Não chores por mim, Repsol

Quando se passam tantas horas a ler artigos de jornal como eu, começa-se a desenvolver um filtro para as piores formas de banha de cobra que se vêem por aí impressas. Mas depois há coisas tão vis, tão asquerosas, tão desavergonhadamente copiadas a carbono dum qualquer Wall Street Journal, que até uma gorda ratazana dos canos olha para elas e pensa «Que coisa repugnante».
Foi esse o caso quando me deparei com este artigo de ataque no Público, pelo lápis de Rita Siza, a propósito da nacionalização da companhia petrolífera YPF pela Argentina. Vamos então expor os golpes baixos com que o artigo foi escrito. Comecemos pelo título onde se diz que: «Os argentinos aplaudem a deriva populista de Cristina Kirchner».
Pobre Kirchner, com as suas “derivas”. Estava com os calores, deu-lhe para nacionalizar.
«Só quem esteve distraído durante a campanha eleitoral na Argentina, e não ouviu os discursos da Presidente Cristina Kirchner, reeleita com uma votação histórica, poderá ficar admirado ou surpreendido com a deriva populista, nacionalista e proteccionista do seu Governo.»
É de facto chocante, CHOCANTE e digno de admiração e surpresa, caros senhores, que alguém se atreva a ser populista (ou seja, que governe para o seu povo), nacionalista (que não se deixe roubar pelos bancos globais) e proteccionista (que não se deixe roubar pelas corporações). Estúpida Kirchner, quando é que aprendes!
«Da campanha para a anexação das ilhas Malvinas – Falkland para os britânicos, que detêm a soberania do território – à confiscação de 51% do capital da petrolífera YPF, expropriada da parcela de 57% da espanhola Repsol, a Presidente tem vindo a assumir um tom de confronto com os seus aliados e parceiros para obter vitórias políticas internas.»
A Grã-Bretanha, com quem a Argentina esteve em guerra há umas décadas? A Espanha, que sugou o tutano à Argentina enquanto potência colonial e cuja participação na YPF era um dos últimos resquícios desse historial? São estes os maravilhosos aliados e parceiros (que, já agora, estão ambos a seguir políticas económicas auto-destrutivas, por isso quem são eles para criticar)? Pelos deuses, não os “confrontemos”! E no final deste parágrafo transforma-se uma política de defesa dos interesses do povo argentino contra a canalha dos bancos e corporações numa simples e mesquinha caça ao voto. Bravo.
«O populismo é a raiz do seu projecto político, uma variante do peronismo das décadas de 1940 e 1950, mas muitas das medidas recentes da Casa Rosada devem-se mais a um "estado de necessidade" do que a uma deliberada promoção da estatização da economia.»
Será este o “estado de necessidade” causado pelo sub-investimento crónico da Repsol na produção de petróleo, tendo a empresa simplesmente redistribuído os lucros pelos accionistas? Política essa que causou a queda da produção em 22 % entre 2000 e 2010 [1]? Política essa que levou a Argentina, país produtor de energia, a ser obrigada a importar milhares de milhões de dólares em combustíveis para conseguir alimentar a sua economia em crescimento? Ignora a jornalista que durante o período das economias estatizadas e proteccionistas nos anos 60 e 70, a taxa de crescimento dos rendimentos per capita foi de 3,1 % na América do Sul em comparação com os 0,5% após a entrada em cena do neoliberalismo [2]?
«Fragilizada pelo escândalo de corrupção que afecta o vice-presidente, Amado Boudou, e com a popularidade em queda por causa da inflação galopante, Cristina Kirchner precisava de recuperar a iniciativa política. E, lembram todos os observadores internacionais, na Argentina, quando se trata de justificar os falhanços internos, não há nada mais eficaz do que responsabilizar os agentes externos.»
“Todos os observadores internacionais?” Quem? O FMI? O Banco Mundial? Os Estados Unidos? A Europa? Qual dos abutres que durante décadas comeu a carne dos argentinos é que se está agora a queixar quando os argentinos dão luta? E “popularidade em queda”? Quando na primeira frase do artigo se dizia “reeleita com uma votação histórica” e no parágrafo seguinte a este “a esmagadora maioria da população apoia a decisão da Presidente”?
Este também não seria um artigo copiado do Wall Street Journal sem um bocadinho de histerismo sobre inflação. Porque não se mencionou o chorudo superavit do país [3]? E que a economia, pelas contas do próprio FMI, deverá crescer 4,2% este ano [4]? Demasiada matemática? Ou não vinha escrito no Wall Street Journal? Quem nos dera a nós podermos trocar 9,9% de inflação pelo crescimento e progresso social da Argentina.
«Apesar dos resultados catastróficos das últimas re-nacionalizações levadas a cabo pelo Governo de Buenos Aires – casos das companhias de águas e electricidade, dos fundos de pensões ou das Aerolíneas Argentinas –, a esmagadora maioria da população apoia a decisão da Presidente.»
Há certas frases tão absurdas e mentirosas que causam paralisia mental em quem as lê. Torna-se impossível acreditar que alguém escreveu tamanha estupidez. E quem conhece a história das privatizações na América do Sul sabe bem o quão vergonhosa é esta frase. Faz parecer que as companhias privadas estavam a fazer um trabalho maravilhoso mas que foram de lá corridas por políticos interesseiros – quando na realidade, foram corridas pelos próprios argentinos. Vejamos o caso da privatização da água: a mando do FMI e Banco Mundial, foi entregue de bandeja a várias multinacionais o monopólio duma grande parte dos recursos hídricos da Argentina. A companhia aglutinadora chamava-se Aguas Argentinas e na sua lista de grandes feitos incluem-se [5]:
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Preços que subiram 10 vezes mais depressa que a taxa de inflação
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Clientes incapazes de pagar (que chegaram a ser 30%) ficavam sem acesso a água
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45% das promessas contratuais da companhia não foram respeitadas
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Despejava esgotos sem tratamento a 3 quilómetros do local onde recolhia água
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Os níveis de nitratos em várias zonas estavam 3 vezes acima do limite para consumo humano
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E mesmo assim conseguiu garantir taxas de lucro usurárias de 19%
De facto, com sucessos destes, só um idiota se sentiria tentado a renacionalizar...
«Como notava o comentador do Wall Street Journal Alen Mattich, a operação que envolve a petrolífera YPF oferece uma sombria conclusão: quando os países não conseguem financiar a sua economia nos mercados internacionais (de crédito), acabam por arranjar vias alternativas para satisfazer as suas necessidades domésticas.»
Alen Mattich (sejas lá quem fores), chora mais um bocadinho pelos teus pobres mestres na banca internacional. Pobres banqueiros que não podem cobrar a sua taxazinha de juro porque a malvada da Argentina não faz o seu jogo sujo para se financiar. Para mim isto não é nenhuma conclusão “sombria” mas uma alvorada cheia de promessas. Prova a toda a gente que os países não precisam para nada da corja que o Wall Street Journal serve e que são perfeitamente capazes de se manter em pé por si próprios – basta mandar os ladrões porta fora.
«(...) embora fontes do Governo citadas na imprensa internacional sob o anonimato tenham criticado a política económica pouco ortodoxa e convencional de Kirchner. "Não há nenhum plano, é tudo feito de improviso", lamentava um dirigente ao Financial Times.»
Fontes anónimas, esse maravilhoso recurso do jornalista de terceira. E no Financial Times, não menos... Quando até a própria oposição de Kirchner apoiou a nacionalização [6], de onde veio a viperina frase? E é extremamente duvidoso que não haja aqui qualquer plano. Para saber qual é, basta abrir um livro de história – todas as actuais economias desenvolvidas e competitivas possuem um passado proteccionista: os Estados Unidos foram-no durante um século inteiro, a Coreia do Sul transformou-se de país do terceiro mundo em potência tecnológica graças ao proteccionismo e o Japão teve de escudar e subsidiar a sua indústria automóvel durante 4 décadas antes desta ser competitiva [7]. Só se ignoram factos tão claros com uma política proteccionista das fantasias neoliberais.
«O país, que se debate com uma taxa de inflação que economistas independentes estimam ultrapassa já os 20%, precisa de reduzir a sua factura energética.»
Lá estão as fontes “independentes” outra vez. Independentes de que? De responsabilidade? Quando o próprio FMI, que é tudo menos amigável à Argentina, diz que a inflação é de 9,9% [8], de que buraco se foi desenterrar os 20%?
«Para a analista Graciela Romer, o apoio à nacionalização de empresas nos sectores vitais da economia explica-se pelo "falhanço espectacular" das reformas para a liberalização da economia nos anos 90. "A sociedade argentina pagou essa experiência com maior desigualdade e pobreza. Quando agora se viram outra vez para o Estado, fazem-no por pragmatismo, porque acham que essa será a única maneira de melhorar a qualidade de vida", disse à Reuters.»
Então mas eu pensava que as privatizações tinham sido um sucesso e não justificavam renacionalizações “catastróficas”? Ou estamos a seguir aquela escola do jornalismo onde se mete uma opinião pró e uma opinião contra e da dialéctica entre as duas é suposto emergirem factos na cabeça do público, como que por magia?
Mas numa coisa os argentinos têm razão: algo está a mudar na qualidade de vida com as presidências dos Kirchner. Mas estes factos [9] não se vão ler entre os esbirros do poder no Wall Street Journal e Financial Times:
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A economia cresceu 94% entre 2002 e 2011
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A pobreza caiu dois terços, de metade da população em 2001 para um sétimo em 2010
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O desemprego caiu de 50% no pico para 8%
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Os gastos sociais triplicaram
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A desigualdade de rendimentos caiu dramaticamente
Misericordiosamente, chegámos ao fim deste artigo. Alguém me faz o favor de explicar o que raio aconteceu aqui? Está o jornalismo em tão más condições que transcrever artigos do Wall Street Journal e Financial Times (ambos com um longo historial de “massagem” dos factos ou até mesmo pura ficção ao serviço dos interesses dos bancos e corporações americanas) é agora considerado investigação?
O mundo dos media de hoje é uma câmara de eco gigante, onde uma série de teorias sem qualquer relação com os factos (O sector privado é mais eficiente! Os ricos criam emprego! Temos de apertar o cinto!) são criadas e propagadas por uma máquina jornalística sem integridade ou tomates para dizer a verdade, ao serviço dos interesses dos 1%
Agora resta saber o que motivou a jornalista Rita Siza a este ataque vergonhoso ao progresso fantástico da Argentina. Preguiça? Incompetência? Ou é preciso começar a olear a máquina em Portugal para a carnificina de privatizações que aí vem, dentre as quais também se contam as águas?
Aposto que mal podem esperar para o maravilhoso sector privado vos meter a beber a mesma água onde despeja os esgotos, como os argentinos tiveram o prazer de experimentar.
Notas:
[2] Ver Martin Wolf, «The Growth of Nations», Financial Times, 21-07-2007.
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