Era uma vez um ingénuo que entra no Ensino Superior...
No seguimento do artigo do Rui Viana Pereira sobre a financiarização do Ensino, achei bem colocar no papel algumas memórias sobre a degradação de que o Rui fala e a que eu assisti pessoalmente enquanto estudante.
Ingressei em Belas-Artes de Lisboa em 2005 e já nessa altura, apesar de serem menos elevadas do que os mil euros actuais, as propinas faziam baixas. Contou-me a minha mãe que tinha pago uma prestação a um ex-aluno seu que encontrou, por acaso, na Secretaria da Faculdade. Ele era trabalhador-estudante e estávamos na pré-crise de 2008, mas mesmo assim não tinha com que pagar. Sem esse acaso e a boa vontade dum conhecido, aquele momento teria sido o ponto final dos seus estudos.
Pessoalmente, achei curioso o processo de fazer o cartão da Faculdade. É que não era só o cartão da Faculdade. Era também o cartão dum banco. A Caixa Geral de Depósitos, inicialmente.
No meu primeiro ano, vi rachas no Convento onde a Faculdade está sediada que percorriam segmentos inteiros do edifício, como se alguém tivesse dado uma machadada na estrutura e as duas metades estivessem no processo de se separar em câmara lenta. No pátio central, uma grande racha percorria o chão na diagonal. Durante as festas éramos relembrados de que debaixo daquela racha estava uma cisterna e que o melhor era não saltar muito ao ouvir a música.
No meu segundo ano, vi uma colega de Escultura rebentar em lágrimas à minha frente. Escultura, sempre ouvi dizer, é o segundo curso mais caro a seguir a Medicina. Ela chorava porque lhe tinham recusado as ajudas devido aos cortes no Ensino. Agora tinha de pagar as propinas por inteiro e ainda os materiais para poder esculpir. A família trabalhava e ela tinha um part-time. Não chegava. Quando foi pedir a isenção de propinas, a pessoa que a atendeu não acreditou quando ela lhe mostrou o saldo bancário. «Se só tem isso já devia ter morrido à fome.»
No meu terceiro ano, o banco patrocinador mudou. Os nossos cartões mudaram do amarelo da CGD para o azul do BPI. Houve outra coisa que também mudou. Agora para fazer o cartão tínhamos de nos sentar em frente a um sorridente funcionário do BPI, entregar os nossos dados pessoais e decidir se queríamos só um cartão ou também uma conta associada. Li o contrato. Parecia tudo em ordem. Confirmei com a pessoa sorridente que não haviam custos associados à conta «enquanto fosse estudante». Estúpido eu. Contratos são para os pequeninos. Um par de anos depois, ainda estudante, recebi uma carta a informar-me que as contas sem um certo valor depositado iam passar a sofrer uma taxa de «manutenção» anual. Manutenção do que? Duzentos kilobytes num qualquer servidor do BPI? No balcão do Chiado fui informado que tinha de pagar para fechar a conta. Mas não fechou. Nem à primeira, nem à segunda, nem à terceira, mas só após ter perdido as estribeiras e enviado um email cheio de profanidades ao banco. A crise de 2008 sentia-se e, provavelmente aterrorizados por malucos vingativos, ligaram-me no dia seguinte a avisar que a conta tinha sido encerrada.
No meu quarto ano já tinha visto e ouvido o suficiente para perceber o que se estava a passar. Os dois técnicos de fotografia e um de multimédia foram reduzidos a apenas um em fotografia, deixando multimédia ao abandono (e isto eram só aquelas disciplinas com que tinha contacto). Sofriam ameaças de «recebe menos ou temos de te despedir». Eventualmente decidiram todos ir-se embora e deixar os postos a alguém mais desesperado e menos competente.
Os professores, aqueles preocupados em fazer o seu trabalho, carregam um aspecto permanente de exaustão. Cada vez mais a Faculdade depende de «assistentes», muitas vezes ex-alunos contratados de forma precária, para dar disciplinas que antes eram de professores a tempo inteiro.
Foi também no quarto ano que começaram as obras sem fim. Patrocinadas pelo BPI.
É assim que vai ser? A Faculdade a cair aos pedaços, a usar o dinheiro das propinas para pagar salários (como todas as outras), a despedir os bons para contratar os baratos. E, finalmente, a vender o seu bem mais precioso, os estudantes, ao banco que pague mais para lhes meter as mãos em cima primeiro. Achei que estava a testemunhar um acto de incompetência fenomenal por parte dos responsáveis da Faculdade.
Enganei-me. Anos mais tarde, ao estudar a corrupção neoliberal das instituições de ensino, descobri que não era por defeito mas por design. Chomsky diz das universidades que são entidades «essencialmente parasitárias». Absorvem dinheiro e do outro lado não saem iPhones e iPads. Sai conhecimento, novas ideias, revoluções. Os ganhos que oferecem à sociedade são indirectos mas vastos, pois ajudam a construir um país mais avançado, culto e competente.
Não admira, portanto, que sejam incompreensíveis para os pequenos cérebros de réptil dos neoliberais, apenas interessados nos lucros do mês seguinte e em assegurar os seus mesquinhos feudos. As universidades precisam de se tornar mais «eficientes», o que significa cortar-lhes os fundos de que necessitam para funcionar e fazê-las pedinchar esmolas ao sector privado. Em troca, o sector privado vai pedir o seu quilo de carne.
Primeiro, como já acontece cá, com «portagens» sobre o Ensino na forma de propinas. Estas, apesar das promessas em contrário («propinas são para pagar investimentos em infraestrutura e materiais»), rapidamente se tornam numa das mais importantes fontes de receitas da instituição, conforme a torneira se fecha do lado do Orçamento de Estado. Isto significa que os alunos deixam de ser encarados com olhos exigentes. Apenas interessa que entrem e que lá fiquem o máximo de tempo possível, para lhes extrair mais uma propinazinha, com as consequências previsíveis ao nível da exigência. O único mote é: quantos mais melhor (e a qualidade que se lixe). Vi professores a convencer os alunos a ficar mais um ano para repetir um par de cadeiras. Vi a Faculdade a fazer promessas de que os mestrados só durariam um ano para quem fez o curso de 4 (no modelo de Bolonha, a licenciatura é de 3 anos, 2 de mestrado), apenas para renegar essas mesmas promessas quando os alunos já estavam inscritos e tinham pago a primeira prestação das propinas.
Depois, no interligar da vida universitária com a vida financeira dos estudantes. Vai-se cortando nas ajudas até que toda a mobilidade social proporcionada por uma boa educação esteja vedada aos mais pobres. Excepto... se fizerem um empréstimozinho com o BPI e companhia – aproveita-se, já que têm um cartão e conta aberta através da Faculdade e tudo. Nos Estados Unidos podemos ver as consequências do avanço destas políticas: estudantes esmagados pela dívida, desesperados por qualquer emprego sem condições que lhes apareça à frente para não falharem os pagamentos do empréstimo. Ainda não começaram a sua vida e já são escravos da dívida.
E por fim, e ainda mais perigoso, na corrupção intelectual e até do próprio espaço. Precisam de equipamento? Que tal incluir uma cadeira sobre as virtudes dos mercados livres? Querem um novo pavilhão? Que tal chamar-lhe Pavilhão BPI? Até nas próprias Belas-Artes surgiu uma cadeira de empreendedorismo, esse maravilhoso produto cola-tudo. Inscrevi-me por curiosidade. Aparentemente não sou grande candidato a empreendedor porque logo na primeira aula tivemos de oferecer os motivos para nos termos inscrito ao professor de calças bege e camisa azul. «As pessoas que se inscrevem por curiosidade, isso não me diz nada, não vão longe.» No fundo dos meus olhos, sentia o fervilhar da raiva. Não estava eu numa Universidade? Não é este o local da curiosidade, da pesquisa, do descobrimento?
A culpa era minha. Ainda não estava a pensar correctamente, como um bom réptil neoliberal, cuja única lógica é a lógica do interesseiro.
No meu quinto ano, tinha um coração carregado de desprezo.
Fontes e referências
Editor: Rui Viana Pereira.
visitas (todas as línguas): 10.583