Encarceramento e panóptico

Edifício panóptico do Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa
Vários investigadores estudaram os efeitos do encarceramento/confinamento. Das conclusões daí resultantes destacam-se os efeitos nefastos sobre a saúde física, mental e comportamental provocados pelo isolamento social, pela privação parcial dos sentidos e por outras técnicas usadas tradicionalmente nos estabelecimentos prisionais.
(Aviso: este é um artigo de opinião que apenas responsabiliza o seu autor e não o colectivo a que ele pertence.)
Durante a década de cinquenta do século XX vários investigadores começaram a estudar os efeitos do encarceramento, dando origem a um novo ramo da sociologia. Os ensinamentos daí resultantes são vastos; no que importa a este artigo destaco os efeitos nefastos sobre a saúde física, mental e comportamental provocados pelo isolamento social, pela privação parcial dos sentidos e por outras técnicas usadas tradicionalmente nos estabelecimentos prisionais. No limite, além de perturbações da memória, da concentração e da autonomia, as consequências incluem o suicídio ou comportamentos anti-sociais.
Pela mesma época, os torcionários franceses, apostados em vergar a resistência argelina, estudaram também eles em «ambiente laboratorial», chamemos-lhe assim, os efeitos das técnicas de encarceramento, isolamento e tortura. As suas conclusões corroboram os estudos científicos dos sociólogos e fizeram escola nas polícias de todo o mundo, especialmente nos países onde a autoridade pública quer reprimir pela força bruta toda a oposição.
Logo a seguir à época a que nos referimos, Michel Foucault publicou Vigiar e Punir, onde uma das técnicas de vigilância abordadas é o panóptico, que consiste na vigilância permanente duma comunidade, recorrendo a meios humanos mínimos. Mais tarde Gilles Deleuze viria a desenvolver outros aspectos do panóptico, introduzindo o conceito de «sociedade de controle».
Muito antes de todos estes estudos, em 1785, Jeremy Bentham tinha inventado um esquema arquitectónico de vigilância panóptica. Tratava-se de uma estrutura circular constituída por celas, com uma torre de vigia central que permitia a um único vigilante observar todos os inquilinos de um estabelecimento prisional, sem ser observado por eles. Existia em Portugal um dos poucos (seis, salvo erro) edifícios construídos em todo o Globo segundo esta fórmula: o pavilhão de segurança do Hospital Miguel Bombarda, mais conhecido por Rilhafoles (embora a torre central não esteja presente – ver foto que encabeça este artigo).
Serve este intróito para relembrar que as técnicas de isolamento, encarceramento e vigilância, bem como as suas consequências ao nível mental e comportamental, não são matéria de opinião especulativa: foram cientificamente estudadas. Não só a comunidade científica pode falar delas com rigor e prever os seus efeitos com razoável precisão, mas também as autoridades públicas as conhecem e sabem aplicá-las com eficácia.
Encarceramento, isolamento, confinamento e panóptico em ambiente epidemiológico
Basta substituir uma palavra por um sinónimo menos usado para tornar mais suave a imagem de uma coisa que à partida poderia tornar-se repugnante. Na situação de epidemia e medidas públicas contra a epidemia que hoje vivemos, palavras como «confinamento» têm-nos salvo das repugnantes imagens inerentes aos conceitos de encarceramento, recolher obrigatório, isolamento, etc. Exemplo desta estratégia de comunicação substitutiva: quando em 2011 foi celebrado o acordo com a Troika (conhecido por «Memorando de Entendimento»), que constitui objectivamente um golpe palaciano contra a Constituição e os interesses da maioria da população, a operação de endividamento e corte de liberdades e garantias foi designada como «ajuda» (do inglês «assistance», expresso à cabeça do contrato de endividamento e cujo significado técnico é: empréstimo condicionado), tornando assim simpática uma interferência externa ofensiva. O resultado foi uma espécie de adormecimento da maioria da população face à agressão da Troika.
Por outro lado, temos de ter em conta que entre o exemplo extremo do isolamento (encarceramento numa cela «solitária», com privação sensorial e social) e, por exemplo, a atitude dos pais que proíbem os filhos de usar transportes públicos, supostamente por serem perigosos, privando-os assim de certos tipos de interacção social, vai uma vastíssima gama de meias-tintas nem sempre fácil de avaliar. No entanto é seguro afirmar que todas essas variantes provocam consequências – sem dúvida mitigadas relativamente ao caso extremo, mas em todo o caso vitalícias.
Na epidemia de covid-19 que vivemos, há duas fases a considerar. A primeira diz respeito às medidas adoptadas pelo Governo a partir de março de 2020, cujos erros e falhas podemos facilmente perdoar, tendo em conta o carácter inédito da situação. Já o mesmo não se pode dizer da iniciativa presidencial de declarar o estado de excepção, que era totalmente desnecessário. Contudo, ao entrarmos na segunda fase da epidemia, a partir de outubro-novembro de 2020, torna-se clara a utilidade da anterior iniciativa do Presidente: volta a declarar o estado de excepção, mas desta vez a iniciativa já não soa estranha, por ter um antecedente e por ser precedida de uma campanha de medo que durou meses e se entranhou profundamente na cabeça dos cidadãos.
Se na primeira fase o Governo não fez uso significativo do estado de excepção, na segunda não se fez rogado: proibiu a livre circulação das pessoas, estabeleceu um estado de recolher obrigatório (fora das rotinas de trabalho), instituiu um estado de vigilância policial e incentivou a prática social da denúncia como meio de controlo da população.
A primeira tentativa oficial de criar um panóptico (por meio de uma tecnologia inovadora instalada nos telemóveis) chocou contra um coro de protestos que levou o Governo a retirar rapidamente a proposta. Em vez disso, incentivou culpabilização individual e a prática da denúncia (aquilo a que nos tempos da ditadura salazarista se chamava os «bufos» e que ainda hoje se chama «chibanço»). O mesmo se passa noutros países onde existem linhas telefónicas dedicadas à denúncia covid-19.1
Nec otium
A palavra negócio significa etimologicamente «negação do ócio». O termo ócio significava a aplicação do tempo em algo que não produzia uma recompensa imediata. Assim, nec otium, a negação do ócio, passou a significar a aplicação do tempo em actividades que geram acumulação de riqueza ou que oferecem uma recompensa material imediata (exemplo: o trabalho assalariado).
Ócio era uma palavra sem conotação pejorativa; andava associada ao estudo, à aprendizagem, à invenção e criação, e portanto tinha uma conotação bastante positiva. Assim foi até a cultura capitalista lhe acrescentar novos significados. Com a introdução do princípio «tempo é dinheiro» e da obsessão pela acumulação individual de riquezas, a cultura capitalista imprimiu na palavra ócio um forte sentido pejorativo. Hoje, praticar o ócio é uma vergonha social; por isso, mesmo quem insiste em praticá-lo prefere não o declarar publicamente. Paradoxalmente, a tara produtivista e a vergonha do ócio foram adoptadas não só pela cultura capitalista, mas também por várias correntes que pretendiam opor-se a ela.
Não sendo possível eliminar totalmente o ócio sem correr o risco de extinguir a própria humanidade, a solução capitalista consistiu em sujeitar o já parco tempo de ócio à lógica do negócio, por via do consumo obsessivo. Mas, para alcançar este objectivo, há um preço a pagar: é preciso matar a criatividade inerente ao ócio.
Ora as medidas adoptadas pelo Governo em novembro de 2020 consistem no seguinte: enclausurar a massa de trabalhadores, quando eles se encontram fora do tempo de negócio. Existe um tempo de descanso, sim, na medida estritamente necessária à reprodução social da força de trabalho. Mas as medidas adoptadas impedem todo o tipo de actividades ligadas ao convívio social ocioso: encerramento dos locais de convívio, dos locais de restauração após o período de trabalho (mas mantendo-os em funcionamento durante o período laboral, para que a força de trabalho não se extinga por inanição), da liberdade de deambulação e de todas as actividades «inúteis» ao ar livre, etc. Os trabalhadores não podem reunir-se no pavilhão desportivo da sua freguesia para jogarem à bola, mas podem ficar em casa a ver um jogo de futebol transmitido por um canal televisivo pago à parte; não podem ir ao cinema com os amigos, mas podem pagar um canal televisivo com filmes; não podem sair do seu concelho para verem e respirarem a natureza, mas podem ver uma certa imagem da natureza na televisão; não podem confraternizar, mas podem falar à vontade pelo telefone ou outro aparelho de voz roufenha, desde que paguem a respectiva tarifa.
Estas medidas de «confinamento» produzem um conjunto de efeitos conhecidos, dos quais destaco: uma maior subjugação voluntária à autoridade (reforçada por medidas punitivas contra a desobediência civil, aplicadas ao abrigo do estado de excepção), expressa na quebra de ânimo e de resistência; um estado de tristeza permanente já visível em muitas pessoas, fazendo recear a instalação de depressões crónicas e outras maleitas do espírito; uma disfunção comportamental e social, a longo prazo, com possível emergência de comportamentos anti-sociais; uma diminuição das capacidades intelectuais, da memória e da aplicação de critérios racionais.
Estado de excepção, estado de calamidade e estado de necessidade
É importante referir a distinção entre estes três conceitos, ainda que resumidamente.
O estado de excepção, mesmo na sua variante menos drástica agora adoptada (dita estado de emergência) suspende garantias e direitos fundamentais, cívicos e políticos, consagrados na Constituição e nos tratados internacionais. Foi esta a solução avançada pelo presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em março e novembro de 2020. Segue-se o correspondente reforço discricionário da autoridade central e policial.
O estado de calamidade (ou contingência ou alerta) é uma espécie de versão soft do estado de excepção: oferece ampla margem de manobra às autoridades públicas, limitada pelo bom-senso e pela necessidade, mas não implica suspensão das garantias e direitos elementares. Além disso, oferece a possibilidade de deitar mão a recursos privados acumulados em grande quantidade – capitais e património, instalações, hospitais, meios de produção, etc. –, quando disso dependa a sobrevivência do colectivo. Como defendi noutro artigo, esta solução dispensa a declaração do estado de excepção.
É impossível perdoar ao Governo e ao Parlamento não se terem feito rogados no uso da restrição de liberdades e garantias, mas em contrapartida não terem mexido um dedo para requisitar patrimónios privados (os de grande dimensão, evidentemente) ou aplicar-lhes taxas extraordinárias, a fim de obter os recursos necessários ao combate à epidemia e fortalecer o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Podiam tê-lo feito com toda a legitimidade e dentro da legalidade. Não quiseram.
O estado de necessidade,2 ainda que não esteja directamente contemplado na Constituição portuguesa (salvo erro), pode e deve ser aplicado, ao abrigo da jurisprudência internacional que abrange o Estado português. Esta figura do direito internacional invoca circunstâncias excepcionais que põem em risco a normal sobrevivência de uma população. Assim, por exemplo, é possível um governo suspender o pagamento de uma dívida quando o seu reembolso implique o desvio de recursos financeiros indispensáveisà resolução de problemas graves em curso ou iminentes. Ora, nas actuais circunstâncias, tendo o SNS sido levado por sucessivos governos e credores a um estado de debilidade extrema, sendo indispensável refortalecê-lo com urgência para atalhar maiores sofrimentos, impõe-se a declaração do estado de necessidade.
É assinalável que, ao longo de nove longos e sofridos meses de calamidade epidemiológica, a tagarelice diária dos responsáveis e comentadores políticos nunca tenha mencionado esta figura de direito.
A declaração do estado de necessidade permitiria, por exemplo, suspender o absurdo reforço de capitais oferecido ao Novo Banco (não deixando margem para dúvidas e discussões espúrias), as rendas milionárias pagas às PPP, o reembolso da dívida pública multilateral e as dívidas privadas ligadas à sobrevivência e aos direitos fundamentais dos agregados familiares. Algumas dessas dívidas deveriam não apenas ser suspensas, mas até repudiadas, impedindo assim que uns quantos privilegiados redobrem a sua fortuna à custa da desgraça alheia. Em vez disso, o primeiro-ministro telefona à sra. Lagarde para lhe dizer: não se preocupe, nós pagamos sempre o que prometemos.3
O silêncio estabelecido à volta da solução legal oferecida pelo estado de necessidade denuncia a subserviência dos governantes ao poderio de uma minoria privilegiada, com destaque para o mundo da finança.
Conclusão
Não se pode negar a necessidade de fazer sacrifícios e tomar medidas extraordinárias para combater a epidemia. Entre elas contam-se várias medidas estratégicas que não só não têm sido adoptadas, como têm sido criteriosamente silenciadas – nomeadamente o estado de necessidade. Para salvar a população da miséria e do sofrimento, é necessário adoptar medidas que libertem meios para reforçar todos os serviços públicos, com destaque para o serviço nacional de saúde (SNS).
Por outro lado, diversas medidas impostas pelo Governo e pela Presidência da República atentam contra o bem-estar da população. Daí que não seja estranho ouvir diversas vozes afirmarem que «se não morrermos do mal, morreremos da cura».
É preciso acrescentar que o encerramento do pequeno comércio ou a sua restrição drástica constitui uma autêntica provocação que pode atirar certas camadas da pequena burguesia (e não só) para os braços da extrema-direita fascizante.
(em 3/12/2020 foi corrigida uma pequena imprecisão na designação dos estados de alerta/contingência/calamidade)
Notas:
1 Na Alemanha, por exemplo, as linhas telefónicas de denúncia pura e simplesmente entupiram, tal foi o fluxo de denunciantes. No caso português, seria interessante comparar o número de denúncias relativas a crimes públicos abundantes em Portugal, como sejam abuso de menores e a violência doméstica, com o número de denúncias recebidas pelas polícias no mesmo período relativas ao estado de excepção e a desobediência civil. Não encontrámos meios para o fazer, mas aqui deixamos o desafio. Infelizmente o sítio electrónico das polícias é completamente inútil e opaco no que respeita a estatísticas.
2 Em direito internacional, o estado de necessidade corresponde a uma situação de «perigo para a existência do Estado, para a sua sobrevivência política ou económica», quando é«o único meio de salvaguardar os interesses essenciais de um Estado face a um perigo grave ou iminente». Recorde-se que em direito internacional os interesses do Estado confundem-se com os da população e com os direitos humanos e portanto esta figura é aplicável na presente situação de calamidade epidémica. No domínio das relações económico-financeiras, o estado de necessidade prevê a suspensão e o repúdio de dívidas públicas bilaterais ou multilaterais. Segundo a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas: «Não se pode exigir a um Estado que encerre as escolas, as universidades, os tribunais e os serviços públicos, abandonando a sua população ao caos, para reembolsar os credores internacionais ou nacionais. Há limites para o que se pode razoavelmente exigir a um Estado, tal como aos indivíduos». Referência: International Law Commission.
3 Sob proposta do Bloco de Esquerda e com os votos favoráveis do PSD, PCP, Verdes, Chega e Joacine Katar Moreira, o Parlamento desorçamentou os 476 milhões € previstos para entregar ao Novo Banco, via Fundo de Resolução. Recordemos que este fundo devia ser provido pelos outros bancos, mas afinal é sempre o Estado a enchê-lo. Segundo o inacreditável contrato entre o Governo português e a Lone Star (fundo abutre que comprou o antigo BES), o Fundo de Resolução devia financiar o Novo Banco em quase 4.000 M€ até 2026. Ainda vamos em 2020 e 3.000 milhões já lá moram. Ver notícia de livre acesso em Expresso, 26/11/2020.
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