «devedores de boa fé», segundo um tribunal da época visavam «desterrar de todos os Juízos e Auditórios a barbaridade, com que trataram aos devedores as primeiras Leis Romanas, de que ainda são relíquias as prisões contra os devedores de boa fé, era violentíssimo este procedimento; pois não havendo Lei alguma Civil, ou Criminal, que o decrete sem culpa, nenhuma há nos devedores pobres, que se impossibilitaram para pagar, pelos adversos casos da fortuna: servindo nestes termos as prisões de cevarem o ódio e a vingança dos credores, e de oprimirem, contra todas as razões da humanidade, os miseráveis devedores, até darem a vida nos horrorosos cárceres, em que os têm detidos; (…) postos em liberdade os devedores, adquiririam meios, com que satisfizessem as suas dívidas, e até a República se serviria deles, empregando-os nos seus respectivos ministérios» (consultar Acórdão do Tribunal Constitucional, https://www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_busca_palavras.php?buscajur=calv%E3o&ficha=45&pagina=1&exacta=&nid=4179). No caso de dívidas ao Estado, pode ser aberto um processo de execução fiscal, do qual resultará a penhora dos bens do devedor, excepto quando este declare insolvência. Há no entanto bens impenhoráveis (os imprescindíveis à sobrevivência doméstica e ao exercício da profissão) e desde 2016 a morada de família do devedor não pode ser penhorada (ver https://www.advogadosinsolvencia.pt/mapa/dividas-as-financas).] |
Dívidas hipotecárias ilegítimas e despejos
Quando a bolha imobiliária estalou no Japão (anos 1990), nos EUA (2006-2007), na Irlanda e na Islândia (2008), em Espanha (2009), dezenas de milhões de famílias das classes populares viram-se na impossibilidade de continuarem a pagar e foram vítimas de despejos em massa14. Num contexto de diminuição do salário real, desemprego massivo e condições de empréstimo abusivas, os efeitos dessas dívidas são catastróficos para uma parte crescente dos sectores populares. Nos EUA, desde 2006, 14 milhões de famílias foram expropriadas dos seus alojamentos pelos bancos15. No caso da Espanha são mais de 300.000 famílias. Somos confrontados mais uma vez, na história dos países do Norte, com um fenómeno massivo de expropriações brutais. Nos EUA a justiça contabilizou para cima de 500.000 casos de contratos imobiliários abusivos e fraudulentos. Na Espanha, a legislação usada pelos banqueiros para expulsar as famílias dos seus alojamentos data da época do ditador Franco. Na Grécia, no âmbito do terceiro memorando, aceite pelo governo de Tsipras em 2015, os bancos passaram a ter a liberdade de despejar as famílias incapazes de pagar as suas dívidas hipotecárias16. Nos EUA, em Espanha, na Irlanda, na Islândia, na Grécia, etc., nasceu um novo tipo de movimento e de mobilizações, para resistir a esta política de expropriações/despejos.
Dívidas estudantis ilegítimas
Nos países anglo-saxões mais industrializados e no Japão a aplicação das políticas neoliberais no sistema de educação aumentaram dramaticamente o custo de frequência do ensino superior e restringiram consideravelmente o acesso a bolsas de estudo. O mesmo fenómeno afecta outros países, à escala mundial.
Isto obrigou dezenas de milhões de jovens das classes populares a endividarem-se em proporções dramáticas, a fim de frequentarem o ensino superior. Nos EUA a dívida estudantil ultrapassa os 1,7 biliões [pt-br: trilhões] de dólares, ou seja, o dobro da dívida pública total do conjunto dos países do continente africano, que tem mais de 1000 milhões de habitantes17 – um limiar simbólico, que exprime a gravidade da situação. Dois estudantes em cada três estão endividados e devem em média 37.667 dólares. Em 2008, 80 % dos estudantes que terminaram o doutoramento em direito tinham acumulado uma dívida de 77.000 dólares caso tivessem frequentado uma universidade privada, ou 50.000 numa escola pública. O endividamento médio dos estudantes que concluíram um ano de especialização em Medicina ascendia aos 140.000 dólares. Palavras de uma estudante que concluiu o doutoramento em direito, a um jornal italiano: «Acho que nunca vou conseguir reembolsar as dívidas que contraí para pagar os meus estudos; há dias em que penso que quando morrer, ainda hei-de ter mensalidades da dívida por pagar. Actualmente tenho um plano de reembolso escalonado em 27 anos e meio, mas é demasiado ambicioso, porque a taxa é variável e tenho grande dificuldade em pagar (…). O que me preocupa mais é que sou incapaz de poupar, e a minha dívida continua a assombrar-me»18.
Ao sofrerem importantes discriminações no acesso ao emprego, na distribuição dos salários e na repartição do trabalho doméstico não remunerado (no caso das mulheres), as mulheres e as pessoas racializadas são as principais afectadas por um sistema universitário baseado no endividamento19. Elas endividam-se pesadamente e levam muito mais tempo a reembolsar os empréstimos. Em 2019, 20 anos depois de terem iniciado os seus estudos, as pessoas negras endividadas ainda deviam 95 % da sua dívida estudantil. Os brancos na mesma situação já tinham reembolsado 94 % desse empréstimo20.
No Japão, um/uma estudante em cada dois está endividado. O endividamento médio dos estudantes equivale a 30.000 dólares. No Canadá a tendência é semelhante21. Ir para a universidade custa cada vez mais caro, enquanto no mercado de trabalho, desregulado e saturado, é cada vez mais difícil encontrar um emprego bem pago. Concluídos os seus estudos, os jovens endividados e respectivas famílias passam por dificuldades cada vez maiores para reembolsar as dívidas. Para as reembolsarem, são muitas vezes levados a aceitar empregos muito precários e condições de trabalho degradantes. Entretanto, os bancos fazem gordos lucros graças às dívidas estudantis. Tal como no caso das dívidas hipotecárias ilegítimas, estão a nascer novas formas de luta para combater as dívidas estudantis ilegítimas. Tal é o caso dos EUA, onde encontramos o movimento Strike Debt! Assistimos a tentativas de federar as diversas resistências contra a dívida: dívidas estudantis, dívidas hipotecárias, dívidas de consumo, dívidas ligadas aos impostos, não esquecendo a dívida pública22.
O sobreendividamento afecta e degrada as condições de vida de uma parte cada vez maior das camadas populares em todos os países mais industrializados. Na Bélgica, o número de pessoas em processos de regularização colectiva de dívidas mais do que duplicou entre 2007 e 2017.
As mulheres chefes de família monoparental são por toda a parte duramente afectadas pelo endividamento. Os sofrimentos resultantes das humilhações a que estão sujeitas as pessoas sobreendividadas não param de aumentar. As intrusões praticadas pelas autoridades na vida privada e domiciliar dos/das sobreendividados multiplicam-se e agravam-se. Dada a precarização do trabalho e os salários miseráveis pagos em empregos a tempo parcial ou completo, cada vez mais assalariados e assalariadas são vítimas do sistema da dívida.
A fábrica de endividados
Nas últimas décadas, a política de destruição das conquistas sociais levada a cabo por sucessivos governos e pela classe capitalista tem atacado a estabilidade dos contratos de trabalho, sejam eles individuais ou colectivos. Os direitos elementares dos/das trabalhadores e dos beneficiários da segurança social são apresentados como privilégios e obstáculos à competitividade e à flexibilidade. É levada a cabo uma campanha sistemática a favor do autoemprego, fazendo crer numa perspectiva de libertação. Cada vez mais pessoas são levadas a endividar-se para se autoempregarem, para criarem a sua microempresa, para se tornarem elas próprias numa empresa, para explorarem elas próprias o seu «capital humano». Como diz Maurizio Lazzaretto no seu livro La Fabrique de l’homme endetté [A Fábrica de Endividados], «Na economia da dívida, tornar-se capital humano ou ser empreendedor de si mesmo significa assumir os custos e os riscos de uma empresa flexível e financiarizada, custos e riscos esses que não são apenas, longe disso, os da inovação, mas também e sobretudo os da precariedade, da pobreza, do desemprego, dos serviços de saúde deficientes, da penúria de habitações, etc.»23. Aumenta o número de pessoas que, tendo tentado o autoemprego, caíram no sobreendividamento e perderam o pouco que possuíam. Mais adiante, escreve Lazzarato: «O processo estratégico do programa neoliberal, no que diz respeito ao estado-providência, consiste numa progressiva transformação dos “direitos sociais” em “dívidas sociais” que as políticas neoliberais tendem a transformar em dívidas privadas, paralelamente à transformação dos que “têm direitos” em “devedores” aos fundos de desemprego (no caso dos desempregados) e ao Estado (no caso dos beneficiários dos subsídios de mínimos sociais)»24. Enquanto as políticas dos governos neoliberais levam ao empobrecimento dos assalariados (congelamento ou redução dos salários, precarização, etc.) e de outros detentores de direitos sociais (congelamento ou redução das reformas, redução ou supressão das ajudas sociais, degradação ou extinção de certos serviços públicos, diminuição ou supressão do subsídio de desemprego, redução ou supressão das bolsas para estudantes, etc.), «a finança faz de conta que os enriquece através do crédito e da venda de acções. Nada de aumentar o salário directo ou indirecto (pensões de reforma), mas crédito ao consumo e incitamento à renda bolsista (fundos de pensão, seguros privados); nada de direito à habitação, mas crédito imobiliário; nada de direito à escolarização, mas empréstimos para pagar os estudos; nada de mutualização contra riscos (desemprego, saúde, reforma, etc.), mas investimento nos seguros pessoais»25.
Entre os/as refugiados que chegam à Europa depois de ultrapassarem os piores obstáculos, muitos são os que se endividaram para poderem lançar-se na grande viagem para uma terra de asilo. São levados a aceitar as piores condições de trabalho, a fim de reembolsarem as suas dívidas, sabendo que uma parte da sua família, que ficou no país de origem, está sujeita à pressão dos credores. Das mulheres imigradas que são empurradas para a prostituição, muitas fazem-no para reembolsarem uma dívida ilegítima.
Desde que estalou a crise nos países mais industrializados, em 2007, assistimos a um novo endurecimento do «sistema da dívida», na sua faceta da dívida privada: dívidas hipotecárias abusivas, dívidas estudantis ilegítimas, dívidas de consumo alienantes e empobrecedoras. Tudo isto a par da acção dos governos que recorrem ao aumento da dívida pública, que alimentam para reforçar a ofensiva contra as conquistas sociais do século XX.
É preciso apoiar as iniciativas que abraçam a luta contra as dívidas privadas ilegítimas
Como é que se pode esperar que pessoas humilhadas por estarem sobreendividadas, abusadas pelos bancos, expulsas das suas casas e que, apesar disso, ainda devem uma parte da dívida, se mobilizem em conjunto para deixar de pagar a dívida pública do Estado ou para uma acção colectiva sobre os direitos dos trabalhadores? Se foram derrotados na sua luta pessoal por não haver um movimento de resistência suficientemente forte para impedir os despejos, para sair de outras formas de sobreendividamento, podem não encontrar forças para continuar a lutar, podem considerar que a questão da dívida pública ilegítima não lhes diz respeito, e o mesmo se aplica às lutas colectivas pelos direitos sociais. É preciso apoiar as iniciativas que abraçam a luta contra as dívidas privadas ilegítimas.
Notas
[1] Ver o Volume 1 de O Capital, Parte VIII: «A Chamada Acumulação Original» (transcrição de ed. Centelha, Coimbra, 1974, com tradução de J. Teixeira Martins e Vital Moreira).
[2] «Accumulation primitive et industrialisation du tiers-monde», in Victor Fay (ed.) partindo de O Capital, Paris: Anthropos, pp. 143–168.
[3] Rosa Luxemburgo, A Acumulação do Capital, disponível em formato pdf em https://www.trama.ufscar.br/wp-content/uploads/2013/10/A-Acumula%C3%A7%C3%A3o-do-Capital.pdf. Ver também David Harvey (2010), Le Nouvel impérialisme, Paris, Les Prairies ordinaires; bem como Jean Batou, Accumulation par dépossession et luttes anticapitalistes: une perspective historique longue – CONTRETEMPS, https://www.contretemps.eu/accumulation-par-depossession-et-luttes-anticapitalistes-une-perspective-historique-longue/
[4] Standage, Scott, Born Losers: A History of Failure in America, Harvard University Press, 2005.
[5] Galenson, David (March 1984). «The Rise and Fall of Indentured Servitude in the Americas: An Economic Analysis». The Journal of Economic History. 44 (1): 1–26.
[6] https://www.sscnet.ucla.edu/southasia/Diaspora/freed.html
[7] Ver David Graeber. Ver também Peasant movements and tribal uprisings in the 18th and 19th centuries: Deccan Uprising (1875) – HISTORY AND GENERAL STUDIES.
[8] Ver o texto da lei Dekkhan Agriculturists’ Relief Act, 1879, https://indiankanoon.org/doc/1545750/.
[* O mesmo sistema era praticado pelos latifundiários portugueses nalgumas regiões, ainda no século XX. Todos os dias os trabalhadores abichavam à porta do latifundiário, para serem escolhidos (ou não) nesse dia, mas antes de irem trabalhar para os campos, forneciam-se na loja do patrão. Era frequente chegarem ao fim da jorna com saldo negativo. [N. do T.]
[9] Ver Éric Toussaint, «A Grande Transformação, dos Anos Oitenta Até a Crise Atual», 8/09/2009.
[10] De resto a prisão por dívidas é proibida no artigo 1.º do protocolo nº 4 da Convenção de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, onde se reconhece que certos direitos e liberdades, além dos que já figuram na Convenção e no primeiro protocolo adicional à Convenção, emendado pelo protocolo nº 11. Cf.: http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_FRA.pdf
[11] Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/Contrainte_judiciaire e http://www.farapej.fr/Documents/Fiches/04.pdf
[12] Bulletin n° : B123 - Question et réponse écrite n° : 0599 - Législature : 50, Date de publication: 04/06/2002. https://www.lachambre.be/kvvcr/showpage.cfm?section=qrva&language=fr&cfm=qrvaXml.cfm?legislat=50&dossierID=50-b160-17-0599-2001200201008.xml
[13] Jami Hubbard Solli, «Heavily indepted Humans Deserve Debt Relief (Just as Nations do)», CADTM, 04/10/2022, https://www.cadtm.org/Heavily-indebted-Humans-Deserve-Debt-Relief-Just-as-Nations-Do
[14] Éric Toussaint, «2007-2017: Les causes d’une crise financière qui a déjà 10 ans», http://www.cadtm.org/2007-2017-Les-causes-d-une-crise
[15] Éric Toussaint, «Estados Unidos: Os Abusos dos Bancos no Setor Imobiliário e as Ações de Despejo Ilegais», 4/04/2009. ver ainda Éric Toussaint, «Os Bancos e a Nova Doutrina “Too Big to Jail”».
[16] Ver Eva Betavatzi & Filippos Filippides, «“The Greek government and banks try to take away our homes every Wednesday at civil tribunals”», 15/12/2017.
[17] Consultar o site do Banco Mundial, http://datatopics.worldbank.org/debt/ids/region/SSA.
[18] La Repubblica, 4/08/2008, citado por Maurizio Lazzarato, La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, Éd. Amsterdam, 2011, p. 28.
[19] Ver Maxime Perriot, «L’annulation de la dette étudiante par Joe Biden, un pansement nécessaire mais largement insuffisant», CADTM, 12/10/2022, https://www.cadtm.org/L-annulation-d-une-partie-de-la-dette-etudiante-par-Joe-Biden-un-pansement.
[20] Taylor Nicole Rogers, Gary Silverman, «Race and Finance: The Student Loan Trap», Financial Times, 21/12/2021, https://www.ft.com/content/51ece9ca-750b-49ef-aacb-834b8e691eea. Estudo sobre os empréstimos a 25 anos feito pelo Federal Reserve Bank of St Louis, publicado em 2017.
[21] Lutas & dívidas estudantis no Quebec: «Tant qu’on n’aura pas renversé le capitalisme, on ne pourra pas sauver l’éducation» (entrevista com Éric Martin, realizada por Maud Bailly).
Ver também Isabelle Ducas, «L’endettement étudiant, un lourd fardeau».
Ver o sítio oficial do Governo canadiano: «Rembourser votre dette d’étudiant».
[22] Ver Strike Debt!, The Debt Resisters’ Operations Manual e em particular o que diz respeito às dívidas estudantis, http://strikedebt.org/drom/chapter-four/.
[23] Maurizio Lazzarato, La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, ed. Amsterdam, 2011, p. 42.
[24] Maurizio Lazzarato, ibid., p. 81.
[25] Maurizio Lazzarato, ibid., p. 85.
Fontes e referências
Fonte: CADTM, «Des dépossessions pour dettes non payées aux dettes hypothécaires et étudiantes : la dette privée durant l’ère capitaliste», 19/10/2022.
Tradução de Rui Viana Pereira.
Índice deste caderno
Anulações da dívida privada ao longo de 5000 anosvisitas (todas as línguas): 9