Diários do confinamento

As normas sanitárias restritivas aplicadas à população contrastam com a reabertura de portas ao turismo e às companhias aéreas. A resposta de boa parte da população, sobretudo a mais jovem, foi simples: sair à rua e conviver.
Em 2007-2008 eclodiu uma crise financeira global com efeitos sociais devastadores. Em Portugal, esses efeitos incluíram a partir de 2011 o resgate de bancos falidos pago pelos contribuintes, o desemprego massivo, a destruição de uma parte da capacidade produtiva, a ingerência externa directa na governação do país. Justificação apresentada: a população teria andado a «gastar acima das suas possibilidades». Passados 10 anos, é clara a falácia deste argumento.
Em 2019 tornou-se visível uma nova crise global financeira. Não sendo possível repetir a falácia de 2011, os poderes públicos e económicos encontraram um novo bode expiatório: a culpa da crise global foi imputada em 2020 ao coronavírus, esse ser inimputável em tribunal, incapaz de defender-se perante as câmaras de televisão, totalmente alheio às relações sociais, políticas e económicas dos seres humanos.
Num primeiro momento de combate à pandemia, as medidas adoptadas pelo Governo português foram aceites sem oposição pela maioria da população, por razões circunstanciais: uma vez que os serviços públicos de saúde foram seriamente debilitados por sucessivas medidas de austeridade, uma vez que o país tinha perdido a capacidade de produzir os bens necessários ao combate sanitário, foi aceite o sacrifício absurdo de pôr de quarentena as pessoas sãs, talvez pela primeira vez na longa história da humanidade.
O pânico gerado pela campanha de terror transmitida pela comunicação social ajudou à aceitação pacífica das medidas propostas – uma vez criado o pânico, o bom senso deixa de reinar e tudo passa a ser admissível. Contudo, ninguém no seu perfeito juízo acreditaria – a não ser sob o efeito estupidificante do pânico – que, na condição usarmos uma máscara e encerrarmos escolas, pequeno comércio e pequena indústria, podemos, sem perigo de contágio alargado, passar dinheiro de mão em mão, trabalhar numa fábrica, num call center, numa caixa de supermercado, andar em transportes públicos sobrelotados, usar um elevador partilhado.
Com as medidas de confinamento e o encerramento da pequena e média indústria e comércio e da produção local, grande parte dessas empresas foi condenada à morte. Por seu lado, algumas das grandes empresas aproveitaram a deixa para encerrar ou despedir massivamente os seus trabalhadores. Gerou-se assim uma vaga súbita de desemprego (pelas minhas contas, pode ter chegado a 35 % da força de trabalho disponível em Portugal em maio de 2020). No entanto, apesar dos despedimentos, de maneira geral a grande indústria de produção, serviços e distribuição, bem como a banca, mantiveram-se em funcionamento; beneficiaram de novas isenções fiscais e contributivas; passaram a maior parte dos encargos salariais para cima dos trabalhadores, tanto de forma directa (redução dos salários em cerca de 33 %), como de forma indirecta (salários parcialmente pagos pela Segurança Social); viram facilitados os despedimentos em massa (lay-off); obtiveram novas condições de crédito com garantia estatal.
O Parlamento português aceitou as medidas decretadas pelo Governo; aceitou suspender durante cerca de 6 semanas vários direitos e liberdades essenciais (reunião, greve, resistência, circulação); mas recusou discutir o essencial: a reposição dos excedentes destruídos; a reversão a fundo das medidas de austeridade introduzidas pelo governo de Passos Coelho/Troika; recusou, mais uma vez, travar o caos do sistema bancário, colocar o sistema de crédito sob controlo público, ao serviço da população; continuou a aceitar o desvio de milhares de milhões de euros do erário público para salvar bancos privados – seja através de injecções de capital, seja através do endividamento público e privado.
O renascimento da clandestinidade
O ritmo alucinante das «sondagens de opinião» é contrário à análise científica, que exige tempo e paciência. Todos os dias surgem no telejornal sondagens que confirmam o que pretendiam provar à partida: que a população está em pânico, que toda a gente obedece às regras de confinamento e distanciamento social, que a maioria confia nas autoridades políticas e sanitárias. Estas sondagens são feitas dentro duma lógica idealista, desvalorizando a práxis e os aspectos materiais da realidade. Por isso não dão conta de importantes factores: por exemplo, a existência de cafés que, em plena fase de confinamento, apesar de continuarem de porta fechada e cortinas corridas para escaparem às forças da repressão, lá dentro estavam apinhados de gente a conversar sem máscara, a jogar às cartas e até a fumar – lugares secretos onde as proibições, incluindo aquelas que pareciam ter sido interiorizadas há muito, voltam a ser postas em causa.
Por fim, quando as regras de confinamento começaram a ser aliviadas, quando os jardins, praias, restaurantes e esplanadas foram parcialmente reabertos, esses lugares foram palco de uma explosão de alegria e convívio, de abraços e beijos, apesar dos insistentes conselhos oficiais sobre cautelas sanitárias e «distanciamento social».
Este pendor de revolta não se deve à acção de uma hipotética esquerda subversiva em Portugal. Tem, por agora, um sentido eminentemente individualista e deve-se provavelmente ao cansaço produzido pelo confinamento e ao facto de, passado o choque inicial, o bom senso tender a vir ao de cima, pondo a nu o absurdo das últimas medidas impostas:
O absurdo de colocar as pessoas sãs de quarentena e abandonar os grupos de elevado risco à sua sorte (sobretudo os idosos, mas não só).
O absurdo de fechar as creches e escolas (as crianças e os jovens não são afectados, excepto quando portadores de outras patologias).
O absurdo de instituir – tudo leva a crer que com carácter definitivo – o tele-ensino, destruindo o papel da escola (gymnasium), reduzindo os professores a máquinas de reprodução social, criando condições para aumentar drasticamente o número de alunos por professor e separando fisicamente os factores vivos da escola – alunos, professores, funcionários –, reduzindo a sua capacidade global de organização e contestação.
O absurdo de manter em funcionamento os transportes públicos mas com lotação parcial, o que cria um transtorno caótico nos movimentos pendulares diários, e ao mesmo tempo repor os voos aéreos com lotação plena.
O absurdo de impor normas que estrangulam os cafés, restaurantes e outras actividades de pequeno comércio e convívio, ao mesmo tempo que se reabrem as portas ao turismo de massas.
O absurdo de reabrir os centros comerciais mas manter as bibliotecas, cinemas e teatros fechados ou reduzidos a lotação mínima.
O absurdo de manter as praias e parques total ou parcialmente fechados, impedindo as pessoas com patologias respiratórias de respirarem ar puro.
O absurdo de dizer às pessoas que, se ficaram sem rendimentos por causa da crise, podem suspender o pagamento das rendas e outros encargos, na condição de pagarem mais tarde (nalguns casos com juros), ainda que entretanto tenham perdido as suas fontes de rendimento.
O absurdo de pedir a milhares de famílias sem casa ou a viverem amontoadas numa casa minúscula que cumpram as regras sanitárias.
O absurdo de oferecer crédito bancário, com juros, nas condições impostas pelos bancos privados, limitando-se o Governo a servir de garantia aos bancos e a lavar daí as suas mãos.
O absurdo de reduzir drasticamente os salários, enquanto as grandes empresas oferecem aos accionistas um festim de dividendos.
… Enfim, todos os dias assistimos à invenção de novos absurdos, cada qual mais espantoso que o anterior.
O que aprendemos com o covid-19
Aprendemos que é perfeitamente possível viver sem a indústria do futebol.
Aprendemos que é mortal, no sentido literal do termo, reduzir a organização colectiva dos excedentes de produção e sociais, nomeadamente no sector da saúde pública. (Sobre o conceito de excedentes, ver anexo I no final deste texto.)
Aprendemos que a boa organização colectiva dos excedentes de produção serve para proteger a população contra calamidades futuras imprevistas (algo que os nossos antepassados já sabiam há milhares de anos).
Aprendemos que é fatal basear uma economia no turismo de massas, na especulação imobiliária e na exportação de produtos e componentes de baixo valor acrescentado – o país perde a sua autonomia, a começar pela autonomia alimentar e sanitária, e fica à mercê dos caprichos do grande capital.
Aprendemos que é fácil usar as calamidades naturais para introduzir novas medidas de austeridade disfarçadas de «emergência».
Aprendemos que é possível deturpar ou silenciar partes da informação científica ou estatística para induzir o pânico e justificar o desemprego massivo. (Sobre o actual desemprego massivo, ver anexo II no final deste texto.)
Aprendemos que afinal é possível converter da noite para o dia certas unidades de produção, tornando-as verdadeiramente úteis à sobrevivência da maioria da população.
Aprendemos que é possível um governo que se diz social-democrata organizar a destruição final do sistema público de ensino secundário e superior (coisa que nem a Troika conseguiu levar a cabo em Portugal!). Os pobres, reduzidos ao confinamento permanente da tele-escola, sem acesso à aprendizagem do convívio, da partilha, da solidariedade e da organização autónoma, ficarão reduzidos a um obscurantismo diplomado, a um autismo individualista. Os ricos, pelo contrário, poderão facultar aos seus filhos meios alternativos de ensino presencial, onde poderão formar-se, conviver e aprender a organizar-se solidariamente para defenderem os seus interesses específicos de classe.
Aprendemos que é possível um governo que se diz social-democrata silenciar os agentes de cultura alternativa e independente, deixando a produção cultural inteiramente nas mãos do grande capital.
Aprendemos, no espaço de 24 horas, que o desaparecimento da produção de proximidade e do pequeno comércio local implica um empobrecimento das nossas vidas.
Aprendemos que a União Europeia que temos não é uma união solidária dos povos, mas sim uma união solidária dos representantes do Capital, dos açambarcadores de excedentes.
Aprendemos que o Capital tem uma capacidade inesgotável para inventar novas formas de sobreviver às suas próprias crises, fazendo-o sempre à custa de quem trabalha. Mas, por termos sido obrigados a viver durante algum tempo de uma forma muito diferente da habitual, aprendemos também que é possível construir de um dia para o outro uma nova forma de viver – e portanto um mundo alternativo à exploração capitalista e à destruição ambiental; um mundo onde os excedentes e os recursos naturais, em vez de serem açambarcados por uma dúzia de privilegiados, passem a estar ao serviço de todos.
Em suma, aprendemos que, do ponto de vista do Capital, o coronavírus veio para resolver a crise financeira e açambarcar mais recursos colectivos; mas, do ponto de vista do Trabalho, o vírus deixou entrever que é possível, no espaço de poucos dias, construir outra maneira de viver, sem que isso signifique o fim do mundo. Compete ao campo das forças populares fazer com essas novas relações sociais sejam mais justas e igualitárias.
Anexo I: Sobre a produção de excedentes
Para além dos aspectos sanitários e médicos, o texto acima tem como pano de fundo a gestão de excedentes e a sua redistribuição. Recordemos o que está em causa.
Há mais de 7000 anos, a progressiva capacidade de produzir grandes quantidades de excedentes deu origem a enormes transformações sociais:
criaram-se sistemas de armazenamento, protecção e redistribuição dos excedentes de produção; esses sistemas assentavam na recolha comunitária dos excedentes da produção individual e pressupunham uma distribuição prévia dos recursos disponíveis (sementes, terras, águas, etc.);
a existência de excedentes libertou uma grande parte da força de trabalho disponível, que pôde assim dedicar-se a outras tarefas que não a recolecção ou produção de bens essenciais; por outras palavras, os excedentes de produção geram «excedentes sociais»; e com eles uma nova e complexa estratificação social.
![]() Espigueiros do Soajo. Uma construção arquitectónica popular para armazenar, proteger e secar os excedentes das colheita
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A solução do sistema capitalista para resolver as suas crises sistémicas cíclicas consiste, em última instância, na destruição massiva da capacidade produtiva e dos excedentes (bens, imobiliário, unidades de produção, mão-de-obra, etc.). A modalidade mais conhecida é a guerra; mas existem outros expedientes: a redução dos serviços públicos, a destruição/exaustão de recursos naturais, o desemprego massivo, etc. Ora o resultado das medidas de combate à pandemia de coronavírus propostas por numerosos governos parece-se perigosamente com essas estratégias de destruição maciça – com a única diferença de que desta vez a culpa é atribuída a um vírus e não a um Hitler qualquer. As consequências deste autêntico bombardeamento da sociedade são as mesmas de sempre:
reforço das condições de concentração de capital e monopolização, graças ao esmagamento massivo das pequenas e médias unidades de produção;
aumento do desemprego; redução acentuada da massa salarial;
desvio dos recursos colectivos para os bolsos das grandes empresas/accionistas;
esse desvio acarreta o abandono ou extinção ou paralisação de numerosos serviços colectivos essenciais ao bem-estar da população.
Independentemente dos aspectos sanitários em causa na actual pandemia de covid-19, a questão determinante para a saúde das populações a longo prazo não depende do vírus, mas sim da forma como são geridos os excedentes de produção e os «excedentes sociais». Enquanto a maior parte desses excedentes for usada em proveito de uma minoria privilegiada, toda a população – e toda a natureza – estarão em perigo.
Anexo II: «Não se conhece a verdadeira dimensão do desemprego no nosso país»
Segundo um estudo recente do economista Eugénio Rosa, é impossível percebermos a dimensão do desemprego em Portugal. Todos os meses desaparecem misteriosamente das estatísticas (INE e IEFP) milhares de trabalhadores desempregados, embora não lhes tenha sido atribuído um posto de trabalho. Além disso, só são contabilizados os trabalhadores que se inscreveram nas listas de desempregados. É de supor que existem muitos outros (a maioria?), sem direito a subsídio de desemprego por terem estado sujeitos a vínculos laborais precários, que não se deram ao trabalho de preencher as burocracias de desemprego com o único objectivo de constarem nas estatísticas. Temos além disso trabalhadores que foram postos em lay-off pelas empresas, embora o Estado não tenha reconhecido essa situação (ou seja, ninguém está a pagar o salário desses trabalhadores).
Conclusão: embora neste momento seja impossível traçar um retrato rigoroso da realidade social portuguesa, é seguro deduzir que o desemprego atingiu proporções dramáticas.
(Corrigido e acrescentado em 9/06/2020)
Fontes e referências
Sobre a campanha empresarial para vender software e hardware a partir do pânico gerado pelo covid-19:
Naomi Klein, «Coronavírus Pode Construir Uma Distopia Tecnológica», 13/05/2020.
Sobre a eclosão de uma nova crise financeira e económica global:
Éric Toussaint, «A Montanha de Dívidas Privadas das Empresas Estará no Âmago da Próxima Crise Financeira», 13/04/2019.
Idem, série «A Pandemia do Capitalismo, o Coronavírus e a Crise Econômica», 23/03/2020...21/04/2020.
Vários relatórios e sites com estatísticas sobre a população activa, nomeadamente:
«Boletim Estatístico» (sobre emprego e trabalho) do Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP), Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS).
«Síntese INE COVID-19», Instituto Nacional de Estatística (INE).
«Mapear os Abusos, Combater a Desprotecção», balanço intermédio, in despedimentos.pt e esquerda.net.
Eugénio Rosa, «Centenas de Milhares de Desempregados Inscritos nos Centros de Emprego Eliminados dos Registos», 7/6/2020.
Idem, vários estudos sobre o mesmo tema, com datas de 24/05/2020, 17/05/2020, 13/04/2020.