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Mitos e funcionamento dos mercados financeiros

Olivier Chantry, 22/11/2011

A extorsão organizada da dívida pública

A crise do sistema bancário aprofunda-se [1] e os Estados europeus estão condenados a depender da «boa vontade» dos mercados financeiros. A Europa de Maastricht e de Lisboa proíbe o Banco Central Europeu (BCE) de emprestar aos Estados. Consequentemente, os bancos privados usam e abusam do monopólio dos empréstimos aos Estados. Os mercados financeiros encontram-se assim em posição de determinar as taxas de juro que os Estados lhes devem pagar, e os bancos não se coíbem de tirar daí os maiores lucros. Por exemplo, a 25/outubro/2011 os mercados exigiram ao Estado espanhol, pelas «letras a 3 meses» (empréstimos com prazo de maturidade a 3 meses), 2,35% de juro, em vez dos 1,7% pedidos em fins de setembro (ou seja, um aumento de 40% num só mês!). A 14/novembro/2011 a Itália teve de pagar 6,29% por 3000 milhões de títulos a 5 anos, contra 5,23% no mês precedente. Feitas as contas, este empréstimo terá de pagar cerca de 50 milhões de euros a mais. No dia seguinte, a mesma sentença recaiu sobre a Espanha, para a emissão de 2600 milhões de euros em letras a 12 meses que atingiram uma taxa de 5,6%. Um ano antes, a 14/dezembro/2010, a taxa foi 2% mais baixa.

Em 2012 a França terá de refinanciar cerca de 200.000 milhões de euros de dívida e o Estado espanhol, mais de 100.000 milhões. Cada aumento de 1% da taxa de empréstimo nesse ano representará respectivamente mais 2000 milhões e 1000 milhões de euros que esses Estados estarão a oferecer por ano aos mercados financeiros. Os juros pagos em 2011 por esses dois Estados foram de 48.800 milhões de euros no caso da França, e 27.800 milhões no caso da Espanha. O senhor Sarkozy, que anunciou no início de novembro novos planos de austeridade, felicitou em outubro a política liberal do seu homólogo espanhol Zapatero – política essa onde se destaca, nomeadamente, uma mudança da Constituição espanhola para pôr a austeridade e o pagamento da dívida ao mesmo nível da liberdade ou dos direitos económicos e sociais dos cidadãos e das cidadãs. Mas então como explicar que os mercados continuem com medo da situação económica de países tão exemplares? [2] Como funcionam esses mercados e para que servem? Estas são as questões que procuramos abordar adiante, desmistificando uma série de mitos baseados em pressupostos amplamente difundidos pelos meios de comunicação dominantes.

Primeiro mito: Os mercados financeiros são essenciais para «descobrir» os preços «justos»

Considerando que os compradores e os vendedores dum mercado possam ser «racionais», deixa-se a estes a possibilidade, através do bem conhecido jogo da oferta e da procura, de determinar os preços «reais».

É o mercado secundário que vai determinar o preço dos títulos da dívida pública em circulação [3]. Tomemos, por exemplo, um título de dívida emitido em 2010, no montante de 1000 euros e por um período de 10 anos e a 5% de juro anual. Diz-se neste caso que existe uma renda anual de 5%; um ano mais tarde, o mercado «descobre» que o seu preço é de 500 euros...

O Estado continuará a pagar todos os anos 5% de juros (50 euros) e no final do prazo de maturidade, em 2020, terá evidentemente de reembolsar os 1000 euros. O novo detentor (que comprou em segunda mão por 500 euros) terá um rendimento de 10% anuais. Investe 500 euros e recebe 50 euros de juro todos os anos. Assim, o mercado na realidade «descobriu» que a dívida devia render 10% ao ano. As próximas emissões de títulos a 10 anos devem portanto render igualmente 10%, ou seja uma taxa de juro de 10% anuais, ou seja 100 € para títulos com o valor facial de 1000 € [4]. Os analistas financeiros explicam-nos então que se os mercados exigem o dobro da renda, é porque calculam que a dívida é mais arriscada. E no entanto vão a correr comprar mais títulos de dívida, porque sabem muitíssimo bem que os poderes públicos se encarregarão de os «resgatar» caso haja algum problema. Por conseguinte os preços não são «descobertos» de facto, mas sim manipulados à bel-grado e para benefício dos banqueiros privados.

O resgate da Grécia [5] 

Na Grécia, os preços dos títulos da dívida caíram, perdendo entre 60% e 80% do seu valor... Como vimos anteriormente, as taxas de juros exigidas pelos mercados exorbitaram. Donde resulta a dificuldade da Grécia em refinanciar-se nos mercados (teria de pedir empréstimos com taxas de mais de 18% a 10 anos). Os outros Estados europeus emprestam-lhe através do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), para que a Grécia possa reembolsar os títulos de dívida cujo prazo está a acabar. Esta dívida é detida em grande parte por bancos franceses e alemães. Face a uma possível falência, a França e a Alemanha tiram proveito emprestando a taxas de juro que vão até aos 5%, exigindo planos de reajustamento estrutural que empurram a população para a pobreza, a rua e a repressão. Entretanto, o BCE compra no mercado secundário os títulos gregos a esses mesmos bancos. Curiosamente, esses títulos, que o mercado avaliaria à volta de 40%, foram comprados pelo BCE a 80% no passado Verão. Por fim o último plano de resgate prevê uma redução da dívida. Assim os títulos de 1000 € (que valem entre 200 e 400 € no mercado secundário) serão transformados em títulos de 500 € cujo prazo de maturidade e taxa de juro serão renegociados.

Segundo mito: Para que um mercado funcione correctamente, tem de ter «liquidez suficiente»...

Diz-se geralmente que um mercado tem «liquidez» quando existem compradores suficientes a entrarem com dinheiro (liquidez), ou seja, quando existe quantidade suficiente de trocas (compras e vendas). Isto permite compreender o papel essencial dos derivados financeiros (futuros e opções) e outros instrumentos do «mercado de balcão» (OTC, over-the-counter), tais como os SWAP, os ETN e os ETF, os CDS, etc. Estes instrumentos financeiros baseiam-se num «activo subjacente» – o qual, além de fornecer uma garantia contra os riscos de variação dos preços e de ajudar a «prever» os preços (uma verdadeira maravilha! [6]), permite atrair os agentes que apenas desejam receber lucros com contratos de compra ou venda futuros de 5000 toneladas de trigo ou de cupões da dívida alemã, sem nunca chegarem realmente a realizar a operação comercial desses produtos. Este agente é considerado um «bom especulador» ou «especulador tradicional» pelos «bons» economistas [7], que nos explicam que se trata de especuladores que vão trazer para o mercado a liquidez necessária ao seu bom funcionamento.

No mercado de títulos da dívida pública, estes derivados financeiros permitem por exemplo a um «bom especulador» fazer lucros graças à subida de preço dos cupões alemães – embora ele nem sequer os possua –, vendendo cupões espanhóis (para fazer baixar o preço destes). E porque não comprar mais tarde cupões, novos ou em segunda mão, com rendimento mais alto, com o dinheiro da venda de CDS [8] sobre a dívida espanhola? O preço desses CDS – que são uma espécie de seguros – terá forçosamente aumentado, visto que o mercado indica que a dívida espanhola aumentou de risco... (Está certo, por vezes é preciso saber interpretar os mercados.)

Terceiro mito: Os mercados financeiros permitem uma colocação óptima dos investimentos

Um mercado com «bons especuladores», com liquidez suficiente, determinaria correctamente os preços. Isto só por si já não seria nada mau, mas o cúmulo da felicidade é que permitiria uma colocação correcta de capitais. Ou seja, permitiria aos agentes desses mercados, todos eles em busca de lucro, investir onde a rentabilidade se afigurasse ser a melhor e portanto nos sectores económicos mais necessitados de investimento. Um instrumento indispensável para o bem de todos!

Mas que vimos nós acontecer desde que rebentou a crise de 2007? Os Estados endividaram-se para acudir às instituições financeiras. O BCE, assim como a Reserva Federal dos EUA ou o Banco de Inglaterra no Reino Unido, emprestam a juros muito baixos aos bancos para «injectar» liquidez nos mercados, salvar o sistema bancário e assim relançar a economia. Que aconteceu a essas injecções massivas de capital?

A liquidez continuou a alimentar os mercados especuladores de derivados financeiros baseados nas taxas de câmbio e monetárias. Outra grande parte, através da agroindústria, encarregou-se de acrescentar volatilidade aos preços das matérias-primas agrícolas. O mesmo se passou com o petróleo e os metais, provocando a retoma do investimento maciço na extracção de energias fósseis e em projectos faraónicos de minas a céu aberto... Esta liquidez serviu também para financiar o açambarcamento de terras a nível mundial, as monoculturas, o cultivo industrial e os agrocarburantes. É claro que esse dinheiro também serve para comprar ouro, cujo preço bateu todos os recordes, comprar apartamentos em todas as grandes capitais, ou obras de arte (mas apenas aquelas cujo preço já atingiu a estratosfera). Finalmente, todos esses capitais permitem aos mercados financeiros emprestar a rodos a esses mesmos Estados que se endividaram para os salvar... Em suma, uma perfeita colocação de capitais para resolver a crise ambiental, climática, energética, social e económica ou financeira...

Algumas informações acerca dos nossos «caros» bancos europeus [9].

 

 

Como se pode ver nos dois primeiros gráficos, os bancos europeus recuperaram rapidamente os lucros, ao mesmo tempo que continuavam a aumentar os investimentos nas empresas «associadas» (trata-se de empresas onde os bancos detêm mais de 20% das acções). Entretanto, os Estados endividavam-se para capitalizar os bancos. De resto, é a partir desse momento que os bancos começam a aumentar a compra de dívida pública, como ilustra o gráfico seguinte.

 

 

Repare-se também como, ao mesmo tempo, os bancos fecham a torneira do crédito às empresas, salvo, evidentemente, no caso das empresas financeiras, para as quais o crédito não pára de aumentar.

O último gráfico mostra-nos que o acesso ao crédito não foi igual para todas as empresas. Os bancos preferiram emprestar ao sector imobiliário. De facto, os bancos não são inocentes em matéria de especulação imobiliária. A queda deste sector acarretaria uma depreciação dos seus activos e, por arrasto, uma redução de novos empréstimos aos particulares que querem comprar casa. O preço da habitação na Europa permanece artificialmente elevado na sua globalidade.

 

 

O tom irónico no qual nos exprimimos visa apresentar algumas explicações para as crises actuais e os dogmas capitalistas dominantes, mas não pretende de forma alguma minimizar as consequências desastrosas e criminosas do sistema. Da propagação planetária da fome aos tsunamis de desemprego e de destruição dos direitos sociais na Europa, passando pelo reforço das barbaridades inerentes à exploração irracional das matérias-primas, é tempo de os povos reagirem. E é isso que eles começam a fazer, de forma cada vez mais decidida, criativa e indignada, em numerosos países. O edifício financeiro desta fase capitalista desaba, no que parece ser o início da mais dura crise económica mundial. Entretanto os maestros deste sistema económico-financeiro têm em mira os lucros consideráveis que lhes ofereceria a destruição dos organismos de protecção social (saúde, desemprego, pensões de reforma, etc.).

As lutas da linha da frente e mundiais são necessárias, rapidamente, para que este edifício não desabe mais uma vez sobre si mesmo. Aliás já nem parece ser o momento certo para grandes entusiasmos por um imposto global sobre as transacções financeiras ou pela regulamentação da especulação, como se propunham fazer os G20 ou a UE... Germinam novas ideias... Na Europa fala-se de auditorias cidadãs às dívidas [10]. Para não pagar as dívidas ilegítimas, mas também, talvez, para construir um instrumento transversal de apropriação democrática de gestão dos sectores bancários, dos meios de produção, dos recursos naturais... Temos de pensar urgentemente no desmantelamento da finança privada, dos mercados e dos oligopólios... que seriam substituídos por organismos democráticos locais, articulados regional e mundialmente. É tempo de avançar para a recuperação cidadã dos debates e das decisões políticas, como por exemplo o valor e o acesso aos produtos alimentares... a apropriação dos meios de produção... Estes debates e decisões tão importantes não devem ser deixados nas mãos da utopia capitalista de mercado e dos seus oligopólios privados, esses, bem reais...

Tradução: Rui Viana Pereira.


Notas:

[1] Ver: «Les dominos commencent à tomber en Europe», 9/10/2011, http://www.cadtm.org/Les-dominos-co...; «Krach de Dexia: un effet domino en route dans l’UE?», 4/10/2010,
http://www.cadtm.org/Krach-de-Dexia...

[2] Ver: «Deuda española : nuevo golpe de Estado financiero en el Sur de Europa», 4/10/2010, http://www.cadtm.org/Deuda-espanola...

[3] Para esclarecimento sobre o caso da dívida grega, ver: «Dans l’œil du cyclone: la crise de la dette dans l’Union européenne», 26/08/2011, http://www.cadtm.org/Dans-l-oeil-du...

[4] No caso da Grécia, o último plano de resgate prevê uma redução da dívida.

[5] Ver: o cinismo de Sarkozy na sua entrevista televisiva de 27 outubro 2011. http://www.elysee.fr/president/medi...
Sobre o carácter odioso e ilegítimo da dívida grega e a gravidade dos planos de austeridade: «Grèce: Tout un symbole de dette illégitime», 16/01/2011, http://www.cadtm.org/Grece-Tout-un-...
«L’accord du sommet européen des 26-27 octobre 2011 est inacceptable», 27/10/2011, http://www.cadtm.org/L-accord-du-so...

[6] Para uma análise mais detalhada sobre os pretensos benefícios dos derivados financeiros, ver: «Plus de spéculation: les plans de la Banque mondiale et du G20 pour faire face à la volatilité des prix agricoles et aux crises alimentaires», 18/08/2011, http://www.cadtm.org/Plus-de-specul...

[7]Por exemplo: «PSI REPORT: Excessive Speculation in the Wheat Market» (p. 52), 24/06/2009, US SENATE, http://hsgac.senate.gov/public/inde...

[8] Ver: «CDS et agences de notation: fauteurs de risques et de déstabilisation», 23/09/2011, http://www.cadtm.org/CDS-et-agences...
A União Europeia afirma querer regular os CDS a partir de 1 janeiro 2012, proibindo a aquisição de CDS a quem não esteja na posse da dívida correspondente (CDS a nu). Nada de limitar a parte mais visível da especulação. Nem lhes passa pela cabeça pôr em causa a existência de instrumentos que, fazendo de conta que são seguros, na realidade não passam de objectos de especulação, como é o caso de todos os derivados financeiros.

[9] Os gráficos seguintes foram realizados a partir da base de dados estatísticos do BCE, denominada Statistical Data Warehouse, http://sdw.ecb.europa.eu/, consultada a 11 e 12 novembro 2011.

[10] Ver: «Budget 2012 = une sacrée prise de dette !», 23/10/2011, http://www.cadtm.org/Budget-2012-un...
«Perante a perspectiva dum resgate dos bancos que pesará sobre a dívida pública espanhola, peritos e militantes propõem uma auditoria cidadã da dívida», 12/10/2011, http://www.cadtm.org/Devant-la-pers...
«Pourquoi faire un audit citoyen de la dette publique française?», 14/11/2011, http://www.cadtm.org/Pourquoi-faire...

 

Fontes e referências

Olivier Chantry, CADTM.

 
temas: credit swap defaults (CDS)

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