O papel e o significado da dívida pública na reprodução do capital
O crédito público torna-se o credo do capital. E com o surgimento do endividamento do Estado, o lugar do pecado contra o Espírito Santo, para o qual não há perdão, é ocupado pela falta de fé na dívida do Estado. (MARX, Karl).
Todos os modernos Estados capitalistas gastam mais do que recebem. Eis a origem da dívida pública a longo prazo para a qual os bancos e estabelecimentos financeiros adiantam dinheiro a juros elevados. Aqui está uma conexão direta e imediata, um laço diário, entre o Estado e a alta finança. (MANDEL, Ernest).
1. Introdução [1]
A dívida pública interna[2] surge originalmente dos déficits orçamentários dos governos. Sempre que as despesas do tesouro são maiores do que os gastos públicos, a diferença tem que ser financiada através de nova dívida, de saldos orçamentários anteriores, do aumento dos impostos ou da emissão de moeda. Por outro lado, os Estados podem também contrair uma dívida externa, nos bancos estrangeiros, nos organismos financeiros multilaterais, com outros Estados e no mercado financeiro internacional.
Internamente, a dívida pode ser dividida em duas categorias principais: a dívida contratual e a dívida mobiliária. A dívida contratual é contraída no sistema bancário através de empréstimos de curto prazo, normalmente é utilizada para cobrir as diferenças de fluxos de caixa e são garantidas com as receitas futuras. Essa forma de dívida costuma ter um peso pouco significativo na dívida total. A dívida mobiliária é a dívida em títulos – letras ou bônus – do tesouro ou do Banco Central. A teoria econômica convencional ortodoxa costuma distingui-las da seguinte forma: a dívida em títulos do Tesouro serve para financiar os seus déficits e a do Banco Central é utilizada como instrumento de política monetária. Essa distinção, atualmente, não tem mais sentido em um país que tenha um sistema de crédito relativamente desenvolvido e cujo Banco Central tenha adotado as políticas e instituições segundo as normas do FMI – Fundo Monetário Internacional. No caso do Brasil, com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma lei elaborada para controle dos gastos públicos, toda a dívida mobiliária interna passou a ser emitida pelo Tesouro Nacional, o Banco Central não pode mais emitir títulos de dívida. Atualmente, o mercado financeiro ainda mantém uma pequena parcela dos títulos do Banco Central que ainda não venceram e todas as operações no mercado aberto (open market) são realizadas com os títulos do tesouro.
A partir do início dos anos 70, com o início do período neoliberal, e principalmente após a crise da dívida dos anos 80 [3] nos países subdesenvolvidos, a dívida externa entrelaça-se com a interna de maneira cada vez mais forte, convertendo-se continuamente uma na outra. A abertura e a desregulamentação dos fluxos de capitais permitem, igualmente, que os especuladores internacionais apliquem diretamente comprando títulos da dívida interna. Assim, não é mais possível tratar da dívida pública interna de muitos países sem considerar a importância e o papel da dívida externa, seja pública ou privada [4]. Apresentaremos no próximo item uma discussão sobre os principais aspectos teóricos da dívida, partindo da concepção marxista para discutir as posições dos neoclássicos e keynesianos. Em seguida, no item três, trataremos dos mecanismos de política monetária através dos quais o Banco Central e o Tesouro convertem déficit em dívida, dívida externa em dívida interna, e dívida em nova dívida. Na seção quatro, trataremos das formas de remuneração da dívida em parte através da redistribuição da mais-valia e em parte através do que chamamos de lucro fictício. Enfim, discutiremos a importância e o papel dos credores dessa dívida, o sistema bancário e os investidores institucionais, como fundos de investimentos e fundos de pensão, e como eles intensificam instabilidade e a volatilidade dos mercados financeiros. Concluímos retomando a questão da superacumulação do capital, como capital monetário, e a sua transformação em capital fictício.
2. A dívida pública: explicações e teorias.
Para Marx, a dívida pública [5] surge na gênese do próprio modo de produção capitalista como um dos mecanismos da acumulação primitiva e como uma alavanca para a acumulação de capital.
A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acumulação primitiva. Tal como o toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de força criadora e o transforma, desse modo, em capital, sem que tenha necessidade para tanto de se expor ao esforço e perigo inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na realidade, não dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro sonante. Porém, abstraindo a classe de rentistas ociosos assim criada e a riqueza improvisada dos financistas que atuam como intermediários entre o governo e a nação [...] a dívida do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio com títulos negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em uma palavra: o jogo da Bolsa e a moderna bancocracia [6].
Esta passagem já contém os principais elementos que explicam a conversão do dinheiro em capital monetário, o desenvolvimento do sistema de crédito e de uma camada de rentistas parasitários.
O dinheiro, enquanto dinheiro, não rende nada, ele não se multiplica e nem se reproduz [7]. Para os capitalistas em geral e para o sistema bancário em particular, toda a massa de moeda na forma de reservas bancárias – compulsórias ou voluntárias – representa uma massa de riqueza estéril que é mantida em depósito no Banco Central. Uma parte delas, as reservas compulsórias, é utilizada para regular o conhecido multiplicador monetário que determina o montante de moeda privada criada pelos bancos comerciais. Alguns países, como a Austrália e Grã-Bretanha, que avançaram mais decididamente em suas políticas neoliberais já suprimiram esse tipo de reserva, permitindo a criação secundária de moeda, sem limites. A outra parte, as voluntárias, é mantida pelo sistema bancário para atender às suas necessidades cotidianas de numerário para a compensação bancária.
O Banco Central pode permitir ou não que as reservas voluntárias possam ser mantidas em títulos da dívida pública e para isso é preciso que ele organize um mercado secundário de títulos públicos, ágil e integrado ao sistema bancário, conhecido como open market. As reservas compulsórias também podem ter uma parte remunerada e outra não remunerada, são decisões tomadas pelo governo de acordo com a legislação de cada país. Assim, temos uma primeira articulação entre o dinheiro e a dívida pública interna, ou seja, o Estado pode escolher a forma em que as reservas bancárias serão mantidas, em moeda fiduciária emitida pelo Banco Central ou em dívida mobiliária.
O sistema de crédito – bancos comerciais e de investimentos, financeiras, fundos de pensão, fundos de investimento, bolsas de valores, etc. – desenvolvido no modo de produção capitalista contemporâneo, aberto e desregulado, comanda hoje a acumulação e a reprodução do capital. Esse desenvolvimento é fundamental para permitir a acumulação e centralização acelerada de capital [8], expandindo o capital fictício [9] e criando, na esfera financeira, mecanismos e formas de absorção da superacumulação de capital. As políticas neoliberais implementadas pelos Estados, reduzindo a proteção social, transferiram para a esfera financeira privada uma enorme massa de poupanças que são centralizadas nos fundos de aplicação financeira de todos os tipos, fundos de previdência e de pensão e diversas formas de seguros [10].
Toda essa massa de capital monetário centralizada na esfera financeira reproduz-se fundamentalmente sob duas formas: a conversão em títulos de propriedade ou de dívidas privadas e em títulos de dívida pública interna ou externa. Na primeira forma, a sua reprodução ocorre através da compra ações. Os fundos mais importantes, com mais capital acumulado, procuram participar do comando das sociedades anônimas e de grandes corporações [11]. Ao mesmo tempo, uma grande parcela desse capital monetário acumulado dirige-se à especulação nos mercados financeiros, de moedas e de títulos públicos.
Assim, do ponto de vista da teoria marxista, o Estado capitalista mantém e reproduz uma dívida interna e externa, atendendo as necessidades que o sistema de crédito tem de realizar a conversão de dinheiro ocioso em capital portador de juros. Ao mesmo tempo, passa a absorver toda a massa de capital monetário liberada pela superacumulação de capital que não foi possível converter em capital real de forma rentável e duradoura. Mas, para garantir a rentabilidade desse capital, o Estado apropria-se de uma parcela crescente da mais-valia social, convertendo-a em juros pagos sobre a dívida. Assim, a intervenção do Estado, na esfera financeira, tornou-se fundamental para a reprodução ampliada do capital.
A teoria neoclássica e a teoria keynesiana não têm uma fundamentação teórica consistente sobre a dívida pública. O centro do debate entre essas duas correntes refere-se fundamentalmente aos efeitos do déficit e, em conseqüência, da dívida sobre o equilíbrio econômico. Para os neoclássicos, toda a política fiscal deve buscar no mínimo um equilíbrio nas contas públicas, eles são críticos ferozes dos déficits orçamentários, que atribuem às políticas “populistas” ou a problemas de gestão, por incompetência dos governos. Todo déficit público, para eles, acaba sendo financiados em última instância através da emissão de moeda, o que termina gerando processos inflacionários e desequilíbrios macroeconômicos. Eles também defendem a redução na tributação, principalmente ao capital, pois qualquer acréscimo nos impostos gera ineficiência na alocação dos fatores de produção. Por isso, a gestão pública deveria reduzir todas as despesas governamentais, em especial todas aquelas destinadas à proteção social, visando à eliminação dos déficits orçamentários. Da mesma forma, o Estado deve retirar-se totalmente de todas as atividades que possam ser atendidas pelo capital privado, privatizando as empresas do setor produtivo, a educação, a saúde e a previdência [12]. Essa postura decorre da crença em mecanismos de mercado que conduzem a equilíbrios automáticos e ao pleno emprego.
Por seu lado, Keynes critica a concepção neoclássica de equilíbrio macroeconômico com pleno emprego dos fatores de produção. Para ele, esse equilíbrio é um equilíbrio particular e, em geral, abaixo do pleno emprego dos fatores. Keynes critica ainda a lei dos mercados de Say, que considera incorreta, pois tem como pressuposto a inexistência da demanda por moeda como reserva de valor. Assim, ele abre o caminho para a defesa da intervenção estatal no sentido de conduzir a economia ao pleno emprego. Para tanto, defende a idéia de que um déficit público expande a demanda agregada que, no curto prazo, estimula a produção e o crescimento da economia, esse crescimento da produção irá aumentar a arrecadação e, portanto, irá suprimir o déficit. Considerando, ademais, que a expansão da produção aumenta a oferta de emprego e os trabalhadores pressionarão por um aumento de salários, um aumento na demanda agregada reduziria os salários reais até o ponto de pleno emprego. Ou seja, “... será possível aumentar o emprego fazendo subir as despesas em termos monetários até que os salários reais tenham baixado de modo que se igualem à desutilidade marginal do trabalho, ponto em que, por definição, haverá pleno emprego.” [13]
O debate atual sobre a intervenção do Estado tende a convergir para o que os neoliberais defendem sob o nome de “governabilidade”, ou seja, governar segundo as determinações do “mercado”, que nada mais é do que a aliança das frações de classes dominantes no poder, sob a hegemonia das frações financeiras nacionais e internacionais. Nesse sentido, a governabilidade pode ser traduzida por uma política de estabilidade monetária e cambial e de redução de déficits fiscais, com a geração de superávits primários necessários para o pagamento dos juros da dívida.
Com a dominância da esfera financeira sobre a esfera produtiva, a estabilidade monetária torna-se fundamental para a reprodução do capital, principalmente devido aos elevados volumes de capital monetário que ficam constantemente ociosos, mesmo que em prazos muito curtos, para a especulação financeira. Além disso, dado os enormes e crescentes volumes do endividamento interno, a geração de superávits primários crescentes torna-se cada vez mais necessário para garantir a remuneração da dívida pública. Com isso, a política macroeconômica dos países que adotaram as políticas neoliberais passa a ser comandada, essencialmente, pela estabilidade monetária e pela geração de superávits primários.
3. A financeirização e a expansão da dívida pública.
Após o “golpe de 1979” [14], a crise da dívida externa espalhou-se por uma parte importante do Terceiro Mundo. Os países que estatizaram a dívida externa privada e assumiram os encargos com o pagamento dos respectivos juros acrescentaram à dívida interna existente, seja ela decorrente de déficits ou de conversão de dívida externa em interna, uma nova dívida. Em muitos países o impacto desse “golpe” gerou como conseqüência um elevado processo inflacionário levando vários deles à hiperinflação. Em alguns casos ocorreu uma desvalorização importante da dívida interna, em outros, essa desvalorização foi menor devido aos processos de dolarização das economias nacionais. Em quase todos, os governos recorreram aos empréstimos junto ao FMI submetendo ao Fundo, e ao Departamento do Tesouro dos EUA, as decisões de política econômica e implementando as medidas propostas pelo “Consenso de Washington” que caracterizam o modelo neoliberal [15]. A síntese desse modelo se fundamenta em duas condições: a primeira é a estabilidade monetária e a segunda é a criação e a manutenção de condições para a remuneração da dívida interna, do pagamento dos serviços da dívida externa e das remessas de lucros, dividendos e ganhos de capital para o exterior. Assim, a política monetária passa a ser conduzida para atingir a esses requisitos e os Bancos Centrais tornam-se os principais condutores dessa política.
Segundo os livros-textos, o Banco Central tem como função, emitir e controlar a quantidade de moeda, servir como banqueiro do governo e dos bancos, guardar e administrar as reservas internacionais [16]. A forma como o Banco Central executa essas funções converte o dinheiro ocioso, as reservas bancárias, do sistema bancário em capital monetário. Converte, também, o déficit do tesouro nacional, a dívida externa e as reservas internacionais em dívida interna.
Vamos explicar esses mecanismos utilizando como exemplo os dados da Tabela 1. Ela mostra que a variação da base monetária – criação primária de moeda quando positiva e destruição quando negativa – é a síntese final, o saldo, de sete tipos de operações realizadas pelo Banco Central [17]. Considerando que um dos objetivos do Banco Central é o controle da quantidade de moeda, decorrente da proposição monetarista da Teoria Quantitativa da Moeda de que aumentos na quantidade de moeda provocam ou aceleram a inflação, essa variação da base monetária não poderia exceder a taxa de crescimento do produto real. Entretanto, não é o que observamos na Tabela. Isso porque a base monetária pode ser criada através da emissão de papel moeda ou da expansão das reservas bancárias [18]. Essas reservas, como vimos, constituem dinheiro “entesourado”, estéril, quando são compulsórias, ou capital portador de juros [19], na forma de títulos da dívida pública, quando são voluntárias, que os bancos comerciais mantêm em depósito no Banco Central.
Na Tabela 1, todas as operações com resultado positivo representam criação de moeda e as operações com resultado negativo representam destruição de moeda. O resultado final é registrado como variação da base monetária, quando ela é positiva, o Banco Central está emitindo moeda e quando o resultado é negativo, o Banco Central está retirando moeda de circulação, ou destruindo moeda.
Operações
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006*
|
Operações do Tesouro Nacional
|
-20.484
|
-1.064
|
-48.292
|
-43.008
|
-32.194
|
Operações com títulos públicos federais
|
90.722
|
11.181
|
57.838
|
2.808
|
-11.070
|
Operações do setor externo
|
-26.427
|
643
|
14.556
|
52.395
|
31.028
|
Operações de redesconto do Banco Central
|
400
|
2
|
-7
|
-3
|
-1
|
Depósitos
|
-33.770
|
6.729
|
-2.400
|
2.374
|
1.425
|
Operações com derivativos - ajustes
|
10.942
|
-15.632
|
-6.032
|
-2.684
|
3.764
|
Outras contas
|
-1.338
|
-1.942
|
-149
|
633
|
437
|
Variação da base monetária
|
20.046
|
-83
|
15.514
|
12.515
|
-6.612
|
* Até junho de 2006. Fonte: Bacen. Boletim do Banco Central do Brasil, vários números. |
3.1 A conversão do déficit público em dívida interna.
O Banco Central, como banqueiro do governo, registra todas as operações referentes às receitas e aos gastos do Estado segundo um enfoque puramente monetário, que são chamadas de Operações do Tesouro Nacional. Cada centavo arrecadado de imposto ou de qualquer outro tributo constitui destruição de moeda, sendo diminuído do saldo da base monetária. Cada pagamento efetuado constitui criação de moeda, sendo registrado como aumento da base. Assim, sempre que a despesa do governo for maior do que a receita, o déficit estará sendo financiado através da emissão de moeda.
As operações que o Banco Central executa por conta do Tesouro Nacional podem ser deficitárias ou superavitárias. Esse resultado é contabilizado através do conceito de Necessidades de Financiamento do Setor Público (NFSP)[20], implementado desde o início da crise da dívida, dos anos 80, quando os países tiveram que recorrer aos empréstimos do FMI. Os acordos com o Fundo contêm sempre uma cláusula que obriga os governos a apresentarem um superávit ou equilíbrio nessas necessidades de financiamento, de acordo com o conceito utilizado em sua estimativa.
O conceito utilizado normalmente nos acordos com o FMI é o de resultado ou superávit primário[21], que inclui todas as esferas do governo em todos os níveis, inclusive as empresas estatais. Assim, uma das condições para obter os empréstimos do FMI, para enfrentar as crises cambiais, é o compromisso de atingir uma determinada meta de superávit primário, medida como porcentagem do produto interno bruto (PIB). Esse compromisso obriga os governos a reduzirem os gastos públicos, em geral em investimentos e gastos sociais, para fazerem face ao pagamento de juros da dívida. Como, em geral, esse superávit é insuficiente para o pagamento do total de juros, parte desses juros são convertidos continuamente em novas dívidas.
Podemos observar na Tabela 1 que o resultado das operações do Tesouro Nacional é sempre negativo como conseqüência da política de geração de superávits primários. Esse é o resultado da política fiscal em que o governo busca sempre obter superávits gastando menos do que arrecada.
Para controlar a emissão de moeda, segundo as proposições da teoria monetarista, o Tesouro Nacional emite títulos de dívida pública e vende para o Banco Central, este pode conservá-lo em carteira ou colocá-los no mercado. Enquanto o título for mantido pelo Banco Central, a dívida é entre este e o Tesouro e os juros pagos pelo Tesouro podem retornar para ele através dos superávits obtidos pelo Banco Central, não afetando a base monetária. Para que o déficit do Tesouro não afete a quantidade de moeda criada, todo o déficit deve ser convertido em títulos e vendido para o sistema financeiro ou para o público, o Banco Central atua, nesse caso, apenas como intermediário do endividamento público. No caso da política monetária brasileira, na qual o Tesouro busca continuamente obter superávits, o Banco Central tem atuado de forma inversa, comprando títulos para manter a quantidade de moeda considerada necessária à realização dos negócios.
A busca da “governabilidade” após a crise da dívida e as crises financeiras das décadas de 90 e 2000 levou os governos a adotarem uma política monetária na qual a taxa básica de juros passou a ser a variável determinante da oferta e demanda de capital monetário[22]. Além disso, o aumento da taxa interna de juros passa a ser utilizada, também, como um meio para atrair dinheiro dos mercados externos onde essas taxas sejam menores. Assim, dívida externa, investimentos estrangeiros diretos, aplicações estrangeiras em portfólio, podem converter-se, igualmente em dívida interna.
3.2 A conversão das reservas internacionais em dívida interna
Um país pode manter seu mercado de câmbio mais ou menos controlado, com um regime de câmbio fixo, câmbio flutuante ou qualquer opção entre esses dois regimes extremos. As operações cambiais serão registradas nas Operações do setor externo expandindo a base monetária sempre que o Banco Central comprar divisas e o contrário quando vender. Um rígido controle de câmbio exige que todo ingresso de divisas[23] seja efetuado através do Banco Central e a sua conversão automática em moeda nacional. Um país em que o mercado de câmbio seja livre, os capitalistas podem manter divisas em espécie ou depósitos em bancos e até mesmo no Banco Central. Enquanto estiverem registrados estritamente como moeda estrangeira, será apenas capital monetário em potencial, não rende juros, mas está livre do risco cambial. Como pode existir uma infinidade de combinações, dependendo das leis específicas de cada país, vamos tratar de dois pontos que consideramos mais importantes: a conversão de reservas internacionais em dívida interna e a conversão de dívida privada externa em dívida interna.
O Estado, por definição, não é exportador nem de mercadoria nem de serviços. Por isso, para que um país do Terceiro Mundo possa constituir um montante de reservas necessárias para garantir que o país possa fazer face às importações e aos compromissos com o pagamento dos encargos referentes ao passivo externo da economia deve manter um determinado montante de reservas[24]. Para obter essas reservas, o Governo, através de seu Banco Central, deve comprar as divisas[25] dos capitalistas, exportadores, banqueiros, industriais e especuladores, no mercado interno de câmbio. Novamente, para evitar a expansão da base monetária, o Banco Central tem que trocar a moeda emitida para a compra das divisas por títulos da dívida pública. Assim, não há forma de constituir um volume de reservas importante senão através da compra de divisas no mercado de câmbio interno, requerido pelo mercado financeiro internacional, sem que haja um aumento correspondente no montante da dívida pública interna.
Com a implantação do modelo neoliberal e o desenvolvimento dos instrumentos financeiros decorrentes da liberalização do movimento de capitais, os especuladores internacionais procuram aplicar seus capitais nas praças cujas rendas e/ou garantias são mais elevadas. Antes do “golpe de 1979”, os investimentos estrangeiros diretos costumavam ser realmente investimentos no sentido estrito, a acumulação de capital através desses investimentos aumentavam a capacidade produtiva da economia. O desenvolvimento do modelo neoliberal converteu uma parcela importante, talvez a maior parcela, dessa forma de ingresso de capital em capital especulativo. A liberalização do movimento de capitais abriu uma nova forma de ingresso de capitais, os capitais de curto prazo, essencialmente especulativos e parasitários[26], destinados à especulação nas bolsas de valores e nos mercados de títulos públicos.
O ingresso de capitais estrangeiros, independentemente de sua forma ou de seu destino, a acumulação real ou a especulação, deve ser convertido em moeda nacional antes de sua utilização final. Assim, os fluxos de entrada e saída de capital mais a receitas e gastos com exportações e importações de mercadorias e serviços e as remessas de rendas vão constituir o grosso dos negócios que o Banco Central registra como Operações do Setor Externo. Assim, o ingresso de capitais estrangeiros, a dívida externa, e a balança comercial, de serviços e de rendas, quando positivas obrigam o Banco Central a comprar divisas emitindo moeda, e, em conseqüência, expandir a dívida interna em títulos para restringir a expansão da base monetária. Esse mecanismo tornou-se mais importante com o processo de desnacionalização e de abertura dos mercados de câmbio das economias subdesenvolvidas, pois o aumento significativo de remessas de juros, lucros, dividendos e ganhos de capital obriga o Estado a impulsionar políticas mercantilistas visando a obtenção de divisas para garantir esses pagamentos e a manter um volume elevado de reservas como condição para a “governabilidade”.
A Tabela 1 mostra que as operações do mercado de câmbio foram negativas em 2002, em decorrência da crise cambial desencadeada antes da eleição de Luís Inácio Lula da Silva. Nos anos seguintes, o saldo positivo representa a volumosa compra de dólares efetuada pelo Banco Central. Uma parte foi convertida em reservas e outra parte foi utilizada para o pagamento da dívida externa, em especial o reembolso ao FMI, em 2005.
3.3 Os juros e a dívida pública interna
Além do déficit público, da dívida externa e das reservas internacionais, a dívida pública interna passou a crescer aceleradamente em muitos países através da conversão dos juros da dívida pública em novas dívidas.
Na tabela 2, utilizamos os dados do Brasil para ilustrar o processo através do qual uma parte dos juros da dívida pública converte-se em nova dívida. O resultado nominal, o total operacional e o resultado primário correspondem aos diversos critérios de estimação das NFSP, nos quais o mais importante é o resultado primário. Sempre que esse resultado, que aparece negativo na tabela, é inferior aos juros nominais a diferença converte-se em nova dívida pública interna e em títulos, e quando é positivo, ele é somado aos juros, convertendo-se também em nova dívida. A primeira situação é aquela em que mesmo havendo um superávit a dívida cresce e a segunda é aquela em que a dívida é aumentada devido a um déficit público.
A tabela mostra que, medida em reais após o plano Real iniciado em 1994, o principal fator que acelera o crescimento da dívida pública interna em títulos, no Brasil, são os juros da dívida pública. Com exceção dos anos de 1996 e 1997, quando ocorreu um déficit primário, ou seja, os gastos públicos, sem o pagamento de juros, foram maiores do que as receitas houve uma conversão de déficit público em dívida. Assim, o superávit primário acumulado em todo o período foi de R$ 476.735 milhões e os juros nominais foram de R$ 1.213.516 milhões. Assim, a diferença entre eles resultou em um crescimento da dívida de R$ 736.781 milhões.
Esses dados mostram que, após a estabilização monetária obtida com o Plano Real, do governo de Fernando Henrique Cardoso, o principal componente do crescimento da dívida pública interna deve-se à política de juros decorrente da política monetária do Plano Real. Isso representa a subordinação da política macroeconômica aos interesses da aliança entre as frações de classes dominantes no Brasil sob a hegemonia da fração financeira, mais precisamente do capital especulativo e parasitário.
Discriminação
|
1991
|
1992
|
1993
|
1994
|
1995
|
1996
|
1997
|
1998
|
Resultado Nominal
|
16
|
293
|
9.127
|
94.174
|
47.027
|
45.742
|
53.232
|
72.376
|
Total Operacional
|
1
|
12
|
203
|
-6.936
|
32.278
|
29.218
|
37.499
|
67.579
|
Resultado Primário
|
-2
|
-10
|
-317
|
-18.207
|
-3.907
|
739
|
8.310
|
- 108
|
Total de Juros Reais
|
2
|
22
|
521
|
11.270
|
34.001
|
28.478
|
29.189
|
67.687
|
Juros Nominais
|
18
|
303
|
9.444
|
112.381
|
50.934
|
45.003
|
44.922
|
72.484
|
continua
continuação
Discriminação | 1999 | 2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006* |
Resultado Nominal | 56.284 | 39.806 | 42.788 | 61.614 | 79.030 | 47.142 | 63.641 | 24.486 |
Total Operacional | 10.875 | 12.888 | 14.565 | -34.733 | 44.253 | -24.828 | 52.841 | 14.567 |
Resultado Primário | -31.087 | -38.157 | -43.655 | -52.390 | -66.173 | -81.112 | -93.505 | -57.154 |
Total de Juros Reais | 41.962 | 51.044 | 58.220 | 17.657 | 110.426 | 56.284 | 146.346 | 71.721 |
Juros Nominais | 87.372 | 77.963 | 86.443 | 114.004 | 145.203 | 128.256 | 157.146 | 81.640 |
* Até junho de 2006 Fonte: Boletins do Banco Central do Brasil vários números |
O resultado do processo de adoção do modelo neoliberal e a integração do Brasil ao sistema mundial financeirizado sobre a dívida interna, com a desregulamentação dos mercados financeiros e a política monetária neoliberal, é mostrado na Tabela 3. O brutal processo inflacionário, decorrente ainda do impacto da crise da dívida dos anos 80, impediu um endividamento significativo nos primeiros anos da década de 90. Somente com a estabilização obtida com o Plano Real, inicia-se efetivamente um endividamento interno em títulos, cada vez mais agudo e acelerado. No primeiro mandato de FHC, a dívida total no mercado saltou de R$ 61.782 milhões para R$ 323.860 milhões, um aumento de mais de cinco vezes, no final do segundo mandato chegou a R$ 623.191 milhões, quase duplicando. Nos três anos e meio de seu governo, Lula aumentou a dívida para R$ 1.016.100 milhões, ou seja, mais de 50% do PIB estimado para 2006.
Discriminação | 1991 | 1992 | 1993 | 1994 | 1995 | 1996 | 1997 | 1998 | 1999 |
Resp. do Tesouro Nacional | 33 | 441 | 11.632 | 59.416 | 84.596 | 114.775 | 225.732 | 343.820 | 464.507 |
Carteira do BCB | 29 | 373 | 7.722 | 24.087 | 25.456 | 21.669 | 35.461 | 124.670 | 60.871 |
Fora do BCB | 4 | 68 | 3.910 | 35.329 | 59.140 | 93.106 | 190.271 | 219.151 | 351.881 |
Responsabilidade do BCB | 1 | 96 | 1.077 | 26.453 | 49.346 | 83.105 | 65.238 | 104.709 | 63.020 |
Total de títulos no mercado | 5 | 164 | 4.987 | 61.782 | 108.486 | 176.211 | 255.509 | 323.860 | 414.901 |
Total de Títulos emitidos | 34 | 537 | 12.709 | 85.869 | 133.942 | 197.880 | 290.970 | 448.529 | 527.527 |
continua
continuação
Discriminação | 2000 | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006* |
Resp. do Tesouro Nacional | 555.913 | 687.329 | 838.796 | 978.104 | 1.099.535 | 1.252.510 | 1.306.109 |
Carteira do BCB | 130.901 | 189.442 | 282.730 | 276.905 | 302.855 | 279.663 | 296.302 |
Fora do BCB | 425.011 | 497.887 | 556.066 | 701.199 | 796.680 | 972.847 | 1.009.807 |
Responsabilidade do BCB | 85.686 | 126.198 | 67.125 | 30.659 | 13.584 | 6.815 | 6.294 |
Total de títulos no mercado | 510.698 | 624.084 | 623.191 | 731.858 | 810.264 | 979.662 | 1.016.100 |
Total de Títulos emitidos | 641.599 | 813.527 | 905.921 | 1.008.763 | 1.113.119 | 1.259.325 | 1.312.403 |
* Até junho de 2006 Fonte: Banco Central do Brasil. |
A conseqüência desse brutal endividamento pode ser observada na conta de juros nominais, da Tabela 2. Em 1994, a conta de juros foi de R$ 112.381 milhões, representando uma parte importante do custo da estabilidade monetária, em 1998, ela foi de R$ 72.484 milhões e ultrapassou o limite dos cem bilhões após 2002. O Governo Luis Inácio da Silva Lula, mantendo a mesma política e a mesma submissão ao sistema financeiro, pagou mais de R$ 500 bilhões de reais em apenas três anos e meio, o que representa mais de 25% do PIB.
4. Juros, dívida pública e capital fictício
O pagamento dos juros da dívida pública tem como principal fonte de recursos os impostos cobrados pelos governos. A rigor, a tributação é a forma como parte da maisvalia é apropriada pelo Estado e redistribuída para as diversas frações do capital e para uma parcela da população. As reformas tributárias empreendidas nos diversos países sob a égide do neoliberalismo têm como estratégia geral a redução dos impostos cobrados dos capitalistas e o aumento dos impostos cobrados dos trabalhadores. Assim, o Estado preserva a parcela da mais valia apropriada pelo capital e aumenta a taxa de exploração reduzindo os salários reais disponíveis para os trabalhadores. Todo o complexo da estrutura fiscal e dos gastos públicos tem como função final encobrir esse processo através do qual a taxa de exploração é elevada através da intervenção pública. Além disso, o Estado atua de forma decisiva no financiamento à acumulação de capital em condições extremamente privilegiada para os capitalistas[27].
Entretanto, em muitos países, em particular o Brasil, a parcela da mais-valia destinada ao pagamento dos juros da divida pública é insuficiente para atender todo o montante de juros, como vimos na diferença entre o superávit primário e os juros totais. Assim, uma parte dela é capitalizada expandindo a dívida e a parcela do capital fictício fundado na dívida pública[28]. Dessa forma, toda a riqueza ou mais-valia excedente que não tem uma aplicação produtiva imediata é transformada em capital monetário, que se acumula como dívida, e o Estado se encarrega de apropriar e repartir a mais-valia entre as diferentes frações do capital. Como a massa acumulada de dívida aplicada a uma taxa de juros determinada pelo Banco Central exige uma massa de mais-valia muito superior àquela que pode ser destinada à remuneração dessa fração do capital, o processo de capitalização desses juros acaba aparecendo como lucro ou mais valia fictícia [29].
Os beneficiários dessa dívida pública interna são os bancos nacionais e estrangeiros, fundos de investimentos e fundos de pensão e todos aqueles que dispõem de um elevado montante de reserva monetária para participar dos fundos de investimentos. A tabela 4 mostra, para o caso do Brasil, quem são os credores da dívida pública interna. Em primeiro lugar estão os fundos de investimento, também conhecidos como fundos mútuos, com cerca de 50% do total. Esses fundos, regidos pela Instrução 409 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) são definidos da seguinte maneira: “o fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em títulos e valores mobiliários, bem como em quaisquer outros ativos disponíveis no mercado financeiro e de capitais”[30]. Assim, além da aplicação em títulos, os fundos reproduzem em escala ampliada o capital fictício constituído pelas ações, derivativos, divisas e outros títulos mobiliários.
Carteira Própria | 315.172 | 32,1 |
Banco Comercial Nacional | 261.131 | 26,6 |
Banco Comercial Estrangeiro | 40.106 | 4,1 |
Banco de Investimento Nacional | 8.415 | 0,9 |
Banco de Investimento Estrangeiro | 2.040 | 0,2 |
Corretora Distribuidora Nacional | 1.044 | 0,1 |
Corretora Distribuidora Estrangeira | 87 | 0,0 |
Outros | 2.349 | 0,2 |
Títulos vinculados | 109.445 | 11,2 |
Pessoa Física | 1.573 | 0,2 |
Pessoa Jurídica não financeira | 59.889 | 6,1 |
Pessoa Jurídica financeira | 327 | 0,0 |
Fundos de Investimento | 484.009 | 49,3 |
Outros fundos | 1.776 | 0,2 |
Extra mercado | 8.769 | 0,9 |
Total | 980.960 | 100,0 |
Fonte: Banco Central do Brasil. Notas Econômico-financeiras para a imprensa |
Os bancos aparecem em segundo lugar dentre os detentores dos títulos da dívida pública com mais de 30% dos títulos. Mas, devemos incluir nesse total cerca de 10% dos títulos vinculados, que são vinculados aos “depósitos compulsórios sobre poupança e depósitos a prazo, reserva técnica, aumento de capital, recursos externos, empréstimos de liquidez, caução, depósitos judiciais e câmaras”[31]. Eles representam como vimos uma parte das reservas bancárias convertidas em capital monetário. As empresas não financeiras dispõem de 6,1% dos títulos e os demais detentores são relativamente pouco expressivos.
Esses dados não mostram que os bancos comerciais e de investimentos podem criar e administrar os fundos de investimentos. Segundo a Instrução 409, esses fundos podem ser administrados por “pessoas jurídicas autorizadas pela CVM”, ou seja, os bancos são pessoas jurídicas que têm a autorização para atuar no mercado financeiro. Assim, além da carteira própria eles podem criar e administrar uma parte mais ou menos expressiva dos fundos de investimento. Infelizmente, os dados disponíveis não permitem avaliar toda a importância e o peso dos bancos como detentores da dívida pública interna. Entretanto, os balanços dos bancos consolidado pelo Banco Central[32] nos mostra que o sistema financeiro nacional registrava em seu ativo R$ 450,6 bilhões em títulos mobiliários e derivativos, dos quais R$ 307,5 bilhões em posse dos dez maiores bancos, indicando o poder concentrado dos maiores bancos no sistema financeiro.
Considerações finais
O desenvolvimento do sistema de crédito no capitalismo contemporâneo criou um conjunto amplo e complexo de instituições e instrumentos financeiros cuja função principal é a reprodução do capital na esfera puramente financeira. Uma parte desse capital transita pela esfera produtiva, mas a maior parte dele se reproduz de forma puramente fictícia, nas bolsas de valores, nas bolsas de mercadorias e no mercado de títulos públicos. Os principais instrumentos dessa valorização fictícia são as ações, os derivativos e em particular a dívida pública. Nos países subdesenvolvidos, a constituição desse sistema de crédito permite a integração financeira ao sistema mundial e funciona como uma plataforma de transferência de mais-valia para o centro do imperialismo, os Estados Unidos e seus associados, comandado e orquestrado pelo FMI e pelo Banco Mundial. Assim, no interior dos países subdesenvolvidos desenvolveu-se uma fração da burguesia que se aliou estreitamente com as frações da burguesia internacionalizada comungando os mesmos interesses, o que reafirma a necessidade de que a luta de classes também se desenrole em escala internacional. A dinâmica da dominância financeira contemporânea centrada no capital especulativo e parasitário aponta para crises financeiras recorrentes, pois a reprodução ampliada do capital na esfera puramente financeira exige continuamente uma punção crescente sobre a mais-valia gerada na esfera produtiva, ou seja, aumento contínuo na taxa de exploração da força de trabalho que encontra limites objetivos determinados pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas. O resultado desse processo é a necessidade imperiosa de desvalorização do capital fictício acumulado cujo desenlace é retardado pela intervenção do Estado que contribui ativamente, através da dívida pública, na manutenção desse capital fictício.
Notas:
1 Texto elaborado para o “Simposio Internacional sobre deuda pública” do OID – Observatório Internacional da Dívida. Caracas, 22, 23 e 24 de setembro de 2006.
2 Para um estudo bastante detalhado dessas relações entre déficit e dívida ver o livro em elaboração de OLIVEIRA, Fabrício Augusto. Economia e Política das Finanças Públicas; uma abordagem crítica da teoria convencional, à luz da economia brasileira, em especial o capítulo V “O déficit e a dívida pública”.
3 Em muitos países a maior parte da dívida externa privada foi convertida em dívida pública durante a crise dos anos 80, sendo posteriormente transformada em dívida mobiliária externa, com o Plano Brady, realimentando continuamente a especulação nos mercados financeiros internacionais.
4 A dívida externa privada acaba acarretando, em última instância, em compromissos de pagamentos de juros com recursos públicos, sempre que ela seja convertida em títulos da dívida interna. “No Brasil, a dívida pode ser privada, o credor pode ser privado, mas quem paga é você, pois a dívida acaba no colo do Estado, que cobra impostos, aumenta os juros e adota uma política econômica voltada para pagar a dívida, cujos impactos recaem sobre a maioria dos trabalhadores.” (GONÇALVES, Reinaldo e POMAR, Valter. O Brasil endividado. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.)
5 “[...] o capital, do qual o pagamento feito pelo Estado considera-se um fruto (juro), permanece capital ilusório, fictício. A soma que foi emprestada ao Estado já não existe ao todo.” (MARX, Karl. O Capital.)
6 MARX, Karl. O Capital. Livro 1, Vol. II, 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 288.
7 “Isto porque uma característica reconhecida do dinheiro como reserva de valor é a de ser estéril, enquanto praticamente todas as outras formas de reserva de valor proporcionam alguns juros ou lucros. Fora de um hospício para loucos, por que alguém desejaria usar o dinheiro como reserva de valor?” (KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego (1937). In: SZMERECSÁNYI, Tamás (Org). Keynes. São Paulo: Ática, 1978. p. 173.) Para Marx, essa parcela do capital “... tem que constantemente existir como tesouro, capital monetário potencial: reserva de meios de pagamento, capital desocupado que, em forma-dinheiro, espera sua aplicação; e parte do capital reflui constantemente nessa forma”. (MARX, Karl. O Capital. Livro III, Vol. IV. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 238). O desenvolvimento do sistema de crédito e dos Bancos Centrais reduz drasticamente a quantidade necessária desse volume de capital monetário potencial, permitindo converter continuamente dinheiro em títulos e vice-versa.
8 “Com o desenvolvimento do capital portador de juros e do sistema de crédito, todo capital parece duplicar e às vezes triplicar pelo modo diverso em que o mesmo capital ou simplesmente o mesmo título de dívida aparece, em diferentes mãos, sob diversas formas. A maior parte desse “capital monetário” é puramente fictícia. Todos os depósitos, excetuando o fundo de reserva, são apenas créditos contra o banqueiro, mas nunca existem em depósito.” (MARX, Karl. O Capital. Livro III, Vol. IV. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 14)
9 “A formação do capital fictício chama-se capitalização. Cada receita que se repete regularmente é capitalizada em se calculando na base da taxa média de juros, como importância que um capital, emprestado a essa taxa de juros, proporcionaria; se, por exemplo, a receita anual = 100 libras esterlinas e a taxa de juros = 5%, então as 100 libras seriam o juro anual de 2.000 libras esterlinas, e essas 2.000 libras esterlinas são agora consideradas o valor-capital do título jurídico de propriedade sobre as 100 libras anuais.” (MARX, Karl. O Capital. Livro III, Vol. V. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 11.)
10 Les premiers sont ceux portant sur la collecte et la centralisation de que l’économie courante nomme “l’épargne”, à savoir les revenus non-consommés, ceux et des couches moyennes aisées, mais aussi et surtout au travers les systèmes de retraite privés et de “l’épargne salariale” ceux des salariés. Les sommes centralisées au compte des retraites privées ont été la force de frappe pour la mise en oeuvre à partir de la finance des transformations du capitalisme et demeurent l’argument principal pour préserver les marchés financiers de toute crise vraiment sérieuse quelles qu’en soient les conséquences. (CHESNAIS, François. Notes sur les théories du capital porteur d’intérêt et du capital fictif et certains problèmes posés par l’analyse de la finance contemporaine. Séminaire d’Etudes Marxistes, séance du 20 janvier 2005. Mimeo.)
11 Ver em especial os artigos de Catherine Sauviat e o de Luc Mampaey e Claude Serfati. In: CHESNAIS, François (Org.). A Finança Mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005.
12 Os mais radicais propõe a privatização até das forças armadas, da segurança pública, da justiça e da moeda nacional, o que já é uma realidade em muitos países, mas que ainda não é claramente reconhecida.
13 KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985, p. 198.
14 Expressão utilizada por Duménil e Lévy para a decisão unilateral do Federal Reserve em aumentar a taxa de juros. “Nós denominamos essa decisão o golpe de 1979, pois se trata de uma violência política. O que se seguiu esteve à altura desse primeiro passo: controle dos salários, erosão gradual dos sistemas de proteção social, onda de desemprego, crescimento lento e crises recorrentes nos países da periferia, deslocalização das empresas, elevação das tensões internacionais e novo militarismo.” (DUMÉNIL, Gerard e LÉVY, Dominique. O neoliberalismo sob a hegemonia Norte-Americana. In: CHESNAIS, François (Org.). A Finança Mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005).
15 Utilizamos a expressão neoliberalismo e modelo neoliberal de forma indiferenciada. Para uma precisão conceitual, ver o texto: FILGUEIRAS, Luiz. Projeto Político e modelo econômico neoliberal no Brasil: implantação, evolução, estrutura e dinâmica. Salvador, 2005. Mimeo.
16 PAULANI, Leda Maria e BRAGA, Márcio Bobik. A nova contabilidade social. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 182.
17 É unicamente através dessas operações que o Banco Central pode criar moeda ou destruir moeda. Não vamos examinar detalhadamente todas as operações, daremos ênfase àquelas que nos interessam neste momento. Para um estudo mais detalhado da política monetária executada pelo Banco Central ver, TORRES, Marcos J. R. Operacionalidade da política monetária no Brasil. UNICAMP. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, 1999, e também: TORRES, Marcos J. R. Operacionalidade da política monetária e formação da taxa de juros. In: COSTA, Fernando Nogueira da. Economia monetária e financeira. São Paulo: Makron Books, 1999, p. 191-214.
18 O papel moeda emitido atualmente é um conceito contábil e abstrato, não está mais relacionado diretamente com as notas e moedas em circulação. Não tendo mais relação direta com o dinheiro mercadoria, o papel moeda estatal tornou-se também uma moeda de crédito e é contabilizada como parte da dívida pública.
19 “O dinheiro como tal já é potencialmente valor que se valoriza, e como tal é emprestado, o que constitui a forma de venda dessa mercadoria peculiar. Torna-se assim propriedade do dinheiro criar valor, proporcionar juros, assim como a de uma pereira é dar peras. E como tal coisa portadora de juros, o prestamista de dinheiro vende seu dinheiro. Mas isso não é tudo. O capital realmente funcionante se apresenta, conforme se viu, de tal modo que proporciona o juro não como capital funcionante, mas como capital em si, como capital monetário.” (MARX, Karl. O Capital. Livro III, Vol. IV. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 294). “O dinheiro tem agora amor no corpo. Tão logo este
20 As NFSP podem ser estimadas em termos nominais, operacionais ou como resultado primário. Para um detalhamento desse conceito, ver OLIVEIRA, Fabrício Augusto. Economia e Política das Finanças Públicas; uma abordagem crítica da teoria convencional, à luz da economia brasileira, capítulo V “O déficit e a dívida pública”.
21 Este conceito exclui das NFSP operacionais os pagamentos de juros da divida pública.
22 Em Marx, a taxa de juros é determinada pela oferta e demanda de capital monetário, a política de metas de inflação inverte a relação de determinação. Quando o Banco Central considera que há excesso de oferta de capital monetário (potencial) em relação à demanda – e isso é controlado através do acompanhamento diário do volume de reservas bancárias – ele aumenta a taxa de juros estimulando a compra de títulos da dívida e reduzindo as reservas bancárias, ou seja o capital monetário em potencial. “Viu-se que o capital portador de juros, embora categoria absolutamente diferente da mercadoria, se torna uma mercadoria sui generis e, por isso, o juro torna-se seu preço, o qual, como o preço de mercado da mercadoria comum, é fixado em cada momento pela procura e oferta.” (MARX, Karl. O Capital. Livro III, Vol. IV. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 275).
23 O Governo Lula, liberalizando ainda mais o movimento de capitais autorizou as empresas exportadoras a manter no exterior uma parte de suas receitas, com isso, protege o capital de flutuações internas na taxa de câmbio e o isenta do imposto de operações financeiras.
24 Naturalmente, essa exigência não se refere aos países do Primeiro Mundo, em particular os EUA, que emite a moeda mundial.
25 No caso dos empréstimos diretos obtidos nas agências multilaterais como o FMI e o Banco Mundial, não há a mediação do mercado de câmbio interno. Da mesma forma, quando um país decide endividar-se no mercado financeiro internacional vendendo títulos de dívida, as divisas obtidas podem ser contabilizadas diretamente como reservas sem nenhum efeito sobre a base monetária. Assim, esses empréstimos podem converter-se automaticamente em reservas sem afetar a política monetária e a dívida interna.
26 O conceito de capital especulativo parasitário foi desenvolvido em CARCANHOLO, Reinaldo e NAKATANI, Paulo. O capital especulativo parasitário: uma precisão teórica sobre o capital financeiro, característico da globalização. Ensaios FEE, v. 20, n. 1, 1999, p. 284-304.
27 No Brasil, o sistema bancário não oferece financiamento de longo prazo para investimentos, há décadas essa função é desempenhada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. A principal fonte de recursos do BNDES é o Fundo de Amparo ao Trabalhador que é, em princípio, uma massa de riqueza acumulada em nome dos trabalhadores, recolhida pelo Tesouro Nacional e repassada ao BNDES. Os empréstimos efetuados por esse banco, tanto para a burguesia nacional quanto para a estrangeira, tem como taxa de juros de referência a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) que normalmente é a metade da Taxa Básica fixada pelo Banco Central, em termos reais.
28 “O dinheiro como tal já é potencialmente valor que se valoriza, e como tal é emprestado, o que constitui a forma de venda dessa mercadoria peculiar. Torna-se assim propriedade do dinheiro criar valor, proporcionar juros, assim como a de uma pereira é dar peras. E como tal coisa portadora de juros, o prestamista de dinheiro vende seu dinheiro. Mas isso não é tudo. O capital realmente funcionante se apresenta, conforme se viu, de tal modo que proporciona o juro não como capital funcionante, mas como capital em si, como capital monetário.” (MARX, Karl. O Capital. Livro III, Vol. IV. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 294). “O dinheiro tem agora amor no corpo. Tão logo esteja emprestado ou também investido no processo de reprodução (...), acresce-lhe juros, esteja dormindo ou acordado, em casa ou em viagem, de dia ou de noite. Realiza-se assim no capital monetário portador de juros (...) o desejo impiedoso do entesourador.” (MARX, Karl. O Capital. Livro III, Vol. IV. 2ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 295).
29 Esse ponto está desenvolvido em CARCANHOLO, Reinaldo e NAKATANI, Paulo. Capitalismo especulativo e alternativas. Sociedade Brasileira de Economia Política. XI Encontro Nacional de Economia Política. Anais, Vitória, junho de 2006.
30 CVM – Comissão de Valores Mobiliários. Instrução 409. http://www.cvm.gov.b... exiato.asp?File=%5Cinst%5Cinst409.htm. Acesso em 10/08/2006.
31 Banco Central do Brasil. Notas Econômico-financeiras para a imprensa.
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